segunda-feira, 4 de maio de 2015

A Palavra É: 3) Mentira

A humanidade nunca soube conviver com a verdade. Muitos dos caras que a utilizavam em seu discurso morreram na cruz, na fogueira, na guilhotina, vítimas de balas ou mesmo de solidão. E por quê? Porque a sociedade nos ensina a temê-la. Retrocedamos no tempo e nos lembremos de quando éramos crianças. Vejamos: na maioria dos casos, quando uma criança quebra algo "sem querer querendo", os pais lhe perguntam: "Foi você quem quebrou?" A criança, com medo de levar uma surra, responde rapidamente que não, sem saber que seus pais já sabem a verdade e só a estão testando. Na adolescência, a coisa piora: "Júnior, aonde cê vai?" Ao que o jovem Jr. responde que vai estudar na casa de fulano, quando na verdade vai ver uma garota ou assistir a um jogo no estádio, tomar umas com os amigos etc.

E assim sucessivamente até chegar à fase adulta, quando as mentiras ficam ainda mais graves – porque naturais. O adulto é um mentiroso por excelência, digamos que seja um mentiroso profissional. Mente em todos os lugares aonde vai e na maioria das ocasiões, seja pra preservar o emprego (ou conseguir um); seja pra esconder adultério (ou pra começar um); seja pra não chocar amigos e parentes com os pensamentos mais ocultos que traz no âmago (em contrapartida, amigos e parentes fazem o mesmo); seja pra proteger o filho de algo que ele não está ainda preparado pra saber; seja pra tirar partido de uma situação; seja no intuito de fazer o bem a terceiros; seja pra que a mulher não fique brava ao saber que a hora extra que o marido fará ocorrerá na verdade num bar; enfim, seja __________________________________ (preencha sua própria lacuna).

A própria História da humanidade é feita de mentiras repetidas que acabam sendo assimiladas e viram verdades. Claro, porque ela é escrita pelos vencedores; raramente temos acesso à versão que os derrotados têm/tinham dos fatos. Assim sendo, o que se convencionou chamar verdade nada mais é que a versão "oficial" deles, a que gera maior credibilidade. Vejamos um ponto interessante que tem sido bastante discutido ultimamente: as biografias. Querem proibir as biografias não oficiais justamente porque o biografado tem medo de que alguma verdade que hiberna em seus porões possa ser revelada. Já no caso da biografia autorizada, só podem ser publicadas as verdades que o biografado aprova e/ou as mentiras que ele considera verdades.

Assim sendo, obviamente, a mentira, que possui tantos endereços, não poderia deixar de manter algumas dessas residências na política e na imprensa, naturalmente. No caso da política, creio que esta é a mãe de todas as mentiras. Diria mais, a professora, o guru, o SEO. Em primeiro lugar, político que fala a verdade não ganha eleição. Toda campanha política é recheada de informações mentirosas no intuito de engabelar o crédulo eleitor. A técnica é simples: prometer fazer o que o eleitor quer que seja feito. Depois, em se vencendo, a técnica é inventar desculpas críveis pra fazer justamente o contrário do que prometeu. Acredito que muitos nem ajam assim e má-fé (às vezes até dizem meias verdades), fazem-no simplesmente porque é o único modo como nossa política possibilita a vitória do candidato. Só não seria assim se se mudassem as regras do jogo, mas a quem isso interessaria?

Já em relação à imprensa, o buraco é mais embaixo. Como seu poder é muito grande, há vários interesses envolvidos. Em primeiro lugar, a necessidade de fazer dinheiro com o veículo (tanto pra manter funcionários, escritórios, frota, maquinários etc. quanto pra obter lucro, naturalmente) acaba contribuindo muitas vezes pra que uma suposta notícia seja na verdade uma propaganda paga. E assim relações comerciais vão se fazendo e sendo vendidas como verdade, ou seja, notícia. Além disso, todo veículo de informação pende politicamente pra um lado, assim, por mais que se queira vender como isento, basta ter um olhar um tanto mais aguçado pra perceber a má intenção por trás da notícia, a diferença de cobertura que se dá entre um fato e outro e o desejo de, mais que relatar o presente, ditar o futuro. Mas deixemos esse assunto de lado, senão vai faltar espaço. 

