O tema de meu TCC (tese de conclusão de curso) na faculdade, De Noel a Gardel – um Samba e um Tango, foi fruto de um equívoco, aliás, dois. O primeiro foi que, segundo me constava, Noel Rosa e Carlos Gardel, sagitarianos como eu, faziam aniversário no mesmo dia, 11 de dezembro. Algum tempo depois, já com minha tese avançada, e lendo a biografia de Gardel pra me auxiliar, descobri que o nascimento do muchacho é até hoje envolto em mistério e suposições. O segundo equívoco foi que, como eu trataria em minha tese de uma letra de cada um (um samba e um tango), exploraria as qualidades de letrista de ambos. Só que... Gardel não era letrista!
... tinha muitos parceiros que lhe escreviam letras, entre eles o mais importante fora Alfredo Le Pera, que, coincidentemente, era brasileiro. Aliás, não sejamos ufanistas, Le Pera nasceu, digamos, em trânsito. Seus pais voltavam à Argentina de uma viagem que haviam feito à Europa, mas, como estivesse sua mãe grávida, resolveram parar em São Paulo pra que ela desse à luz. Dois meses depois já estavam de volta a Buenos Aires. Ou seja, Le Pera foi brasileiro por dois meses.
Mas voltemos a Gardel. Ainda que meu TCC estivesse equivocado em sua base, continuei com o tema, já que em seu cerne se justificava: Noel e Gardel foram ambos divisores de águas em relação à música em seus respectivos países. Noel modernizou o samba e influenciou (e continua influenciando) gerações, tanto que quando Chico Buarque apareceu foi chamado de "o novo Noel". Já Gardel é até hoje o ídolo maior da canção argentina, responsável por exportar o tango ao mundo.
Mas, como sobre Noel já escrevi (aqui), tratemos de Gardel. ... e do tango, visto que ambos se misturam e se (con)fundem. Apelo pra Marcos Aguinis, consagrado escritor argentino que escreveu o belo e cruel ensaio El atroz encanto de ser argentinos, livro que, como o título revela, trata do sentimento contraditório de ser argentino, no qual ele analisa a derrocada argentina de inícios do século passado até os dias recentes. Este livro serviu de referência pra meu TCC. Vejamos o que ele diz (a tradução é minha, perdón):
Mas, como sobre Noel já escrevi (aqui), tratemos de Gardel. ... e do tango, visto que ambos se misturam e se (con)fundem. Apelo pra Marcos Aguinis, consagrado escritor argentino que escreveu o belo e cruel ensaio El atroz encanto de ser argentinos, livro que, como o título revela, trata do sentimento contraditório de ser argentino, no qual ele analisa a derrocada argentina de inícios do século passado até os dias recentes. Este livro serviu de referência pra meu TCC. Vejamos o que ele diz (a tradução é minha, perdón):
"O tango interagiu com nossa mentalidade; demos a ele e ele nos deu: cacoetes, filosofia, crítica, ironia, preconceito e amarga beleza. É um gênero musical, literário e para dançar e nasceu às margens do Rio da Prata, de onde se espalhou para o mundo com a força de um maremoto em princípios do século XX. Disputamos sua origem com o Uruguai, mas Uruguai e Argentina formaram durante séculos um só país, e o debate não tem o menor sentido. Convenhamos que é rio-platense, portenho, e que se tornou tanto uruguaio quanto argentino. Talvez pelo fato de nosso país ter maiores dimensões, passou a ser chamado tango argentino."
Outro parágrafo interessante é este: "É mais provável que o tango tivesse crescido em diversos bairros da periferia […], em improvisados salões de baile (alguns com piso de terra) e bordéis. Sua origem social era pobre, marginal e, inclusive, semitransgressiva. [....] Só alguns anos mais tarde o tango e sua música invadiram o Centro, onde se instalou em cafés e pistas de dança, incluídos os da rua Corrientes. Esta rua tem um significado quase lendário para a tradição do tango, […] foi a rua para onde se mudaram Gardel e sua mãe no começo do século XX."
