quinta-feira, 30 de novembro de 2017

De Sampa a Tóquio: 5) De corvos, cemitérios, templos e indigestão

Começo justo de onde parei na crônica anterior, lembram? Pois bem, às 4h de la matina (29/11; não percam as contas!), depois de quase oito bem-servidas horas de sono, olhei pra Kana, que olhou pra mim, e fizemos cara de "ué". Dormir de novo não valia a pena, visto que estávamos bem descansados. Fizemos uma hora, lemos um pouco, fuçamos na internet, e uma hora e pouco depois saímos pra tomar o café da manhã num restaurante que Kana disse estar aberto 24 horas. Depois de vê-la perder o caminho umas três vezes... Não, não vou humilhá-la. Esse comentário merece um parêntese. Abramo-lo: gente, os endereços aqui são complexos mesmo pra japoneses, imaginem pra estrangeiros. Eu, sinceramente, ainda não consegui entender como fecha essa equação. E olhem que já esta é minha quinta viagem ao Japão! Tenho cá pra mim que, se sair sozinho sem um desses aplicativos de mapas, nunca mais conseguirei me deparar com o prédio de meus sogros — fecha parêntese.

Não, o restaurante não funcionava 24 horas, mas demos sorte, acabara de abrir (na placa, lia-se das 6h às 3h — em japonês, claro). Entramos com uma fome de anteontem e já fomos pedindo um banquete que a custo conseguimos passar pra dentro e que me deixou com dor de estômago até agora. Na saída, e com a desculpa de ajudar na digestão, Kana teve a feliz ideia de me levar a um templo budista que ficava próximo. Caminhamos sem pressa pelo bairro Shinagawa (que é bonito, tranquilo, silencioso e cheio de casas enormes, o que, diga-se, são coisa rara por aqui), que nem parece ficar em Tóquio. Aliás, falando nisso, a bem da verdade Tóquio, como toda grande metrópole, é multifacetada. Há muitas cidades dentro dela.

Chegamos a um grande parque, uma espécie de Ibirapuera sem gente. O lugar era tão lindo, mas tão despovoado, que lembrava aquelas cidades-fantasmas dos velhos faroestes. E aqui, eu, que nunca fui um grande fotógrafo, vou precisar improvisar, pois noto meu blogue vai precisar se tornar também visual, já que há imagens que me são simplesmente impossíveis de descrever com palavras. Mas continuemos o trajeto. Mais à frente, encontrei um solitário velhinho exercitando-se. Ele dava passos lentos pra frente, em seguida engatava uma ré e, meio michael-jacksonianamente, em ritmo de marcha ensaiava uns desencontrados passos de break (essa palavra, só a entenderão os fortes). Deixemo-lo em paz e continuemos a caminhada.

Em determinado momento, Kana precisou ir ao water closet, e não é que havia um à mão? Uma cabine redonda, parecendo uma cápsula espacial perdida no meio do parque. Na volta, falou pra eu ir também. Aleguei que não tinha vontade, mas ela me obrigou assim mesmo, pra que eu visse a tal cápsula por dentro. Fui. E era uma lindeza. Também posso dizer que era uma limpeza. Um banheiro no meio do nada e tão bem cuidado como se fosse um de aeroporto. Deixei ali minha marca numas parcas gotas e seguimos em frente. Subimos uma enorme e curva escadaria e nos deparamos de repente com um filme de terror: enormes corvos saídos de um suspense de Hitchcock grasnavam assustadores "AAAAASSSS" enquanto davam rasantes sobre nossas cabeças, fazendo-nos abaixar como crianças apavoradas.


Estávamos num grande cemitério. E, no meio dele, templos de vários tamanhos, com direito a estátuas (inclusive de demônios), sinos e quetais. Muito cheiro de incenso pairava no ar. Um pouco à frente, jogamos umas moedas (cada país com seu dízimo) numa complexa construção de madeira, batemos palmas, fechamos os olhos e pedimos dinheiro, saúde, felicidade etc. — não nessa ordem. Em seguida, 20 centavos mais pobres adentramos o templo central, que estava igualmente vazio, e quase caio pra trás com a quantidade de objetos de ouro que vi suspensos por toda parte. Quis tirar uma foto, mas Kana me impediu, apontando-me uma placa que proibia tal ato. Além disso, lá dentro, reparei que um monge trabalhava em algo que não soube decifrar. Não me dei por vencido, já lá fora, meio de quebrada tirei uma fotinha só pra provar o que disse.

*


Agora, enquanto escrevo, já é dia 30, são 9h e acabo de tomar café da manhã 26 horas depois de ter comido pela última vez. Ontem, depois dessa peregrinação toda, e com menos de uma semana de minha chegada, o corpo finalmente deu sinais de cansaço. Mal cheguei, fui atacado por fortes dores de estômago e uma ânsia de vômito atroz. Como não estou em minha casa, preferi não apelar pro velho método dos dois dedos na garganta. Preferi, ao contrário, deitar-me, o que não funcionou muito, pois o mundo começou a girar e a ânsia aumentou. Moral da história: dormi sentado. E o dia passou assim, entre um cochilo e outro. O triste é que à noite íamos ao show de Hiroki Koichi — músico amigo de Kana e meu segundo parceiro japonês —, mas, como eu estava muito mal, ela desistiu de ir só e ficou cuidando do dodói.

Hoje, novamente, acordamos às 4h. Parece que por uns dias nosso horário de sono vai ser esse (das 20h às 4h). Estou melhor, mas devo ficar de molho de novo durante o dia, "que à noite eu tenho um compromisso e não posso faltar".

¡Hasta la vista, babies!

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Um PS fotográfico:


um diabinho preso no templo

ouro budista

vai varrendo,
vai varrendo
no fim da escadaria,
o contraste

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