quinta-feira, 6 de maio de 2021

Esquerda, Volver: 31) A eterna luta social (estamos só começando) — Exemplos do Japão

Ultimamente, com o agravamento da pandemia, como tenho tido oportunidade de ler e refletir muito resolvi passar por aqui de novo — e depois de longa ausência — pra resumir o resultado de algumas dessas reflexões. Como a maioria de vocês sabe, mudei-me pro Japão há poucos anos e, portanto, tenho me deslumbrado com o quão rápido este país prosperou, principalmente se pensarmos que depois do fim da Segunda Guerra não passava de uma nação dizimada, e humilhada em seus brios bélicos, sobretudo pelo fato de ter se visto submetida a suportar em seu solo pátrio a presença dominante do exército estadunidense, que fora — ele próprio — responsável pelas bombas que então haviam esfacelado Hiroshima e Nagasaki e reduzido todo o país a escombros.

Hoje, quem viaja ao Japão e se depara com sua exuberância não consegue imaginar como tudo isso se deu em tão pouco tempo. Reflitamos: em 1945, o Brasil estava muito melhor que o minúsculo país asiático onde ora me encontro — que é menor que o estado de Minas Gerais. Ainda mais considerando nossas dimensões continentais, como é possível que hoje sejamos ainda um país periférico e o Japão tenha se tornado uma das potências mundiais? Procurando respostas, cheguei à conclusão de que o governo japonês não vê diferença entre ricos e pobres. Aqui, todos são cidadãos japoneses. E reenfatizo: nenhum é de segunda classe! Claro, uma coisa que facilita isso, e que remete aos tempos da Segunda Guerra, é a etnia. O Japão é um país que preza sua raça.

Tanto que uma coisa considerada surreal pra nós aqui é normal e corrente: os filhos de estrangeiros que nascem aqui não são considerados japoneses(!). Muitos deles, aliás, sentem-se párias, pois não podem ser tratados como japoneses e não possuem vínculo com o país de origem de seus pais. Há uma infinidade de casos em que a criança nasceu aqui; estudou aqui; cresceu aqui; não fala a língua de seus pais nem nunca viajou ao país deles, na maioria das vezes por motivos financeiros; todas as pessoas de suas relações vivem aqui, e obviamente a maioria é japonesa; mas nem assim essa criança, que se tornou um cidadão que paga seus impostos aqui, terá um dia a possibilidade de se tornar filha do solo em que nasceu. Pra mim, particularmente falando, o orgulho étnico deve ser um dos maiores preconceitos a serem combatidos na atualidade. Mas deixemos isso pra outra crônica...

Já o Brasil, pelo contrário, sendo um imenso celeiro de etnias múltiplas que aceita em seu seio todos os expatriados povos, não adquiriu ainda essa consciência a respeito do que seja realmente o povo brasileiro. Então, como seguimos vivendo um estágio intermediário no que se refere a ser uma nação, achamos que uns são mais brasileiros que outros simplesmente por sua condição financeira. Ou seja, no Brasil a classe social define o nível de importância que cada indivíduo possui. Se fulano é de classe média, tem mais direitos constitucionais — contrariando a própria constituição — que beltrano que nessa pirâmide se encontra numa das camadas sociais mais baixas, financeiramente falando. O que, na pior das hipóteses, tem seu aspecto positivo, que é justamente o de gerar a consciência social. 

Explico: quanto mais injusto é um país, mais surgem em seu seio indivíduos capazes de tirar o olho do próprio umbigo e mirar um horizonte que, embora distante, propicie melhores condições sociais. Nossas mais de duas dezenas de anos sob a tirânica regência ditatorial são um perfeito exemplo do que quero dizer. Naquela época, muitos jovens — alguns deles filhos da burguesia — largaram tudo, família, escola, emprego, e se dedicaram à luta armada. Pra eles, o ideal de um país mais justo estava acima de confortos comezinhos. E não foram poucos os que pagaram com a própria vida por tal "disparate". Hoje, menos de 30 anos depois de termos conseguido por fim trazer de volta a democracia, se pararmos pra pensar, quantos jovens estariam dispostos a arriscar o pescoço em iguais aventuras quixotescas?

Resumindo, o que quero dizer é que quanto mais conforto temos menos nos vemos dispostos a arriscar tudo por uma ilusão de justiça. Foi em parte isso que fez que emergisse o bolsonarismo. Mas estava eu falando do Japão, e aqui a coisa é ainda muito mais séria porque os japoneses, como têm uma vida média com um mínimo de dignidade com o qual nós, brasileiros, nem sequer sonhamos, esqueceram o que significa ser cidadãos e não passam hoje de indivíduos submissos ao sistema, calados, egoístas e incapazes de ir às ruas gritar pelo que quer que seja. Têm, sim — e mais uma vez em geral —, salários que lhes possibilitam trazer pra dentro de suas casas o mínimo necessário, além disso a educação aqui, embora boa, é um tanto, digamos, lobotomizante, tanto que eles são honestos menos por vontade própria que por lavagem cerebral.

Não à toa, a vacinação anticorona nem começou ainda. E não por falta de dinheiro, mas talvez pela tranquilidade governamental, pois os que nos governam aqui sabem que ninguém vai sair por aí dando nenhum pio a respeito. No máximo, resmungarão. As maiores críticas talvez venham do exterior, porque, se o Japão lutou tanto pra trazer as olimpíadas pra cá, este deveria ser um motivo a mais pra que toda a sua população fosse rapidamente imunizada. Não quero demonizar o Japão, meu intuito é somente alertar que nossa luta social está apenas começando, estamos engatinhando ainda. Pois há vários modos de calar uma sociedade. No caso do Brasil sempre foi por meio do medo. Já no caso do Japão, um razoável conforto e o poder aquisitivo pra comprar certos brinquedinhos eletrônicos bastam.

Pra que o Brasil um dia se torne uma nação mais justa e ao mesmo tempo poderosa, é imprescindível que estude os erros e acertos dos países mais avançados e possa, por meio desse aprendizado, ter elementos pra escolher que país quer ser e com quais cidadãos.

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PS: Como bônus, trago-lhes uma excelente entrevista que Fernando Haddad (eu amo esse homem!) concedeu a Gabriela Priori no canal do YouTube desta e que me deu o empurrão final pra escrever estas linhas.


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