domingo, 16 de março de 2014

Grafite na Agulha: 22) Mariana Avena e o Raíces de América

Zé Luiz Soares não é um cara de fácil trato; meio fechadão, na dele, nunca foi dado a muitas gracinhas. Confesso que no começo tive dificuldades no lidar com ele. Com o tempo, contudo, fui entendendo-o melhor. O é desses poucos que não andam de mãos dadas com a hipocrisia; opinioso, convicto, jamais fugiu a um bom debate. Um esquerdista à moda antiga, mais que isso, um idealista (e palmeirense, como eu). Não à toa trocou a segurança de um emprego estável pelo risco ao se tornar proprietário (juntamente com Rozana Lima) de uma pequena e charmosa casa de shows no paulistaníssimo bairro do Bixiga, o saudoso Villaggio Café. E o risco mostrou-se tão acertado, que, de tanto abrir espaço a novos e consagrados talentos da boa MPB, Zé Luiz acabou sendo convidado a fundar e dirigir a gravadora Lua Music.

Não bastasse isso, ainda revelou, por meio de seus blogues, a faceta de ótimo cronista. Eu costumava acompanhar seus escritos nos tempos de Villaggio. Inclusive, sou-lhe eternamente grato, pois foi em seu estabelecimento que Kana fez seu primeiro show em solo brasileiro, gratidão que se estende a sua então sócia Rozana e ao não menos querido Mauricio Lyra, que, músico fixo da casa na época, cedeu o palco pra Kana canjear, o que lhe possibilitou a visibilidade. De tanto frequentar o Villaggio (não posso me esquecer de dizer que lá fui levado pelo parceiro Élio Camalle), acabei indiretamente intermediando a relação entre a casa e o Clube Caiubi de Compositores, o que resultou numa bela e saudosa parceria. Mas essa história vai ficar pra outra ocasião.

O fato é que não sei se Zé Luiz se aposentou, o que sei é que se cansou daquela vida que, apesar de boêmia, implicava sérias responsabilidades, e voltou pra São Sebastião, sua cidade natal. Talvez ele tenha ganho, mas nós, os amantes da boa música, saímos perdendo, pois São Paulo carece hoje de casas como a sua, que, apesar de pequena (ou por isso mesmo), trazia, a preços módicos, muita gente boa. No Villaggio vi pela primeira vez gente como Billy Blanco, Luiz Carlos da Vila, Guilherme de Brito, Dona Ivone Lara, Moacyr LuzFiló Machado, meu (futuro) parceiro Vicente Barreto e mais uma infinidade de monstros de nosso cancioneiro. Mas deixemos de nostalgia, que, se continuo enumerando, não paro hoje. Por ora, acrescento apenas que, quando convidei Zé Luiz a escrever um texto pra esta coluna, ele me revelou que tal texto já estava pronto e publicado em seu blogue nos idos de 2007 (aqui). Bastou-me, pois, com seu consentimento, transportá-lo de lá pra cá. Com vocês:


Mariana Avena e o Raíces de América*
Por Zé Luiz Soares


São Sebastião, idos de 1980. No auge dos 17 anos já surgiam traços do modus vivendi ermitão: ao lado das baladas juvenis, da rataria de praia, dos primeiros pileques e primeiras paixões, os momentos de introspecção eram no meu pequeno quarto, onde imperava o system Gradiente. Top dos aparelhos de som da época, seu áudio era hi-fi, tinha AM e FM e era capaz de gravar fitas-cassete direto dos LPs ou do rádio!... Uma maravilha da tecnologia, sem dúvida, paga em suaves - mas suadas - prestações mensais com meu salário de boy do Banco do Brasil.

Ali, invariavelmente, fechava-me durantes horas ouvindo música direto: FMs, cassetes e LPs que comprava ou, na maioria das vezes, emprestava dos amigos forasteiros colegas do BB.

Dos 15 aos 22, naquelas quatro paredes, ouvi e assimilei muita coisa da chamada "MPB de qualidade" que consegui ter acesso à época, obviamente sem internet e morando numa pequena cidade do litoral paulista: os Clubes da Esquina, mais Minas & Geraes, do Milton; Elomar, João Gilberto, Elis, Chico; as coleções da Abril que vinham com livretos; Fagner, Alceu e Djavan começando; Vinicius; o inevitável Roberto Carlos - enfim, esses caras todos.

Mas foi naquele 1980 que caiu em minhas mãos, não me lembro se comprado ou emprestado, um LP diferente. "Música latina", que eu desconhecia: Violeta Parra, Atahualpa Yupanqui, poemas de Pablo Neruda. Lançado pelo selo Eldorado, o disco era uma obra coletiva de nove músicos de diferentes nacionalidades do nosso continente, que adotaram o imponente nome de Raíces de América.

Grandes músicos, arranjos belíssimos - muito bem elaborados e longe do folclorismo tradicional -, e uma densidade impressionante.

Como plus, poemas declamados entre as faixas pela saudosa atriz Isabel Ribeiro, com emoção que arrepiava. Em resumo, um formidável painel sonoro e poético da América Latina que se encaixava perfeitamente naqueles tempos de fim da ditadura.

Foi um sucesso estrondoso, o Raíces estourou no Brasil. Cheguei a ir a um show deles na meca dos espetáculo de então, quando não existiam as grandes casas de hoje: Palácio das Convenções do Anhembi, lotado por milhares de fãs.