Só pra finalizá-lo, podemos recordar como a Rede Globo se aliou aos generais na época da ditadura e tapou olhos e câmeras aos horrores que ocorriam, assim como hoje a revista Veja (invencível na arte de distorcer os fatos) parece estar a serviço de uma ditadura moderna, a da total desinformação. Mudemos, pois, de mentira. Falemos de música. Me vêm à mente Cazuza cantando o genial verso "mentiras sinceras me interessam" ou Erasmo Carlos em sua Pega na mentira ou ainda uma canção deste com Roberto, a genial Traumas: "Meu pai um dia me falou/ Pra que eu nunca mentisse/ Mas ele também se esqueceu/ De me dizer a verdade/ Da realidade do mundo/ Que eu ia saber/ Dos traumas que a gente só sente/ Depois de crescer/ [...] Agora eu sei o que meu pai/ Queria me esconder/ Às vezes as mentiras/ Também ajudam a viver/ Talvez um dia pro meu filho/ Eu também tenha que mentir/ Pra enfeitar os caminhos/ Que ele um dia vai seguir [...]"

Quando eu era criança, costumava ouvir que a mentira tem perna curta, e pode até ser verdade ainda hoje, mas o fato é que ela agora não vai mais a pé, mas a galope, de Mercedes, de jatinho; via ondas sonoras, parabólicas, internet; de boca em boca, por telefone; por torpedo, whatsapp, msn, e-mail; via redes sociais; etc. e tal. Ou seja, não precisa mais usar suas pernas curtas já faz um tempão. Mas além dela há o que se atira, a Bartira, o caipira, o que delira, o que se estira, há quem fira, o que gira, a hora, a ira, a jura, a lira, a mira, a nora, a pombajira, a quentura, o que respira, o que suspira, o que transpira, a úlcera, o que se vira, a ximbira, a ziquizira, sem falar em Fernando Pessoa, que sentenciou: "Dizem que finjo ou minto/ Tudo que escrevo. Não./ Eu simplesmente sinto/ Com a imaginação."

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PS1: Meu grande amigo e parceiro Daniel Ramos, que costuma acompanhar minhas escrevinhações, dia desses, indignado com tanta mentira que anda saindo nos jornais, não me sugeriu uma palavra, fez-me um desafio: "Escreva sobre a mentira!" Obediente, tasquei a prosa que ora vocês terminam de ler. Não dediquei tantos parágrafos ao tema que deixa Daniel exaltado, até porque, se o tivesse feito (se tivesse optado por falar apenas desse tipo de mentira), aí a palavra já seria outra: em vez de mentira, sujeira.

PS2: Trilha sonora — Manu Chao, Mentira (dele)



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4 comentários:

  1. Puxa vida, Léo!
    Sabe que, domingo, no cemitério, estávamos lá, numa conversa de doido, de repente sai um: "A verdade não existe".
    Fui obrigada a aporrinhar: " Acabou de ostentar tua verdade, de que ela não existe".
    Assim, são as duas, né? A mentira e a verdade, sempre, com muito capricho, vão sendo bem construidinhas. E a gente acaba sendo seduzido pelas duas.

    O texto tá legal, demais!
    beijoooo

    P.S.: Fui no cemitério, só para fazer fotos, juro!

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    1. Hahaha! Certeza que você não foi roubar uns cadáveres? rsrs

      Brincadeiras á parte, a verdade e a mentira são tão complementares quanto o dia e a noite, o bem e o mal, a vida e a morte etc. Só há um porque há o outro. Ou não. rs

      Beijos,
      Léo.

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    2. Caramba! Editei duas vezes meu comentário, e ainda me deparo com um erro! Cacildis! Sabe o que é? Digito muito rápido, e uma mão acaba não concordando com a outra. Então, pra não corrigir de novo (daí eu teria que apagar sua resposta), leia-se "à" craseado no lugar de "á" com acento agudo em "Brincadeiras à parte". Ufa! rs

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