quarta-feira, 7 de novembro de 2012

Crônicas Desclassificadas: 58) Outras danças

O historiador Eric Hobsbawm, morto recentemente, certa vez estando em Paraty disse à Folha, em tom de brincadeira, que por uma questão de sobrevivência decidira ser esperto quando se dera conta de que era muito feio. Não sou tão feio quanto ele (acho), embora infinitamente menos esperto, mas também tive que tomar algumas decisões. Nunca em toda minha vida conquistei uma única garota usando as pernas. Fosse numa danceteria, num show de rock, numa festa, num arrasta-pé ou mesmo num baile de grupo de jovens da paróquia... necas!
Na adolescência cheguei a ser socorrido por uma amiga, que pacientemente (e em vão) tentou me ensinar os complexos passos da dança "lenta" (acho que nem existe mais isso...), mas eu era uma negação. Muito tempo depois cheguei a dançar mal e porcamente o xote, mas, cearense falsificado que sou, sempre bastou esbarrar em alguém ou abrir passagem pra algum garçom com sua bandeja, pro ritmo ir pro beleléu. Em certo sentido, fiquei mais íntimo dos números dançando, pois sempre rezava seu catecismo em voz baixa ("um e dois e três e quatro e um e dois...).

Claro que houve uma época em que passei a "me dar ares". Afinal, quem não dança segura a criança, digo, quem não dança tem que achar um paliativo pra isso, e, em meu caso, a saída foi desmerecer os dançarinos. Olhava-os com pedantismo, considerando-os seres inferiores, animais no cio, suando e se esfregando por oras e sem motivo aparente, alguns pulando, outros compenetrados lançando olhares fatais, muitos rindo, todos em êxtase. Um exemplo mais que perfeito dos mais variados espécimes dessa fauna chamada raça humana.

Mas bastava um casal de dançarinos se beijar pra que meus argumentos ruíssem. E eu me roía, querendo estar na pele do John Travolta de plantão (os mais novos não vão assimilar a referência ao ator, mas deixa pra lá...). Tampouco conseguia entender o mecanismo de um corpo tão díspar como o meu, que era capaz de jogar bola razoavelmente bem (o que não deixa de ser uma dança), mas que tropeçava nos próprios pés (e, principalmente, nos alheios) à menor simulação de aprendizado dançante. Eu era uma farsa. Aliás, nem farsa eu era, pois não enganava nem mesmo meus cascos de recém-promovido a bípede. Não à toa nasci sob o signo do homem-cavalo.

E o samba então? Deus do céu, o que era aquilo? Aqueles pés e quadris se movendo numa velocidade espantosa e com uma leveza tal que dava a impressão de que os dançarinos não tinham peso... Só de olhar pra seus pés ficava tonto, achando aquilo tudo muito mais complexo que uma daquelas equações matemáticas cabeludas que, quando garotos, somos obrigados a decorar apenas pra tirar nota boa nas provas. E o tango? Nunca vi nada que se aproximasse tanto à magia do sexo quanto aqueles olhares, movimentos, giros, contorcionismos, poses e pernas... e que pernas!!!

Daí que um dia, quando já me considerava um portador de necessidades especiais por autossugestão, descobri que Deus havia se equivocado comigo. Sim, eu era capaz de dançar! Só que Ele, talvez muito atarefado naquele dezembro fatídico, em vez de fazer meu cérebro enviar as funções de tal competência a minhas pernas, por alguma desatenção divina que desconheço, acabou ensinando-lhe o envio de tais sensoriais mensagens a... minhas mãos! De maneira que eu danço, sim, mas com as mãos! Não, não pensem vocês que saio pelos salões plantando bananeira como um Fred Astaire que sofreu um 180º! Não, a tal dança é mais densa.

Deu-se quando descobri que podia escrever canções. E o que vem a ser isso? Pôr palavras encadeadas em melodias, harmonicamente, respeitando sua sonoridade, seus significados, sua tonicidade, seus predicados, enfim, sua vontade. Palavras essas que seriam cantadas por pessoas que fazem dançar outras pessoas. E lá estavam minhas palavras, dançando em bocas alheias, agarradas a melodias num rala e rola do qual eu nunca me supusera capaz. E incansáveis, encantáveis e encantadas, cantadas aos quatro cantos, em intermináveis salões (sem falar que minhas mãos sempre souberam dançar sobre curvas superfícies receptivas ao toque, mas tal baile pertence a outra crônica).

Claro que às vezes elas só fazem dançar mentes (ou corações), mas, quando há ginga e flexibilidade, tudo é capaz de dançar, até mesmo teclas de um computador, gizes rabiscando lousas, sprays violando muros, canetas desenhando versos (e universos) desvirginando papéis; afinal, este é o papel das dançarinas palavras. Ok, ok, reconheço que tudo isso pode apenas ser uma resposta intelectualoide e empolada, feita à medida pra mascarar o mau uso de minhas pernas. Afinal, quando uma mulher quer REALMENTE dançar, se o par não estiver a postos, sempre haverá, como bem o disse Chico Buarque, "atrás dessa mulher, mil homens, sempre tão gentis". Afinal, continuando, "por trás de um homem triste há sempre uma mulher feliz". Nessas horas de nada valem minhas mãos dançarinas. Dancei!


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4 comentários:

  1. ahaha! Texto delicioso! Ei... mas dançar é bom demais! :)

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    1. Tenho certeza de que deve ser, Anja! Hahaha!

      Valeu!

      Beijão do
      Léo.

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  2. quem nao gosta de samba bom sujeito não é...

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    1. Eu gosto de samba, sr. Anônimo. Eu não gosto é de dançar. ... e também fico meio descontente quando dialogo com quem não se apresenta.

      Abraço,
      Léo.

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