sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

Crônicas Desclassificadas: 171) O Brasil de Jéssica e Val

Finalmente, assisti a Que Horas Ela Volta?, de Anna Muylaert. E, pra ser sincero, foram tantos os sentimentos pelos quais fui tomado, que precisei ver pela vez segunda. Quem escreve e/ou compõe, quando se depara com um espetáculo arrebatador, costuma ser assaltado por um milhão de ideias. E foi justamente o que aconteceu comigo. Fiquei com vontade de dizer tanta coisa, que acabei vindo parar aqui sem nem saber exatamente por onde começar. Mas é sempre bom começar sendo sincero: da primeira vez que vi o filme, não chorei nem gostei do final. Só que fiquei com um desassossego tão sufocante, que me vi obrigado a repetir a dose. E aí é onde mora o busílis de uma grande obra: da segunda vez, chorei várias vezes, e ainda saquei o final; mais, tirei-lhe o chapéu que não tenho e bati palmas de pé sozinho no recinto.

Foi realmente uma pena ele não ter sido selecionado pra disputar o Oscar de filme de língua não inglesa*. Aliás, pena, sim, mas surpresa, não. Afinal, a história trata, com uma rara sensibilidade, desse processo de aproximação entre a senzala e a casa-grande; e podemos dizer que o Brasil ainda é uma espécie de senzala dos EUA, assim sendo, não iria ficar bem pra eles convidar o "escravo" pra se sentar no sofá da sala, né? Claro, eu sei que outros filmes brasileiros já tiveram seus 15 minutos de fama na festa nº 1 da indústria cinematográfica americana, mas quase sempre eram trabalhos que expunham nossas mazelas, e todos sabemos que estadunidense adora ver a desgraça alheia transformada em arte. O que, ainda que em parte, não é o caso desse longa, que, embora trate dos mesmos sintomas, o faz tendo em vista a cura.

Uma grande obra é feita de grandes acertos, e, no caso de Que Horas Ela Volta?, talvez o maior deles tenha sido a escolha dos atores. Sim, o belo roteiro, que evitou excessos e personagens histriônicas, também contribuiu bastante, mas os atores... Pra começar, é preciso conhecer bem o Brasil e entender as diversas "línguas" que coexistem dentro do idioma português brasileiro pra poder ter a dimensão da interpretação de Regina Casé. Taqueopariu! A mulher foi foda, mano! Incorporou, foi tomada por sua personagem, a multifuncional Val. E eu, nordestino que sou e familiarizado com o linguajar dela, peguei-me várias vezes rindo de cacoetes verbais que devem ter passado à margem da compreensão de muitos espectadores oriundos da metade de baixo do Brasil.

Não tive como não pensar em minha mãe, minhas tias – aliás, Regina Casé, que, fisicamente falando, já é a cara de uma tia minha, dentro da personagem Val ficou a própria. Nunca mais vou conseguir olhar pra uma sem a associar à outra... Todos os prêmios de atuação que ela vier a ganhar serão poucos. Mas dona Casé não foi a única. Outro camarada que arrebentou foi Lourenço Mutarelli, que interpretou José Carlos, o frágil e sensível patrão de Val, que, com seu olhar de cachorro magro, conseguiu gerar em mim um improvável sentimento de compaixão por essa personagem perdida, que abdicou de sua arte e passou a acordar todos os dias às 11h e a viver dopado de remédios e fumando escondido pra suportar os fracassos de seu sucesso. Baita ator! Lembrando também que o cara é romancista, autor do livro O cheiro do ralo, que deu origem ao filme homônimo.

Outra atuação de tirar o chapéu foi a de Karine Teles, que interpretou Bárbara, a patroa de Val e esposa de José Carlos. Sua atuação no ponto, humanizando uma difícil personagem, evitou que esta caísse no caricato. O rapaz que fez o filho do casal, Michel Joelsas, também foi bem, mas quem fez a diferença mesmo foi Camila Márdila, bela atriz que incorporou com alma (desculpem a incoerente imagem) a personagem Jéssica, filha de Val, que, pra mim, foi o cerne do filme, a semente da discórdia, aquela que chegou como um furacão tirando os padrões (e patrões) de lugar, a Terra do eixo, arrebatando corações, fundindo a cuca da casa-grande, gerando basbaque na burguesia mal-acostumada... aquela que não soube "se pôr em seu lugar" nem respeitar "alheios" quartos de hóspedes, piscinas, vagas de universidades... e que ainda por cima teve a petulância de chegar de avião!

