terça-feira, 23 de setembro de 2014

Os Manos e as Minas: 17) Madan, eles não sabem...

Madan, meu velho, faz uma semana que você partiu dessa pra... melhor, pior, igual, diferente... sei lá, só sei que faz uma semana que você nos abandonou. Daí que hoje eu levei seu som pra caminhar comigo no Parque Trianon e, enquanto caminhava, tive um insight... Não, procuremos outra palavra... Revelação. É isso! Tive uma revelação! Começou a chover, e foi até bom, porque assim pude pôr na chuva a culpa pelas lágrimas que caíam. Sim, Madan, eu, que estava tão longe de você, senti imensamente sua falta. Uma coisa é termos um amigo morando longe, outra coisa completamente diferente é termos um amigo partindo pra sempre pra ir morar lá onde o wifi não pega, não há sinal de celular, o carteiro não passa e mesmo o tempo parece ser coisa do passado...

É, Madan, dizia eu que tive uma revelação. Eles não sabem, Madan, mas, como sei que estamos sozinhos, vou abrir o jogo: descobri que você não morreu. Não, apenas se libertou das amarras que a vida terrena lhe impunha. Já eles, Madan, eles que não sabem, eles que temem tanto a morte... Eles não sabem que já morreram. A morte mais triste é a morte em vida. E eles, os insepultos, quanto mais mortos estão, mais temem a morte. E por quê? Por medo. Já nós, Madan, nós que convivemos com o medo há tanto tempo, já o temos tão próximo, tão familiar, que nem lhe temos medo mais. Apenas nos acostumamos a sua companhia, como quem convive com uma sinusite ou um coração partido. É, Madan, eles, os mortos-vivos, são aqueles que, quando nos rodeiam, fazem-no apenas pra nos lembrar o quão estamos sós.

Só que eles não sabem, Madan, o que nós já estamos cansados de saber. Eles, na surdina, leem Fernando Pessoa como quem paga os pecados, como quem paga o dízimo. Tomando seu uísque caro, leem que todo poeta é um fingidor, que todas as cartas de amor são ridículas, e, enquanto isso, não cometem seus poemas/cartas/canções por medo de parecerem ridículos, sem saber que há que se escrever uma infinidade deles, ridículos, pra se chegar a um resultado que ultrapasse minimamente a mediocridade. Eles não sabem, Madan, eles não sabem que gozar é fácil, mas que pra fazer gozar há muito o que suar. Eles querem o sucesso, mas não sabem que em primeiro lugar vem a entrega. Eles vestem as mesmas roupas, frequentam os mesmos restaurantes, viajam aos mesmos lugares (sempre na mesma época), mas eles jamais saberão...

Eles jamais saberão que, quanto mais tentamos ter tudo sob controle, mais as coisas se descontrolam, quanto mais tentamos tingir o mundo de previsibilidade, mais o imprevisível nos assola; quanto mais tentamos prender nosso amor (ou nossos instintos), mais ele se(nos) sufoca. Mas, Madan, se eles não sabem é porque jamais saberão. Porque quem é, é; quem não é não é; quem sabe, sabe por instinto, não por diploma. Há aqueles pós-graduados que jamais saberão. E há aqueles analfabetos que já nasceram sabendo. A vida é cruel, é injusta... ou, pensando bem, talvez ela simplesmente tenha sua própria trena de medir justiça. E, assim, às vezes deixa que quem mede se enrosque com suas próprias medidas. É, Madan, eles se abraçam, mas não sabem que todos os pequenos unidos num só abraço não chegam aos pés de Gulliver. E simplesmente porque os pequenos, por mais que saibam construir (e montar em) pernas de pau, jamais conseguirão ser realmente grandes.

E o que é ser grande, Madan? O que é? Só quem é sabe. Há certas coisas na vida que nem o melhor professor pode ensinar. Daí, os pequenos se cobrem com dois ou três casacos costurados com o mais fino ego e nem assim conseguem ser grandes. Na melhor das hipóteses, aprenderão a dar uns passos assim meio capengas, por causa do excesso de peso que levam, mas, quando tirarem essas duas ou três camadas, o que sobrará? Eles acham que o sucesso é fama, mas não sabem que o sucesso é intrínseco a cada um e não pode ser medido pela quantidade de bajuladores que os exaltam hoje, pois estes, amanhã, humilhá-los-ão com o dobro da voracidade com que hoje os elogiam. E não há nada que possamos fazer, Madan. Até porque, em questões umbilicais, o máximo que pode acontecer é o médico saber desgrudar o rebento da progenitora.

