Durante um período de minha vida trabalhei numa instituição religiosa, e ali conheci um rapaz gente boíssima, um seminarista brasileiro que havia vivido um tempo em Montevidéu e que, por causa disso, falava muito bem o espanhol e, de quebra, conhecia muitos lugares por onde eu havia passado. Essas coincidências nos aproximaram, tornamo-nos mesmo (creio eu) amigos, conversávamos em espanhol, e, conversa vai, conversa vem, acabei lhe falando do uruguaio Mario Benedetti, um de meus escritores preferidos. Naquele momento seu semblante se ensombreceu e ele falou, quase monossilábico, que Benedetti era ateu. Fiquei sem reação, pois pra mim a literatura de Benedetti me passava tanto amor, que o fato de ser ele um ateu significava um mero detalhe. Contudo, pra esse seminarista, fazia toda a diferença.
E, confesso, essa diferença que fazia pra ele foi a mesma diferença que acabou me afastando um pouco da religião católica, doutrina sob a qual cresci. Quando era criança, minha mãe sonhava em ter um filho padre, e esse desejo era tão forte, que eu, com seis ou sete anos de idade, fazia-me de ator e chegava a celebrar missas em casa, pra regozijo materno. Fui, em minha adolescência, um católico praticante, fiz catecismo, primeira comunhão, crisma, frequentava grupos de jovens e tal. E eis que, um belo dia, com 14 ou 15 anos, li O Crime do Padre Amaro, de Eça de Queiroz. Rapaz, foi um chute na boca do estômago (pra não dizer nos bagos)! Senti mesmo ânsia de vômito. Imagine um rapaz semibeato, que enrubescia só por se aproximar de alguma moça bonita (e até hoje enrubesce), lendo tal profana leitura...
O tempo passou, tive acesso a tantas outras leituras, que o romance de Eça ficou parecendo conto de fadas, e acabei me afastando do convívio religioso, pra infelicidade de minha mãe, que viu ir por terra seu sonho de ter um filho padre. E aqui vai o primeiro aparte: a profissão de padre, pra uma alma aventureira, é ótima, pois possibilita que um jovem, com tudo pago, tenha acesso a uma educação inviável à maioria dos jovens brasileiros. Só há um porém: o celibato. E eu, como todo jovem ao descobrir as fomes e (i)limitações do próprio corpo, "sartei" fora. E foi então que comecei a aprender a pensar por minha própria cabeça. E, desses desencontrados pensamentos, cheguei à conclusão de que, se um camarada quer viver o celibato, ok, pode fazê-lo, da mesma forma que alguém decide ser vegetariano. Porém, se isso vira uma imposição...
Três parágrafos depois chego a José Saramago. Querem saber? Acho Saramago muito parecido com o Judas de A Última Tentação de Cristo, de Martin Scorsese, um filme que causou polêmica quando de seu lançamento, mas que me fascinou, por mostrar um Jesus humanizado, com dúvidas e receios, enfim, um cara mais parecido comigo. E Benedetti e Saramago também sempre me fascinaram por tratarem o humano com tanto amor. Sob minha ótica, quem ama, independente de religião, é um ser humano mais importante do que qualquer outro que se julgue digno da salvação só por frequentar uma celebração religiosa. Por quê? Porque um crente negocia com Deus, já um ateu que ama, sem o medo da danação eterna, ama por vocação.
O que me fez pensar em rasurar essas maltraçadas foi ter assistido há alguns dias a José e Pilar, documentário que trata dos últimos anos de Saramago, ao lado de sua esposa. Pois bem, li quase tudo desse autor e acho que poucas pessoas na face da Terra amaram tanto a humanidade quanto ele. Portanto, o fato de ter sido ele um ateu só fortificou, a meu ver, sua "salvação". Raciocinemos: todos nós sabemos que, durante os séculos dos séculos, tudo o que de mais cruel se fez a esse planetinha foi feito em nome de Deus. Claro, sabemos, Deus não tem absolutamente nada a ver com isso, porém... PO-RÉM! ... é fato que a escória do mundo se apossou da ingenuidade da massa crédula pra legitimar guerras e outras pragas. Se pararmos pra pensar, chegaremos à conclusão de que a maioria dos genocidas tratava Deus por tu. Assim como os mais corruptos políticos. Cansei de ver sair nos jornais fotos de gente como Maluf no primeiro banco em missas, nem aí pro papo de os últimos serão os primeiros.