O filme tocou em muitos pontos nevrálgicos de minha sensibilidade, de meus calcanhares de aquiles. Aquele olhar "da cozinha pra sala" sempre me foi muito familiar. Confesso que, travado que sou no trato com pessoas de posição social superior à minha, em determinados momentos tive inveja da audácia de Jéssica, de seu atrevimento – e também me senti vingado por meio dela –, com sua visão de mundo ampla, sem fronteiras nem barreiras, pondo em xeque um hereditário "não pode" que a classe mais baixa sempre aceitou sem procurar saber os motivos; quando ela desabafou pra mãe um "não sei como você aguenta ser tratada como uma cidadã de segunda classe", senti como se tivesse se dirigido a mim...

Não gosto muito dessa palavrinha spoiler, mas peço desculpas ao leitor se achou que num ou noutro ponto revelei demais o enredo do filme. Acredito que não, mas, se o fiz, não terá sido intencionalmente, foi só que, como não tenho patrão aqui pra me impor limites, acabo escrevendo de acordo com meu senso (dia)crítico. Mas, já que já pedi desculpas, vou tomar a liberdade de terminar tratando de minha estranheza em relação ao final, quando o vi pela primeira vez. Vou tentar escrever de modo não muito revelador... Vejamos... Já sei! Seguinte, como cético (embora paradoxalmente esperançoso), tô mais afetivamente ligado a finais à la Martin Scorsese, e esse me chegou à la Frank Capra, se é que me entendem. Daí, da segunda vez, já vacinado, resolvi dar crédito a um Brasil onde as distâncias sociais podem vir a não ser tão grandes quanto as geográficas, onde as pessoas terão mais tempo pra estar com os seus (sobretudo com seus sonhos), onde, sem entrar no mérito de Regina e Camila, haverá mais Jéssicas que Vals.

***

*Engraçado como a imprensa brasileira insiste em chamar de Oscar de melhor filme de língua estrangeira o que na verdade é Oscar melhor filme de língua não inglesa. Afinal, que língua falamos?

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Veja o filme na íntegra:


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19 comentários:

  1. Adorei o filme, Leo!
    Não sei se já te falei sobre meu coração paulistano, palatavelmente, tão audiente às agências nordestinas.
    Jéssica é minha musa.
    Detesto esse negócio de muros e cercas.
    Acho lindo as moléculas, com aquele movimento todo de elétrons, vários átomos, daqui e dalí, enfim...
    Sobre o final, eu diria, fuga do cativeiro (psíquico), empoderamento, desenvolvimento de identidade, autonomia e continuidade.
    Fofa-se! Vc tb, falou sobre o final, eu tb posso!
    Kkk

    O texto tá ótimo!

    Sucesso pra vc!
    Bjbj

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    1. Vanessinha Curci, você se superou nesse comentário! Daria uma tese! Gostei sobretudo desse imperativo "fofa-se". Espero que não tenha sido erro de digitação, pois ele é lindo! rs

      Beijos,
      Léo.

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    2. Kkk... Não foi erro!
      Eu uso muito o "Fofa-se".
      É um dos meus xodós...

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    3. Ah, bão! Então, patenteie, senão a galera rouba. rs

      Beijos,
      Léo.

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  2. É isso, Léo! Senti exatamente isso que você diz. A única diferença é que assisti ao filme uma única vez e adorei o final! Saí de alma lavada! Viva Anna Muylaert, que fez um filme lindo, Regina Casé, Camila Márdila, Val e sobretudo Jéssica! :)
    Beijos.

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    1. Falou tudo, Danny! Deixou nada pra mim (rs). Passei só pra corroborar então.

      Beijos,
      Léo.

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    2. Nada disso. Foi o contrário que aconteceu! :)
      Beijo grande!

