Adoro livros não só pelo que contêm dentro deles, mas sobretudo pelo que está contido a seu redor. Muitas vezes as histórias por trás dos livros são igualmente interessantes: processo de criação, momento que o autor estava vivendo etc. E também as histórias dos leitores em relação a tais livros. Eu mesmo tenho muitas. Qualquer dia conto uma ou outra por aqui, mas hoje vim apenas compartilhar o fruto de um furto meu (autorizado pelo furtado): meu amigo Sérgio-Veleiro, grande poeta e cronista, divulgou no face recentemente uma crônica que ele recém-postara em seu blogue (aqui) na qual contou uma deliciosa e peculiar história em que mesclou amor aos livros e uma vingança inconclusa. Aliás, eu diria que a tal vingança se concluiu, por fim, mas revertida. Estou seguro de que vocês vão gostar. A ela, pois:
Minha primeira vingança inconclusa…
Por Sérgio-Veleiro
Quando ganhei o primeiro salário, lembro bem que saquei o dinheiro do banco e fui para casa com ele todinho no bolso. Não era muito, mas também não era pouco, ora. Os bolsos abarrotados de dinheiro e no rosto uma alegria invencível. Pensei em todas as coisas que queria comprar e não podia. A liseira deixa marcas indeléveis que a gente não esquece, deixa sim. Mas, mesmo com tanta alegria, havia uma vingança inconclusa, um desejo de ruindade me comendo por dentro desde o dia em que o vendedor da Livraria Vozes da rua Major Facundo (centro de Fortaleza) me botou pra correr.
Só porque eu ia lá quase toda tarde ler uns livros sem nunca comprar. Tudo bem que eu não ajudava na comissão das vendas, mas também não atrapalhava ninguém. Lia quietinho, com todo cuidado pra não manchar o livro, em pé mesmo, já que naquele tempo não havia o costume de poltronas nas livrarias. A liseira deixa rastros e cicatrizes. Não tinha dinheiro, mas tinha desejo. E ninguém segura um coração sedento de desejos e esperanças. Ninguém.
Com o dinheiro do primeiro salário no bolso, voltei lá. Fiquei horas lendo um livro em pé, andava pela livraria com alguma dignidade, um pouco arrogante confesso, talvez aquela arrogância que o volume do bolso exibia. Vasculhei vários livros e de vez em quando olhava para o maldito vendedor esperando que ele viesse dizer alguma gracinha do tipo: “cliente que não tem dinheiro que compre livro usado.”
Na época, quando ouvi sua voz trovejante dizendo isso perto de mim, quase morri de vergonha. Conferi discretamente os bolsos depois que ele deu as costas. Queria saber se tinha dinheiro pra comprar pelo menos uns envelopes, mas nada. Só o dinheiro da passagem. Não vou mentir, naquele período da vida eu todo era pura liseira.
Encabulado, coloquei o livro na prateleira e saí devagar. Naquele dia, naquele maldito dia eu jurei para mim mesmo que só entraria naquela livraria com dinheiro no bolso para comprar pelo menos um livro. Nem que fosse um daqueles da promoção que ficavam na entrada da livraria.
O fato é que agora, com o dinheiro do salário abarrotando o bolso, eu estava de volta à Livraria Vozes, a mesma de sempre, rua Major Facundo, quatro horas da tarde, centro de Fortaleza. Andava pela livraria confiante, olhar altaneiro, porte de homem seguro do que quer e procura. Um trabalhador no dia do pagamento disposto a gastar.
Encarei o vendedor de frente, olhos nos olhos, pronto para o ataque. Seria o dia da desforra. O senhor tem Cem anos de solidão do Gabriel García Márquez? Com um gesto mecânico ele assentiu com a cabeça e foi buscar o livro. Irritado, descobri que o vendedor não havia me reconhecido. Quando ele voltou, com a soberba que o dinheiro desperta, zombei: só tem esse? Quero outro.
Ele saiu e voltou com mais dois livros do escritor colombiano. Você vai levar os três? Perguntou o vendedor, desconfiado. Vou sim, qual o problema? Aliás, qual o seu nome? Respondi, puxando pra briga e tentando intimidar a presa. Estava nos cascos, pronto para humilhá-lo, pronto para a vingança há tanto tempo adormecida.
Mas o que se sucedeu foi uma fisgada no meu coração suburbano. Ele encostou os livros em cima do balcão de vidro, deu um suspiro prolongado e desabafou: sempre quis ler esse livro, mas nunca tenho tempo. O patrão é implacável, diz que vendedor que fica parado amanhece empregado e anoitece na rua. Morro de medo. Pensei até em comprar, mas a Aurilene, aquela senhora ali, tá vendo? Ela me disse que ele bota pra fora vendedor que gosta de ler. Onde se ganha o pão não se come a carne, diz ele.
Encabulado, com o bolso cheio de dinheiro e fazendo uma força medonha para não chorar, fui até o caixa onde estava a Aurilene. Andei meio desconfiado com a cabeça oca. Eu havia sido tocado, mistura de ternura e arrependimento. No caminho da saída reparei que o vendedor não era tão velho como eu imaginava, ele estava ajeitando uns livros na prateleira e não viu quando saí da livraria.
No passado, de susto e com medo, saía correndo da livraria quando ele se aproximava, nem olhava direito para o seu rosto, imaginava-o muito mais velho, não sabia sequer o seu nome. Aquilo de alguma forma também me doeu. Nunca sequer havia olhado em seu rosto! A vergonha e o medo haviam me ensinado mais uma coisa: olhe no olho de quem te apavora. Às vezes, o medo é só seu.
Havia alguém ali tão machucado quanto eu, tão desejoso de livro quanto eu. Atordoado, carregando os três livros do Cem Anos de Solidão, fui em direção à Praça do Ferreira. Na sede de vingança, nem reparei que a compra resultara inútil. O que eu faria com três livros iguais?
Sentei em um banco e fiquei por lá, pensativo. Já passavam das cinco da tarde e a brisa nordestina dava um refresco para os meus pensamentos ardentes. Não foi uma, não foram duas. Muitas lágrimas molharam aquela sacola da Livraria Vozes naquele fim de tarde. Nunca o dinheiro pesou tanto no meu bolso e no meu coração quanto naquele dia de um março qualquer da minha vida. Uma mistura de raiva e compaixão, desamparo e revolta, me tomava.
Não sei quanto tempo passou. No fundo eu já sabia o que tinha que ser feito. E fiz. Passei numa papelaria ali perto, embrulhei um dos livros para presente e voltei à livraria. Com vergonha, não consegui entrar, passei em frente olhando de canto de olho. Dei meia volta na esquina e voltei. Dessa vez parei para olhar os livros da promoção que ficavam na entrada da loja, tentando encontrar coragem para o que precisava ser feito.
Não me orgulho de mais uma vez ter sido vencido pela vergonha, essa sombra que me acompanha até os dias de hoje. Pois a verdade é que voltei pra casa com o embrulho de presente e os livros repetidos que denunciavam o meu fracasso. Meu consolo hoje é saber que no dia seguinte postei o livro embalado para presente pelos correios endereçado à livraria. No envelope grande e pardo escrevi no alto: para seu Alberto. E, com aquele medo de não ser entendido, que ainda é meu velho companheiro, escrevi entre parênteses: para o vendedor da Livraria Vozes, seu Alberto, com um pedido sincero de desculpas.
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Show!
ResponderExcluirNé não, Alan?
ExcluirAbração,
Léo.