sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

Crônicas Desclassificadas: 116) O olhar do ex-careca

Nem bem cheguei ao trabalho, fui chamado à sala de meu chefe, que me disse que eu estava demitido. Olhei pra ele incrédulo, como se estivesse sonhando. Ele veio com aquele papinho de contenção de gastos, crise, não era nada pessoal e blá-blá-blá. Detalhe: era pessoal. Meu chefe nunca gostou de mim (nem eu dele, é verdade), acho até que durei muito. Quando entrei, ele nem trabalhava na empresa. Meu chefe, na época, era um cara legal, tranquilo. Só que, alguns anos depois, ele se aposentou, e o chefe atual (aliás, ex-chefe, visto que estou na rua) foi o escolhido. Tenho cá pra mim que o escolheram porque era o único que não sabia fazer nada. Havia entrado fazia pouco tempo (indicado por um cliente "forte") e não se encaixava em nenhum setor, daí caiu em seu colo a chefia. E agora estava ele ali, tentando manter uma expressão séria, quando na verdade eu sabia que, por dentro, estava se divertindo à custa de minha desgraça.

Saí pra rua desnorteado e andei sem rumo durante um tempo que pode ter sido tanto cinco minutos quanto cinco horas. Parei em frente a um salão de cabeleireiro que era também uma espécie de loja de perucas e fiquei fitando uma delas, que estava na vitrine sobre a cabeça de um manequim. Loira, sensual, máscula, chamou minha atenção de cara. Sou careca. Comecei a perder cabelo quando tinha 30 e poucos. Hoje, com 45, sou completamente careca. Sim, porque passo máquina zero. Não suporto aqueles pelinhos ridículos que teimam em crescer perto da nuca. Não me considero feio, quando tinha cabelo eu era até boa pinta. Só que isso já faz tempo. E na época eu tinha o cabelo preto e crespo. Talvez por isso eu tenha ficado em transe de frente praquela peruca loira. E lisa. Joguei uma moeda pro alto. Se desse cara, eu ia comprar. Deu coroa. Entrei e comprei.

Experimentei-a diante de um espelho. Não combinava comigo. Achei que fosse por causa dos óculos. É, uso óculos desde os 15 anos mais ou menos. Desses chamados "fundo de garrafa". Eles praticamente já fazem parte de mim. Só os tiro pra tomar banho e pra dormir. Só que ali, naquele momento, eles destoavam. Tirei-os e os pus no bolso da camisa. Não deu pra ver como fiquei, pois a vista embaçou, mas imaginei que tinha ficado bem, no que a vendedora confirmou, dizendo que nossa, eu parecia outro homem! Era o que eu precisava ouvir. Estava com a autoestima no terceiro subsolo. Sorri-lhe agradecido, e ela sorriu de volta, um sorriso malicioso. Não, não pude vê-lo 100%, mas imaginei que fosse malicioso. Paguei e saí de lá de peruca mesmo, e com os óculos no bolso.

Nem bem pisei na rua, notei que todos os olhares caíam sobre mim. Mas não eram olhares de escárnio, eram de admiração. Bem, pelo menos foi o que achei, pois, sem os óculos, tudo ganhava um sentido de irrealidade. Aos poucos, fui desencurvando a coluna, dando passos mais firmes, estufei mesmo o peito, encontrei até uma expressão que mantive congelada no rosto, parecida ao sorriso de um vencedor, que lançava à esquerda e à direita, como se eu fosse um político cumprimentando seus eleitores. Estava me sentindo o Brad Pitt. Vi as horas em meu relógio e imaginei que seria a hora do almoço. Como não podia ver com nitidez os ponteiros, podia ser tanto 11h, 12h ou 13h13. Na verdade, acreditei ser a hora do almoço porque meu estômago começava a roncar. E eu não tinha a menor ideia de quanto tempo havia passado depois que eu saíra da empresa.