É, Madan, eles não sabem que só quem é grande sabe ser humilde, dividir holofotes sem querer fazer sombra ao outro. E você, mais que ninguém, sempre soube disso. Aliás, acho até que talvez você nem soubesse, porque o sabido pode até se fazer de humilde pra ganhar elogios, mas o verdadeiro humilde nem se esforça, não precisa interpretar uma falsa personagem; basta uma fala, um gesto, e tudo fica perceptível. É meio que nem aquele versículo da Bíblia que acho interessantíssimo que diz que "quando der esmola, que sua mão esquerda não saiba o que faz sua mão direita". Se não for isso, é quase isso. Tive preguiça de ir pesquisar. Mas assim foi você. Claro, às vezes você precisava fugir de seus demônios (ou encará-los), mas quem não?

Não à toa, você era admirador dos ensinamentos do filósofo indiano (ou místico, como ele preferia) Rajneesh Chandra Mohan Jain, mais conhecido como Osho. Inclusive, emprestou-me alguns livros dele. Tô tentando puxar pela memória algumas coisas que ele disse que me impressionaram bastante. Ah, lembrei! Uma delas foi que devemos ser como uma árvore, estar com os braços abertos pra receber tanto a chuva quanto o sol, pois só assim podemos crescer como parte da Natureza. Ou seja, quando fechamos os braços pra dor, pra tristeza ou pra tantas outras experiências difíceis que a vida nos proporciona, estamos fugindo do aprendizado necessário que nos torna aptos pra receber com naturalidade as boas coisas da vida. Bonito isso, não? Mas eles nunca saberão...

E você sempre soube, Madan. Afinal, você ia buscar a sabedoria na fonte. E depois se apropriava dela, como se fosse sua. Porque era. Você sabia, mesmo (e principalmente) quando sofria dos nervos, e roubava pra sua pele o calor de animais. Seguiu em frente ainda com a dúvida cobrindo sua vida. Por isso ainda hoje você nos comove. Foi assim que você olhou ilhas dentro de nós: com o aprendiz e com o mestre, no pavilhão de jaspe. Acreditava num mundo livre, mesmo com gosto de sangue e alma. Sabia que é melhor morrer do que perder a vida. Foi bebendo em fogo todos os rios, tanto que nem sabia mais seu nome. Mas sabia que Deus avoa no vento onde deve haver Deus. Sabia que tudo é risco e que leão de zoo tem os olhos tristes. Conhecia bem nosso tempo de pedra e foi à luta sem ser mártir. E, apesar das feridas abertas, dizia não sentir dor nenhuma. E ficou doido no encalço, dominado pelo inominável. Mas você sabia do mundo novo, e soube ser um filho de Deus. Mas talvez o que, em compensação, você não soubesse — e que nós outros sabemos — é que hoje a ave rara é você.

São Paulo, 20 de setembro de 2014.

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16 comentários:

  1. Nossa magnânimo! Que lindo texto! t^chorando até agora! beijinhos

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  2. Bem-vinda ao bloco dos chorões, Daisoca!

    Beijos,
    Léo.

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  3. Lindo texto Leo.
    Bjo grande

    Roney

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  4. Léo, só me resta aplaudir!! Seu parceiro, fan.

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  5. Isso aí, Léo... ele não morreu e está bem melhor que nós agora !

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    1. Oi, Dhara! Espero que ele esteja, sim. Contudo, na dúvida, prefiro ir ficando por aqui mais um tiquim. rs

      Beijo,
      Léo.

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  6. A sua revelação parece conferir mesmo com o original Léo!
    Os mortos-vivos já não sorriem pra vida, apenas debocham dela, como se a meia fina das pernas, deixasse um furo a mostra. Você que conheceu melhor o Madan, soube traduzir com propriedade a natureza da pessoa e do artista simples, que veste seu sonho novo, certo que o melhor da vida ira começar, assim que os vaga-lumes começarem a piscar. Coisas que só os pequenos de alma grande sabem por que, mas não ousam dizer, senão nos versos de uma cantoria.

    Forte abraço Léo Noqueira!

    Muito grato por compartilhar.

    Monsyerrá Batista

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  7. Este comentário foi removido pelo autor.

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  8. Madan era muito especial, muito sensível... Ave rara... Lindo texto, Léo. Saudades dele...

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