Portanto, sempre quando ouvia Saramago bradar contra Deus, eu conseguia ver não aquele ser benevolente de longas barbas brancas, mas os fdp que tomavam seu santo nome em vão, uma espécie de Deus-Capital. Por isso, depois de ler tantos romances de Saramago, ouso dizer que, dentre todos os livros a que até hoje pude ter acesso, poucos me pareceram mais cristãos que os dele. Dizem que Deus é Amor! E poucos escritores trataram tanto sobre o amor quanto Saramago. O próprio Evangelho Segundo Jesus Cristo nada mais é que uma declaração de amor de seu autor a Jesus... e escrito por um ateu(!). A parada é que, se o mundo capitalista usa Deus como garoto-propaganda, nada mais justo que Saramago, um ateu convicto, use esse mesmo Deus como a encarnação do Mal. Agora, pensemos: quando Saramago clama contra as injustiças do mundo capitalista, nada mais faz do que... pregar o evangelho!
Hoje continuo tendo fé, porém, acredito que, muito mais importante do que eu crer em Deus, é importante que Ele creia em mim! Se eu não for uma pessoa boa, de nada me adiantará crer. Portanto, tenho certeza absoluta de que pessoas como Saramago e Benedetti, que, apesar de terem sido ateus (ou por isso mesmo), amaram a humanidade sem pedir nada em troca, são muito mais importantes pra Deus que 90% dos religiosos que nada mais fazem que pagar a prazo sua salvação. Além do mais, religiosos são muito bons em julgar. Vejam o caso do tratamento aos gays. Certa vez, conversando com um padre mais esclarecido, ele me confessou que a Ciência está em vias de provar que o homossexual já nasce com o gene da homossexualidade e que, no dia em que isso acontecer, a Igreja terá, mais uma vez, que rever alguns dogmas (e Feliciano dirá que a Ciência é o Diabo).
Por último, queria falar um pouco sobre Pilar, a viúva de Saramago. Esta, espanhola e algumas décadas mais jovem que o marido, foi bastante criticada por fãs "beatos", que viram nela uma exploradora maniqueísta, mas não enxergaram que muito do melhor que ele deixou surgiu após esse casamento. Trataram-no como um velho gagá e preferiram, em vez de procurar entender os sentimentos de seu ídolo, apedrejar a mulher que o rejuvenesceu, como se ela fosse a Maria Madalena de um Jesus-Saramago. Este, no fim do documentário, com um sorriso no rosto semelhante ao de um moleque traquinas, olhando pra câmera, desfecha: "Pilar, encontramo-nos noutro sítio". Poucos depoimentos me pareceram tão cristãos quanto este. Estaria ele se referindo ao paraíso dos que creem na eternidade do Amor (Deus)?
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Olá Léo ... como vai? ...
ResponderExcluircurti muuuuito do seu texto !!! ... estoy muy de acuerdo... lo importante es el amor y hacer el bien, y hay mucha gente que siendo atea hace mucho más que los propios cristianos o católicos.... o religiosos....
A mi me da tanta piedra ver cómo, por ejemplo, la gente se abarrota en las iglesias y procesiones en semana santa, solo precisamente por conseguir esa "salvación", personas que se vuelven mágicamente "religiosas" y "creyentes" por un momento, pero que en la vida diaria son otros, con pensamientos malos, sin amor.... Creen que ir una semana al año a "misa" ya es suficiente... Incluso he conocido ya varios cristianos (ortodoxos) que parece que no lo fueran... En fin...
No conozco mucho sobre Saramago, pero desde este enfoque, me dieron muchas ganas de leerlo. ¿Qué libro me aconsejas para comenzar a leer?
Estamos hablando....