De lá pra cá o grupo se manteve, mas com muitas modificações. Lançou, pelo que pude apurar, mais dez discos e ainda hoje faz shows pelo Brasil. Da formação inicial, restaram apenas seu líder, o baixista argentino Willy Verdaguer, e o baterista chileno Oscar Segovia. Estão aí, na batalha.

Pois é, mas o que ficou mesmo pra mim foi aquele primeiro e espetacular LP, que ouvi milhares de vezes. E, dentre as várias vozes que ali apareciam, o casal de solistas foi fundamental para firmar a sonoridade do grupo
.

Um deles era outro argentino, Tony Osanah, figura mais conhecida por suas incursões roqueiras dos anos 60 (era do jovem-guardista Beat Boys, junto com Willy) e 70 - e que hoje mora na Alemanha.

A cantora chamava-se Mariana Avena - também argentina -, que foi "importada" na flor da sua juventude para ser a cantora do grupo.


Zé Luiz Soares
E ela brilhou: seu timbre e sua interpretação eram tão bonitos e marcantes que nunca mais saíram da minha "memoriafetiva" e da de muita gente (não é, mano?...).

Com o bonde da minha vida tomando outros caminhos, depois que me mudei pra São Paulo em 1985, perdi o contato com o trabalho do grupo - e com ela. Mesmo depois, atuando no meio musical e sendo amigo da atual cantora do Raíces, Míriam Miráh (que fez show no Villaggio semana passada), e ainda tendo lançado pela Lua o disco-solo do seu atual solista, o chileno Pedro La Colina, meus rumos musicais seguiram noutro sentido.

Passaram-se mais de 26 anos desde o show do Anhembi, onde foi a última vez que vi Mariana. Lembro-me de que alguns anos depois assisti ao Raíces em Caraguatatuba e ela já não estava.

Pois bem: há algumas semanas, recebi um recado no meu Orkut. De quem? Exatamente: Mariana Avena.

Ali, ela dizia estar radicada aqui na capital há alguns anos, depois de quase uma década morando em Buenos Aires e de ter girado o mundo em carreira solo num bem-sucedido projeto de tangos. Que estava retomando seu trabalho de música latina, inclusive gravando um novo CD. Mais: tendo se decidido, bastou botar o bloco na rua e, em três meses, já tinha quase 400 membros em sua comunidade, a maioria deles saudosos dos tempos de Raíces.

Mariana Avena
Não deu outra: marcamos imediatamente sua reestreia no Villaggio para o dia 20 de outubro, um sábado, o que me deixou imensamente feliz.

Desde então, vimos nos falamos por e-mail e, ontem, ela e o marido Alberto apareceram de surpresa para conhecer a casa e a mim pessoalmente. A empatia foi imediata, realmente uma grande alegria recordar aqueles tempos e fazer planos para o futuro.



De minha parte, farei de tudo para que essa retomada seja vitoriosa. Ídolos da juventude são sagrados.

Mariana Avena, seja muito bem-vinda!

***


*Publicado originalmente em 25 de agosto de 2007.

***

Raíces de América Raíces de América (1980 Eldorado)

Ouça o LP (quase) na íntegra clicando nos MP3:

Lado A
1. Los Pueblos Americanos 
    (Violeta Parra(ouvir MP3)  
2. Zamba de Las Tolderías 
    (Buenaventura Luna) (ouvir MP3)
3. Trecho do poema Canto Geral 
    (Pablo Neruda)
4. Cantor de Oficio 
    (A. Morelli) (ouvir MP3)     
5. La Carta 
    (Violeta Parra) (ouvir MP3)
6. Plegaria Por Victor Jara 
    (Tony OsanahEnrique Bergen) (ouvir MP3)
7. La Telesita 
    (Andrés Chazarreta(ouvir MP3)
8. El Condor Pasa 
    (Daniel A. Robles) (ouvir MP3)
Lado B
1. Guantanamera 
    (Jose Martí) (ouvir MP3)
2. Los Ejes de mi Carreta 
    (Atahualpa Yupanqui) (ouvir MP3)
3. Los Caminos 
    (Enzo Merino – Fredy Goes – Oscar Segovia – Enrique Bergen) (ouvir MP3)
4. Trecho do poema Há Uma Criança Na Rua 
    (Armando Tejada Gómez)
5. Negrita Martina 
    (Daniel Viglieti(ouvir MP3)
6. Disparada 
    (Théo de Barros – Geraldo Vandré) (ouvir MP3)


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Vou ficar devendo o áudio dos poemas recitados. O LP está fora de catálogo, e não o encontrei no youtube (se alguém o encontrar, avise-me, por gentileza). O MP3 das canções acima consegui no site do grupo, que ainda está no ar (aqui).


***

4 comentários:

  1. Obrigado pelo convite e pelas palavras carinhosas, Léo. Apenas uma pequena correção: moro hoje em São Sebastião, o santo é outro. E, quanto à música, vc está certo: desde que fechou o Villaggio, em 2009, dei a missão como cumprida. Abração!

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    1. Zé Luiz, eu que agradeço. Quanto ao nome do Santo, foi um lapso, acho que estava com o Vicente Barreto na cabeça. Hahaha! Já consertei.

      Abraços,
      Léo.

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  2. Linda crônica Zé, e um discaço mesmo!

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