Pois bem, não é minha intenção (nem meu interesse) escrever um resumo da biografia de Gardel aqui, mas, como há elementos dela pouco conhecidos por nós, gostaria de fazer um breve relato sobre eles. Ironicamente, dizem respeito a seu nascimento e a sua morte. Acerca de seu nascimento, a versão mais aceita diz que ele nasceu em Toulouse, França, em 11 de dezembro de 1890, filho de pai desconhecido e de Berthe Gardes. Justamente o fato de ser mãe solteira teria levado sua mãe optar por começar vida nova em outro país, livre da mancha que pairava sobre ela perante a sociedade. Este país seria a Argentina. Daí que seu filho, Charles Romuald Gardes, adaptaria seu nome pro hispânico Carlos Gardel.
Porém, se você perguntar a um uruguaio, ele lhe dirá que Berthe escolheu o Uruguai, mais precisamente a cidade de Tacuarembó, onde seu filho Charles viria a falecer pequeno e onde ela engravidaria pela segunda vez, agora de uma espécie de rico fazendeiro local, que, por ser casado, não assumiria o filho. Daí que Berta (nome que usou após chegar à América do Sul) reutilizaria pro segundo filho a certidão de nascimento do primeiro, tendo então Gardel herdado nome e documento do irmão. No Uruguai essa versão é levada a sério, tendo gerado mesmo investigativas teses de doutorados que provam por A + B a veracidade do fato. Certa vez, quando perguntei a Dany López, um amigo e parceiro uruguaio, o que ele pensava sobre o assunto, ele me deu uma resposta interessantíssima. Disse-me ele: "Acredito que Gardel nasceu no Uruguai, mas escolheu ser argentino, portanto, pra mim, ele é argentino."
Sobre sua morte, sabe-se que ela foi causada por um acidente de avião durante uma turnê que ele fazia pela América do Sul. O minúsculo avião em que ele ia levava apenas sua equipe e seus músicos, além de seu parceiro "brasileiro" Le Pera (que também veio a falecer no acidente). Porém, o avião nem chegou a decolar, em vez disso virou à direita e se chocou com outro que estava já ligado, esperando sua vez. A partir daí começam as versões. Uma delas diz que Gardel teria tido uma discussão com o piloto (que também era o dono da companhia) por causa de uma garota que ambos disputaram, daí que eles, dentro do avião, teriam ido às vias de fato, desgovernando o aeroplano e causando o choque. Uma versão mais assustadora diz que Gardel sobreviveu ao acidente, mas, como teve grande parte do corpo (e do rosto) desfigurada, vaidoso que era preferiu viver anonimamente naquela região, onde supostamente foi visto pelas ruas, completamente desfigurado, tocando e cantando tangos lindamente em troca de moedas...
Todas essas versões (e citei apenas algumas delas), praticamente lendas, servem pra aumentar ainda ainda mais o culto a Gardel. E todos sabemos que os argentinos, fanáticos por seus ídolos, aumentam-lhes as qualidades e lhes subtraem os defeitos, como são os casos de Perón, Evita, Charly García, Maradona, e do prórpio Gardel, por supuesto. Há uma frase, atribuída ao diretor estadunidense John Ford, que cai como uma luva na biografia de Gardel: "Quando a lenda é melhor que os fatos, publique-se a lenda". Tendo tal máxima de Ford em mente, por mais que a data aniversária de Gardel seja contestável, achei de uma bela simbologia que coincidisse com a de Noel, por isso mantive minha tese, e por isso resolvi dedicar a Gardel, e à Argentina, país que aprendi a amar, este texto, com o coração convulso como o de um cantor de tango.
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Noel e Gardel morreram jovens, aquele mais que este, porém, ao contrário do moço de Vila Isabel, Gardel teve tempo de receber flores em vida, fez turnês com êxito por vários países da América Latina, chegou a passar longas temporadas na França, onde foi recebido como a um filho, e atuou em uma série de filmes rodados nos Estados Unidos, alguns dos quais eu tive o privilégio de ver e que recomendo, se não pela excelência, ao menos pelo raro prazer de ver Gardel mais cantar que atuar. Quanto a nosso Noel, não teve a vida envolta em todo esse glamour, mas viveu e morreu como num samba, mais notívago que um morcego e pleno da boêmia malandragem e da alegre tristeza que cabem em sua cadência, em sacro e profano feitio de oração.
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