Até logo
^_^
Hola, Javier! Sí, hay también los creyentes de ocasión. Pero, bueno, para empezar a leer a Saramago (que, te adelanto, tiene una escritura muy particular), te aconsejo "La balsa de piedra", "Ensayo sobre la ceguera", "Todos los nombres", "La caverna", "El hombre duplicado", "Las intermitencias de la muerte" y... creo que para empezar estos ya serán suficientes. Jajaja!
ExcluirAbrazos,
Léo.
Muito obrigado Léo....
Excluir^_^
abrazos
De nada, Javier. Y cuándo los leas, cuéntame que te parecieron.
ExcluirAbrazos,
Léo.
Parceiro, é incrível ver como temos pensamentos parecidos!
ResponderExcluirJá percebi, em muitas pessoas ateias, a solidariedade e o amor absolutamente incondicionais, e em muitos religiosos, o falso amor e a falsa compaixão.
Lógico que não gosto de generalizações, mas uma amiga ateia me deu a dica. Ela conta que um conhecido, religioso, certa vez perguntou por que ela faz o bem, sem crer em nenhum deus. Ela respondeu que faz o bem porque acredita em fazer o bem. Simples assim.
Tá aí uma pessoa que eu admiro muito! Ela, sem religião alguma, tal como Saramago, é mais religiosa que muita gente que se diz "de fé".
Quanto ao filme, ainda não consegui assistir, mas vou procurar fazê-lo!
Um beijão!
Oi, Danny!
ExcluirÉ verdade. Tanto que padre Zezinho, o Roberto Carlos da Igreja Católica, fez uma canção em que dizia: "Eu sei que da verdade eu não sou dono,/ Eu sei que não sei tudo sobre Deus./ Às vezes, quem duvida e faz perguntas,/ É muito mais honesto do que eu". Sobre o filme, veja, sim. Vai gostar.
Beijos,
Léo.
Bingo!
ResponderExcluirValeu!
ExcluirSaramago não morreu. Ele está dentro de nós.
ResponderExcluirSim, por meio de sua obra.
ExcluirBelo texto!
ResponderExcluirCantei em várias ocasiões em que o Saramago era convidado para falar.
Guardo com especial carinho a memória da inauguração de uma escola com o seu nome, evento em que misturamos tudo: os seus livros, as minha canções, as canções do José Afonso (meu mestre)...
Provavelmente, alguns daqueles adolescentes são hoje homens e mulheres diferentes (espero que para melhor) por causa desse dia.
Valeu, Samuel!
ExcluirInvejo essas suas experiências. Por acaso você já escreveu a respeito em seu blogue?
Abração,
Léo.
Irmão,
ResponderExcluirSaramago era um humanista e os valores humanistas, como fraternidade, igualdade e a própria noção de amor abstrato são fruto do cristianismo. O problema é como o cristianismo vê as diferenças. O filósofo Bertrand Russel no ensaio "Porque Não Sou Cristão", que eu recomendo vivamente, fala que a sabedoria e a bondade de Jesus são superestimadas, principalmente pela forma como ele próprio lidava com as pessoas que pensavam diferente dele, chamando-as de "raça de víboras" que queimariam eternamente no fogo do inferno. E esse modo agir refletiu posteriormente nas religiões cristãs Segundo Russel, Sócrates e Buda, sob esse aspecto foram muito mais sábios.
Parabéns pelo texto!
Marcio.
Poli, mano, nunca tinha parado pra pensar sob esse prisma. Claro que tem lá seu quê de verdade. Sobretudo se pensarmos no radicalismo que impera nas tantas religiões evangélicas da atualidade, que não aceitam nada que não seja o modo como eles pensam (pensam?). Contudo, por experiência própria, preciso dizer que conheço alguns padres que vivem esse amor em seus corações. Acho importante dizer isso. O Catolicismo, como tudo no mundo, tem (e teve) seus percalços, mas vez em quando aparecem pessoas dignas de respeito. Assim como o papa Francisco me pareceu um sujeito bom. Deixemos trabalhar o tempo. Depois vou procurar ler esse livro, pra explorar outro ponto de vista.
ExcluirAbração,
Léo.