Ultimamente, graças às facilidades da internet, tenho visto muitos filmes argentinos, pra manter o contato com a língua espanhola. E constatei que, sim, o cinema argentino é excelente! Tenho lido muito a respeito de certa estagnação do cinema brasileiro, que, inclusive, não tem tido muito destaque em festivais internacionais, ao passo que o cinema argentino vai de vento em popa. O que percebi é que o Brasil virou meio vítima de certos temas recorrentes, como a miséria e a violência, ou, na outra extremidade, comédias descartáveis que são imitações baratas das hollywoodianas. Já os argentinos exploram com maestria um sem-número de temas dos mais interessantes. Contudo, hoje, por acaso, deparei-me com um filme brasileiro maravilhoso, como fazia tempo eu não via: A Máquina.
Apesar de trazer o "selo de qualidade" Globo Filmes, trata-se de um filme poético, lírico, mágico e digno de muitas outras proparoxítonas, inclusive, e também, pelas ótimas interpretações, entre elas a do excepcional Paulo Autran. O filme, dirigido por João Falcão, é baseado em livro homônimo de Adriana Falcão. Pois bem, pra quem não viu, a história se passa numa cidade pernambucana chamada Nordestina, que é tão pequena, que nem aparece no mapa. Os habitantes dessa cidade costumam ir embora, conhecer o "mundo". Só que um rapaz, Antônio, está muito feliz ali, mas sua namorada, Karina, que sonha em ser atriz, também quer conhecer o tal do mundo. Então, Antônio, numa decisão ousada, resolve presentear a namorada trazendo "o mundo" pra Nordestina. O filme me lembrou uma história que meu amigo Sérgio-Veleiro me contou por e-mail há muitos anos. Na verdade, é uma história que já estive por publicar aqui antes, mas sempre deixava pra depois. Finalmente, graças ao filme, chegou sua hora:
Há uns 4 anos atrás estive numa cidade do interior do Ceará chamada Brejo Santo. É uma cidade que fica depois de Juazeiro, Barbalha, Mauriti, já quase divisa com Pernambuco. Um amigo que era juiz numa cidade vizinha havia me convidado para passar uns dias por lá, para tomar alguns tragos e conversar sobre uns assuntos importantes, uma vez que a esposa estaria viajando e poderíamos beber até cair.
Fui. Na noite da minha chegada já ficamos em Brejo Santo (uma cidade próxima da cidade em que ele estava morando - Jati) para as amenidades de sempre. Rodamos pela cidade de Brejo Santo, e ele brincando dizia: "é o lugar mais desenvolvido que tem por perto". A cidade era pequena, tinha uma rodoviária, umas lojas de comércio, um hotel municipal e uma churrascaria onde nos abancamos e ficamos a beber e a conversar sobre assuntos vários.
No dia seguinte, já em Jati, ele tinha uma audiência pela manhã. Como fiquei com o tempo livre, fui visitar a minúscula cidade do interior do Ceará onde ele exercia a jurisdição. Entrei nos botecos, olhei o artesanato local e fiquei flanando pela cidade enquanto a audiência acontecia. Caminhando por uma das ruas entrei na farmácia (a única da cidade) e fiquei conversando com a atendente de 20 e poucos anos de idade.
Ela era morena, tinha olhos castanhos, meio amendoados, e guardava um sorriso nos gestos. Havia naquela moça uma alegria camuflada de tristeza, um jeito de quem guarda a esperança num lugar muito escondido da alma. Digo isso porque havia no seu olhar um mundo de ilusões quando me perguntou: "O senhor é da cidade grande?" Respondi que era de Fortaleza. Nesse momento ela mirou o chão.