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    3. Hahaha! Compartilhemos as palavras então, Danny! Tem pra todos! rs

      Besos,
      Léo.

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  3. Um filme de arrepiar, do começo ao fim, mas principalmente no final... Aí começa a marginalidade... Um soco na cara do nosso cinismo...

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    1. Falou e disse, Zanatta! É isso aí, "um soco na cara do nosso cinismo"!

      Abração,
      Léo.

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  4. É isso, Léo. Muito bom seu texto.
    O filme é este incômodo nosso que vivemos uma superlativização dos poderes e diferenças de classes, ainda hoje, até na inadequação das "raças"... É universal o tema e vivido por nós a todos os momentos do cotidiano!
    Pra você ver, cheguei a pensar como a Val que se incomodava com as pretensões da filha... ahahah... Cara, é inacreditável, surpreendi-me comigo nesta posição, quando me posiciono como igual a estas pessoas que são tão oprimidas e reforço esta opressão dando este poder distorcido.
    E, pra completar, Val é o nome da minha faxineira, que é uma das maiores amigas que tenho! Pense...!!!
    Seu texto acentuou meu incômodo de acomodado. Muito bom.
    Abração, como sempre, um belo texto!

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    1. Salve, Erico!

      É isso, querido, minha intenção é gerar troca de ideias, pois nessas ocasiões é comum percebermos ideias arraigadas em nós mesmos das quais nem nos dávamos conta.

      Abração,
      Léo.

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    2. Viva a boa arte, que faz com que mudemos de ponto de vista! Por isso amei tanto esse filme! "Um soco na cara do nosso cinismo", como bem escreveu o Walter, aqui em cima.

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  5. Texto iluminador do meu amigo Léo Nogueira
    No blogue tem o link do filme para assistir
    Senti a mesma coisa que você Léo, e o que mais me deixou perplexo foi identificar como que num passe de mágica o que era mais que sabido mas de ficha não de toda caída, de onde vem esse ódio que vemos nas ruas, nas redes sociais? No filme fica claro com "sutileza atroz" a origem desse ódio, quando falo em sutileza atroz me refiro a todo cuidado para não cair na caricatura seja de uma classe ou de outra, a família de classe média nem era das piores, nem era dessas mais escrotas que vemos todos os dias falando monstruosidades nas redes sociais, então fica clara ali em meio a uma família razoavelmente bacana, à moda "casa grande e senzala, a dificuldade de conviver com a nova população que escapou da senzala, do apartheid social, que meteu os pés na piscina, no avião e na faculdade, que saiu dos quartos do fundo de nossa antropologia e foi cuidar da própria vida, dos próprios sonhos e interesses, que descobriu que tinha esse direito e parou de viver a vida e os sonhos de outrem, é o Brasil cidadão de segunda categoria, como disse a Jéssica, que emergiu do governo Lula para a faculdade, para a conquista de direitos, que invadiu o corredor do shopping e o aeroporto, é a Val que descobriu que pode ser Jéssica, que pode estudar, que pode ter seus próprios planos, como disse, o Brasil que põe o preto no branco e o branco no preto, que pões os pés na piscina, no aeroporto, na faculdade, que faz mais pontos que o filho da meritocracia plutocrática, é esse o Brasil que gerou tanto ódio numa burguesia e aristocracia cafona e escravocrata que admite a civilização e a cidadania no primeiro mundo mas não quer ouvir falar disso em sua vida doméstica, é o ódio dos senhores de escravos ao ver os filhos destes disputando vagas com seus próprios filhos nas universidades. Viva Jéssica! O grito de quem fugiu da senzala é voz do passado, o novo grito nem é grito, é apenas a saída educada e silenciosa de uma pessoa que se cansou de viver a vida do outro, saiu dos quartos dos fundos e foi atrás de um lugar melhor na história. EF

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  6. Que bom o filme ter sido disponibilizado na íntegra pra assistir pelo Youtube! Vou ver de novo, e de novo e de novo! :)

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    1. Né não, Danny? Coisa boa é pra se mostrar. rs

      Beijo,
      Léo.

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