domingo, 3 de agosto de 2014

Grafite na Agulha: 28) O Rio de Janeiro nostálgico de Zeca Pagodinho

O colaborador do Grafite na Agulha de hoje é o paulistano Raphael Coraccini, um rapagão de 25 anos cujo conteúdo contrasta com a embalagem. Bombado, boa-pinta e com jeitão de surfista, o malandro é formado em Comunicação Social pela Universidade Metodista e trabalha como jornalista e assessor de imprensa. Além disso, é letrista de música popular, como eu, e se autodenomina um apaixonado por música, futebol e questões sociais. Portanto, não foi por acaso que nos fomos acercando quando trabalhamos juntos num ambiente nada propício, uma editora tão furreca, cujo nome nem quero falar, pra não dar azar. Tivemos a sorte de sair de lá com vida, antes que o barco afundasse de vez, e mantivemos a amizade. Rapha me passa uma boa aura de idealismo que espero sinceramente que o tempo não dissipe. Vejamos como vem:


O Rio de Janeiro nostálgico de Zeca Pagodinho
Por Raphael Coraccini

Água da Minha Sede, CD de Zeca Pagodinho gravado em 2000, ficou famoso por algumas canções, como Jura, de Sinhô, que foi tema de novela, e Vacilão e Água da Minha Sede, exaustivamente tocadas nas rádios. Mas há muito mais nas outras 13 canções desse álbum que merecem a atenção do bom fã de samba.

Como um todo, Água da Minha Sede traz o que a poesia e a batucada do Rio de Janeiro têm de melhor. Os diversos autores de largo calibre contemplados nesse álbum, como Bandeira Brasil, Beto Sem Braço e Almir Guineto, retratam o ambiente com rara beleza, além de levarem em seus versos uma malandragem inocente, antiquada para os padrões atuais ou até mesmo para os padrões do início do século 21, quando o álbum estourou em vendas.

O samba como história

Esse louvor ao passado é uma constante na carreira de Zeca Pagodinho. Em todos os seus álbuns, o compositor e intérprete faz questão de cantar o passado em composições novas ou recorrer a velhas composições. A mais notável canção de Água da Minha Sede nesse sentido chama-se Delegado Chico Palha, samba escrito em 1938 por Tio Hélio e Nilton Campolino.

Criada em um momento histórico entre o fim da velha república e o início da ditadura Vargas, a canção retrata, de maneira sutil, o velho coronelismo e as manias ditatoriais das autoridades.

Zeca canta com uma alegria irônica, acompanhado por uma batucada tipicamente carioca, o eterno sadismo das autoridades em comunidades pobres, personificado no Delegado Chico Palha. O militar que dá título à canção encarava o samba como cultura menor e promotora da vagabundagem.

“Os malandros da Portela, da Serrinha e da Congonha/ Pra ele eram vagabundos e as mulheres, sem vergonha/ Ele não prendia, só batia...”

Resquícios de um ultrarromantismo

Raphael Coraccini
O romantismo melancólico também é parte essencial do trabalho. Mesmo quando mudam os compositores, o apanhado geral das composições é sempre semelhante e ardentemente belo. Um amor doído, por vezes desprezado, criador de mágoas, mas interpretado com serenidade. Algo que Cartola poderia chamar de seu.

Esse sentimentalismo é flagrante na composição Pagodeiro Fino Trato, de Carlos Roberto da Mangueira.

“Meu apê de sala e quarto/ Não é mais assim tão farto/ De alegria e amor/ Hoje só o teu retrato/ Na moldura de um prato/ Tem relativo valor...”

A sinestesia na canção

O ponto mais alto da obra, na visão deste admirador, está na canção A Paisagem, que pode ser considerada a síntese do álbum, com uma sensibilidade afiada em sua poesia e uma mistura instrumental sem sobras, que compreende tanto a serenidade quanto a euforia.

Isso tudo proporciona ao ouvinte a capacidade de quase enxergar a poesia. É emocionante a sinestesia que Laudemir Casemiro (conhecido como Beto Sem Braço) e Bandeira Brasil conseguem dar à canção.

Vale mencionar a letra toda:

A planície tão verdejante/ Perfumada com a essência da flor/ A natureza sorria/ Em seu afã de amor/ O povo com galhardia na liberdade que sonhou/ A tempestade se fez/ O céu azul encobria/ A paisagem se perdeu/ Foi-se o dom da primazia/ Mas vibrei com a estiagem/ Quando se fez a miragem/ Vou lançando a poesia/ Tem boi deitado na linha/ Vacas soltas no curral/ Tropeiros de pés no chão/ Se esquivando do lamaçal/ Mugido do boi que guia/ Tornou ao tom natural.

Água da Minha Sede é, portanto, um dos álbuns que mais me emocionaram dentro dos diversos gêneros musicais que acompanho. Outros são mais bem produzidos, mas raros são aqueles que exalam uma verdade tão pura e conseguem despertar no ouvinte emoções variadas dentro de uma mesma canção.

Água da Minha Sede Zeca Pagodinho (2000 – Universal Music)

1. Água da Minha Sede
    (Dudu NobreRoque Ferreiro) (ouvir MP3)
2. Maneco Telecoteco
    (Marques Roberto Lopes) (ouvir MP3)
3. Delegado Chico Palha
    (Tio HélioNilton Campolino) (ouvir MP3)
4. Nunca Vi Você tão Triste
    (Monarco Alcino Corrêa) (ouvir MP3)
5. Alto Lá
    (Zeca Pagodinho Arlindo Cruz  Sombrinha) (ouvir MP3)
6. Vacilão
    (Zé Roberto) (ouvir MP3)
7. A Paisagem
    (Beto Sem Braço  Bandeira Brasil) (ouvir MP3)
8. Perfeita Harmonia
    (Almir Guineto  Bidubi  Brasil) (ouvir MP3)
9. Preservação das Raízes
    (Barbeirinho do Jacarezinho  Luiz Grande  Marcos Diniz) (ouvir MP3)
10. Pagodeiro Fino Trato
    (Carlos Roberto da Mangueira) (ouvir MP3)
11. A Ponte
    (Elton Medeiros  Paulo Cesar Pinheiro) (ouvir MP3)
12. Os Papéis
    (Wilson das Neves  Luiz Carlos da Vila) (ouvir MP3)
13. Shopping Móvel
    (Luizinho Toblow  Claudinho Guimarães) (ouvir MP3)
14. Cabocla Jurema
    (Efson  Nei Lopes) (ouvir MP3)
15. Jura
    (Sinhô) (ouvir MP3)

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Ouça o CD na íntegra:



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2 comentários:

  1. Muito bom! Gostei de saber mais sobre Zeca Pagodinho. Realmente, ele sabe escolher o que canta. Sei de cor algumas dessas musicas disponibilizadas, mas vou ouvir. Obrigada e Parabéns!"

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