Fiquei conversando sobre o tempo, a cidade, o calor, o sertão, a chuva que não vinha e outras coisas comuns. Ela foi respondendo e me contando um pouco sobre o seu dia a dia. Era balconista da farmácia, morava com o pai viúvo, tinha 6 irmãos e 3 irmãs e todos já tinham ido para São Paulo; dizia isso com uma pontada de desprezo. Uns voltaram e ficaram em Pernambuco, dois morreram por lá, outros voltaram para Jati sem nada nas mãos ou nos bolsos, e assim foi me contando a tragédia familiar de pobreza, miséria e esperança que não deu em nada.
Quando fiz movimento para ir embora, pois já passava do meio-dia, ela disse: "Já vai? Fica mais um pouco". Respondi afirmativamente, mas no fundo já não queria ir. Foi quando perguntei: "Você tem vontade de conhecer Fortaleza?" Ela me olhou fixamente e respondeu categórica: "Não, nunca pensei nisso, acho que não mesmo". Fiquei surpreso. Então, perguntei: "Você tem algum sonho?"
Dessa vez ela nem titubeou, não olhou para o chão, nem fez pose categórica. Disse serenamente como se saboreasse cada palavra: "Meu sonho, meu sonho mesmo, é um dia morar em Brejo Santo...". Brejo Santo, veja só. Aquela cidadezinha antes de Jati que eu havia conhecido na noite anterior... Desejei boa sorte e parti.
Por muito tempo pensei nessa menina, nos meus pensamentos e recordações ela ficou conhecida como a menina do sonho possível. Com ela aprendi uma lição que carrego até hoje: o melhor sonho é aquele que está quase ao alcance da mão, ali bem perto e que a gente pensa muito antes de dar o primeiro passo. Como a distância breve entre Jati e Brejo Santo.
Assim, passei a desejar, a esperar e a sonhar com o que está bem próximo de mim, quase ao alcance da mão, porque sonho, sonho mesmo, é o que a gente vai conquistar, mais cedo ou mais tarde, o resto é delírio.
Será que a menina do sonho possível já está morando em Brejo Santo? Desconfio que sim. Se duvidar deve ser a gerente da maior farmácia da cidade dos seus sonhos: Brejo Santo. Que Deus a proteja, para sempre.
***
Essa historia que Veleiro me contou via e-mail gerou uma acalorada discussão em muitos outros e-mails, mas não vou postar tudo aqui, apenas minha resposta imediata, pois assim deixo dois olhares diferentes a respeito de um mesmo tema. Qual será o seu? Abaixo, minha resposta:
Bonita mesmo essa história da menina que queria ir pra Brejo Santo (não conheço acidade nem os arredores). Relida é ainda mais bonita, embora triste. Acho um pouco triste essa coisa do sonho possível. Eu componho porque quero chegar às estrelas. Veja de onde saí e onde fui parar. Vi um programa na TV Cultura uma vez, sobre mendigos, e o repórter, em um dado momento, entrevistou uma criança que havia nascido na rua e lhe perguntou qual era seu sonho. Acriança respondeu, "Morar numa casa com teto". Que triste, é de uma tristeza irmã da dessa moça que queria ir pra Brejo Santo. Minha mãe me desestimulou a fazer faculdade, dizia, "Filho, isso é coisa pra rico. Vá tratar de trabalhar, casar e ter filhos". De fato, nunca fiz faculdade, não sou formado, digo que sou inconformado.
Quando comecei a compor, alguns familiares deram um risinho sarcástico, de descrença. Daí que continuei, contra todos, e, quando obtive o primeiro lugar no festival de Avaré-SP, em 1999, todos ficaram estupefatos, e viram que eu não estava pra brincadeira. Discordando um pouco da lição que você carrega, acho que sonho possível é aquele que perseguimos com unhas e dentes. Amoça querer ir pra Brejo Santo e não mover uma palha pode ser um sonho impossível. Quando eu era jovem e estudava italiano, ir à Itália era um sonho impossível, hoje é um sonho realizado e deu lugar a outros. Pense nisso. Há pessoas que se aproveitam de nossa falta de ambição pra nos escravizar. Veja o pensamento de minha mãe. Eu a amo, mas não vou repeti-lo.