Entrei no primeiro estabelecimento que vi. Era um McDonald's. Fazia anos que não entrava num – odeio a comida deles. Já ia saindo, quando esbarrei numa moça que entrava. Ela me encarou e sorriu. Era linda! Tinha cabelos cacheados (loiros) e um olhar angelical. Quer dizer, quanto a esse detalhe, não estou seguro. O fato é que não devia ter mais que 15 anos, mas tudo bem, eu não estava fazendo nada de errado. Sorrir pra uma garota que tem idade pra ser sua filha não pode ser considerado pedofilia. Dei meia-volta e fiquei atrás dela na fila. Seu perfume era enlouquecedor (isso eu podia sentir, pois não necessitava dos óculos pra tal). Pedi um x qualquer coisa e uma cerveja. A atendente me lançou um sorriso encantador e disse que não vendiam cerveja. De volta, presenteei-lhe meu sorriso de vencedor e, com condescendência, falei que podia ser uma coca (odeio coca).

Sentei-me de frente pro anjinho cacheado e, enquanto devorava (mais com sofreguidão que com prazer) aquela substância insossa, não podia deixar de notar que seu olhar penetrante não desgrudava de mim. Não fosse o bem-estar que a peruca me proporcionava, provavelmente teria corado. Só que agora não. Eu não era mais careca; era um belo exemplar de macho, loiro, magro, alto, sentia-me mesmo com uns 30 anos. Devorei até a última batata sem tirar os olhos dela. Nesse momento, os raios do sol ricochetearam nos vidros de um prédio espelhado que se podia ver da janela atrás dela e me bateram em cheio no rosto, quase me cegando. Sua silhueta, então, foi ficando um tanto brilhante e disforme, e o esforço visual de olhá-la me cansou a vista, por isso precisei esfregar os olhos por alguns segundos. Quando os abri, ela não estava mais lá. 

Perambulei pelo centro da cidade, não querendo voltar pra casa ainda, pois não estava com ânimo pra contar a novidade pra minha família. Acabei parando em frente a um cinema. O cartaz me chamou a atenção, e resolvi entrar. Sem os óculos, não consegui acompanhar bem a história, mas deu pra perceber que se tratava de um filme erótico. Seria o último de Lars von Trier? Só havia dois ou três gatos pingados na sala, mas mesmo assim uma garota se sentou a meu lado. Foi tudo muito rápido, quando dei por mim, ela estava me brindando com um sexo oral de responsa. Sim, senhor! Mais que um lorde, eu era um nórdico! Fui despertado pelo lanterninha. O filme acabara, as luzes estavam acesas. Notei que ele me olhava um tanto constrangido, só então percebi que o zíper de minha calça estava aberto e... bem, pulemos essa parte.

Não sei exatamente o que me fez tomar tal decisão, mas entrei em casa lindo e loiro. Minha esposa me recebeu com um beijo apaixonado, minha filha adolescente me abraçou e me mordiscou a bochecha; eu estava num comercial de margarina. Tudo fora tão natural, que nem me impressionou o fato de não terem reparado naquele loiro detalhe. Após um banho relaxante e demorado (durante o qual não tirei a peruca), desci pro jantar, que transcorreu maravilhosamente. Minhas duas belezuras estavam espirituosas e bem-humoradas, e tudo o que eu lhes dizia as fazia rir. Antes de dormir, fiz amor com minha esposa selvagem e furiosamente como havia muito não fazia. Dormi o sono dos justos. Acordei com o despertador. Enquanto escovava os dentes, notei que um careca de óculos me fitava no espelho, mas não lhe dei atenção. Arrumei-me rapidamente e saí apressado pro trabalho, tropeçando em vultos do passado.

***

4 comentários:

  1. Coitado, acho que estavam todos zoando dele, a julgar pela imagem da peruca! rs
    Beijos da sumida (mas tô aqui, e ainda em dívida),
    Danny.

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    1. Hahaha! Interessante interpretação, Danny.

      Pois é, cê tá vindo aqui só pagar os juros, né? rs

      Beijos,
      Léo.

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    2. É mais ou menos isso! Hahahaha!
      Beijo!

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    3. O jeito então é aumentar os juros, pra te forçar a pagar à vista... rs

      Beijos,
      Léo.

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