quinta-feira, 20 de março de 2014

Crônicas Desclassificadas: 124) O deslocamento do eu

O duplo secreto
(René Magritte)
Nós, que viemos da periferia, se quisermos "vencer" na vida, temos de aprender a ir ao centro, que é onde as coisas realmente acontecem. Aliás, ir só não basta. Temos de fazer parte dele de forma tão intrínseca, que não dê pra voltar atrás. De forma que ele é que passe a fazer parte de nós. Vejamos um exemplo sob o aspecto geográfico: o Brasil. Seu centro é, efetivamente, a duplinha São Paulo e Rio de Janeiro. Tudo o mais é periferia. Claro que há as periferias próximas, como Minas Gerais e Paraná, que são quase centro, mas fazem parte de uma minoria. Em geral, uma periferia é uma periferia. Uma ponte que cai em Roraima em nada vai influenciar no trânsito de São Paulo. É como se o acontecido tivesse ocorrido em, sei lá, Liechtenstein.

Ponhamos nosso olhar no micro (não no computador, por favor, muito menos no micro-ondas!). A cidade de São Paulo, por exemplo, é um Brasilzinho. Dessa forma, se há uma greve em Votuporanga, pra um paulistano é como se acontecesse em Roraima. Ele não vai deixar de trabalhar por isso. Já pondo nosso olhar no macro, percebemos que os Estados Unidos são um Brasilzão. Assim, pra um estadunidense, se há várias manifestações Brasil afora, eles não vão deixar de ir ao cinema ver o blockbuster (não confundir com black bloc) da vez. Pra eles é como se tais manifestações estivessem ocorrendo em Andorra. Percebem? E por quê? Porque os Estados Unidos são o centro do centro.

Mas vocês, caros e inteligentes leitores de Roraima, Liechtenstein, Votuporanga, Andorra etc., não se sintam diminuídos com meus exemplos. Afinal, dependendo do ponto de vista, qualquer lugar pode ser centro ou periferia. E digo mais, jogando esse joguinho que inventei, o ofendido pode se transformar rapidinho em ofensor. Vejamos: o boa-vistense (natural de Boa Vista, capital de Roraima, desavisado leitor) não vai sair de casa de guarda-chuva só porque está caindo um toró daqueles em São João da Baliza (nem vou dizer onde fica). Do mesmo modo que ninguém vai perder o sono em Vaduz, capital de Liechtenstein, se estiver ocorrendo uma onda de crimes em Ruggell, extremo norte desse país.

E assim por diante. Como puderam perceber, trata-se de um jogo facílimo, consiste apenas em se deslocar do eu-periferia e se dirigir ao eu-centro. E, além de fácil, é divertido, podemos utilizá-lo em praticamente qualquer situação. Mas não se esqueçam de que, como em todo bom jogo, o que vale é a vitória, no caso, "vencer na vida". E, como é muito parecido com o sistema de pontos corridos, todos os pontos que conquistamos na direção do eu-centro jamais poderemos perder. Afinal, nesse jogo não há o famigerado tapetão. O único ponto negativo é que o jogo te escraviza, ou melhor, te vicia. Assim, se, de repente, você quiser desistir, será demasiado tarde.

Por quê? Porque o caminho do eu-centro é sem volta. Porém, não se preocupe com isso. De todos aqueles que vi jogar esse jogo, apenas um ou outro gato pingado quis voltar. Afinal, a vida fora do eu(-periferia) é bem mais interessante. Ah, quase ia me esquecendo de outro detalhe importante: como os exemplos que dei acima, o bom jogador precisa estar completamente alheio a tudo o que for periferia. Assim, se o centro a ser alcançado for São Paulo, apague já de sua memória as pontes que venham a cair em Roraima; se optar por ter como centro os Estados Unidos, lembre-se de que manifestações no Brasil ou em Andorra são infinitamente menos importantes que uma frente fria em Manhattan. E assim por diante.

Mas voltemos: como disse acima, é um jogo que pode ser aplicado a praticamente tudo. Suponhamos que você é um jogador de futebol, mais, um zagueiro, e seu centro a ser alcançado seja a artilharia do campeonato. Ora, você já viu algum zagueiro terminar um campeonato como artilheiro? Nem eu. Portanto, como dizem os pastores protestantes, abandone esse corpo que não te pertence! Esqueça-o. Vá driblando rumo ao ataque e não volte nunca mais! Agora, no caso de uma empresa, o centro é a sala onde o manda-chuva coça o saco. Assim, se você, por exemplo, trabalha num departamento periférico, precisa usar as regras do jogo até alcançar a tão desejada sala. Mas sem pudores, sem olhar pras cabeças nas quais pisa. Como dizem, não se faz uma omelete sem que alguns ovos se quebrem.

Por último, um exemplo anatômico, que podemos utilizar da mesma forma que o geográfico. Suponhamos que você é um humilde morador do coração-periferia e seu objetivo é chegar ao cérebro-centro. Basta aplicar as mesmas regras fartamente demonstradas acima. Afaste-se o mais rápido possível, pegue o primeiro voo e se mande, pois o cérebro-centro estará te esperando com todas as benesses de que só ele é capaz de oferecer (se bem que, nesse caso, muitos preferem escolher como centro a região da genitália...). O único problema desse exemplo anatômico é que, na geografia da anatomia, o coração é que fica no centro. É nesse momento, quando percebemos isso, que o jogo perde a graça. A verdade é que nunca entendi por que na escola do sucesso nos ensinam que o centro é o cérebro, essa região tão... tão... periférica!


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2 comentários:

  1. Muito interessante, parceiro, agimos intuitivamente nessa perspectiva em muitas situações... Em outras, "agimos como gostaríamos de ser, mas reagimos como de fato somos", rsrs.
    Juro que esperava encontrar um link, no final do texto, direcionando ao jogo virtual - não curto games mas esse pode ser um excelente exercício de ampliação de conhecimento e estratégias... Pense nisso, tb.
    Parabéns e sucesso, amigão Léo Nogueira!

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  2. Valeu, queridão! Só uma dúvida: quem seria sua "pessoa física"? rs

    Abração,
    Léo.

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