***
Mas a gente muda mesmo (até minha mãe mudou). Hoje não componho mais porque quero chegar às estrelas. Quando muito, pra chegar mais ao recôndito de mim. Ah, e também, embora ainda inconformado, consegui me formar. Em Letras. Brinco que agora sou letrista diplomado. E viva o sonho possível que cada um de nós tem forças pra realizar! Em nome dele, pra finalizar, deixo a vocês um presentinho: A Máquina!
***
Léo!
ResponderExcluirEu aqui já com a manha ganha depois de me deliciar com teu texto e este filme maravilhoso.
Obrigado, parceiro!
Forte abraço
Valeu, Pedrão! Só lembrando que o texto é do Veleiro, eu apenas dialoguei com ele.
ExcluirGrande abraço,
Léo.
Muito bacana Léo. Eu lembro bem que depois desse meu texto, rolou muita discussão que enveredou por outros caminhos, como o do retirante nordestino em sampa. Muito assunto bom, boas discussões. Eu ainda acredito no sonho ao alcance da mão. Eu vivo atrás de possibilidades, das impossibilidades desisti. :-)
ResponderExcluirVelerim, ia responder aqui, mas acho que esse papo ainda dá pano pra muita manga. Acho que futuramente o retomo em outro texto.
ExcluirAbração (e obrigado por tanta troca boa de ideias),
Léo.
Óla Léo....
ResponderExcluircurti muito seu texto.... me encantó !!!
en el mundo hay muchas personas que quieren destruir nuestros sueños.... me ha pasado... pero es la fuerza de voluntad de hacer grandes cosas... sin importar lo que los demás digan, lo que hace que logremos relizar nuestros sueños...
como tu, yo también he podido alcanzar algunos... gracias a Dios, con esfuerzo y dedicación.... y con mucha alrededor burlándose y tratando de sacarlos a uno del camino .. pero bueno ... lo importante es no rendirse...
muito obrigado pelo seu texto.... eu vi os primeiros minutos do filme... gostei ! ... vou olhar mais tarde...
a gente se fala...
^_^
abraços
Gracias, Javier!
ExcluirAsí seguimos, juntos, haciendo este sueño acercarse cada vez un poco más. Y cambiando los usados por nuevos. Jeje!
Abrazos,
Léo.
Léo, parceiro, amei o texto! Já tinha lido a crônica do Veleiro, que é mais um de seus lindos escritos. Gosto muito do jeito como ele escreve, e muito. Assim como gosto dos seus. Mas "a nível de" pensamento, me afino mais com o seu. Essa história do "sonho possível" me soa muito triste. Parece conformismo, como se ela pensasse "não posso sonhar com mais do que isso, então me conformo com esse sonhozinho de padaria mesmo"... Minha opinião, claro.
ResponderExcluirTalvez ele não tenha tinha essa intenção. Pode ser que ele esteja falando apenas em ir sonhando aos pinguinhos, como se ela sonhasse primeiro chegar nessa cidade, pra depois ir (sei lá) pra São Paulo e por aí vai.
Aí já se aproximaria mais do meu pensamento: ir aos pouquinhos, ficando feliz com cada degrauzinho que se consegue subir... :)
Enfim, fica a reflexão!
Um beijão em vocês dois!
Dannoca, casa de ferreiro, espeto de pau. Esse seu comentário parece que foi escrito pelo Hortelino Troca-Letras. Hahaha!!!
ExcluirMas concordo com você. Só não me aprofundei mais, porque pretendo ainda escrever uma réplica por aqui.
Beijos,
Léo.
Relendo esse meu quase maldoso comentário, percebo que eu que devia estar bêbado (ainda mais pela hora em que o publiquei) ao acusar minha amiga revisora de ser "troca-letras". Só pra constar. Antes tarde...
Excluir