Tive um pesadelo tão real (e surreal) na madrugada de hoje, que ainda no metrô, indo trabalhar, comecei a anotá-lo, pra não esquecer. Chegando ao trabalho, avisaram-me a respeito do tsunami que devastou parte do Japão e no mesmo instante comecei a tremer dos pés à cabeça, dada a coincidência do elemento do pesadelo com a tragédia nipônica. Com um agravante: pra quem não sabe, minha esposa é japonesa, e tenho sogros e cunhada vivendo em Chiba e Tóquio, respectivamente. Graças a Deus estão todos bem, embora estejam sem água e gás canalizado. Mas estão vivos, e é o que importa.
Agora à noite, chegando em casa, pus-me a trabalhar sobre os rascunhos do pesadelo e os transformei num conto, procurando ser o mais fiel possível ao que restou em minha memória. O resultado é o que segue:
Submerso
Por Léo Nogueira
Despertei com água entrando pelas narinas e notei que meu quarto estava com ela até o teto. A meu lado na cama não havia ninguém. Sem tempo pra raciocinar, prendi a respiração e, num impulso, saltei até a janela, abrindo-a num sopapo, e pulei pro lado de fora, que, pra meu espanto, também estava submerso. Contive o desespero e, da melhor maneira que pude, procurei nadar pra cima, rumo a uma superfície que eu nem sabia mais se estava lá.
O breu me cegava e causava certa fobia. Mau nadador, fui dando braçadas estabanadas e descoordenadas que pareciam não me levar a lugar algum. Não estava conseguindo mais prender a respiração e via que a qualquer momento o pior aconteceria. Subitamente me deparei com uma atmosfera densa e cinzenta, como se estivesse atravessando nuvens, sem, contudo, ter alcançado a superfície. Não resistindo mais, rezei uma oração inventada, abri a boca e entreguei os pontos (e a alma). Tudo estava acabado.
Então o imponderável atingiu as raias do impossível. A água começou a entrar por minhas vias respiratórias e... Por elas sair, como se fosse ar, ou melhor, como se eu fosse um espécime aquático qualquer. Meus olhos passaram então a, lentamente, se adaptar à escuridão. Senti-me personagem de Jules Verne em Viagem ao Centro da Terra, pois percebi que estava submerso dentro de uma espécie de vulcão ou coisa parecida.
Morto de cansaço, desisti de minhas braçadas e deixei-me ficar em posição horizontal, visto que percebera que não estava afundando. Não sei por quanto tempo fiquei nessa posição (acho que cheguei mesmo a cochilar), até que de repente senti sob minhas costas terra firme. Mas ainda estava debaixo d'água! Caminhei sem destino durante o que me pareceram horas até me deparar com uma cidadela. Não sabia se era dia ou noite, mas a dúvida durou pouco tempo, pois reparei que as luzes dos postes estavam acesas... Mas eram negras!
Naquele instante tive presença de espírito pra olhar pro céu, e o que vi me causou calafrios por todo o corpo: Brilhando num tosco firmamento (se é que se pode chamar a isso brilhar) havia um imenso globo negro rodeado por um sem-fim de estrelas igualmente escuras. Olhei então a meu redor e reparei que não havia cores, tudo era gris. Também não encontrei vivalma. Já não sabia mais se o que respirava era água, pois parecia ter consistência, era como se em vez de respirar eu aspirasse algo pastoso.
Foi então que me pareceu ter visto ao longe um vulto branco. Sim, eu o vira! No meio daquela escuridão, a cor branca se destacava, ainda que fosse um branco opaco. Comecei a segui-lo, mantendo a distância. Não podia enxergá-lo bem, mas me deu a impressão de que, mais que caminhar, flutuava. Examinei a meu redor, tirante a escuridão o lugar se assemelhava a uma cidade-fantasma dessas que apareciam em alguns velhos faroestes. Minto, pensando bem, a semelhança era mais com a Londres do século XIX (ou ao menos a Londres que trago na lembrança por obséquio dos livros lidos). Tanto que não me surpreenderia se de repente esbarrasse com o estripador Jack.
Mas não. Tudo o que se movia se resumia àquele vulto branco. Uma eternidade depois notei que ele parou defronte a um portão. Entrou. Aproximei-me sorrateiramente (o que era desnecessário, pois a falta de som era tamanha, que chegava mesmo a parecer que eu caíra dentro de um filme mudo. Nem vento havia, visto que eu estava debaixo d'água) e estaquei diante da janela da casa. O que vi me encheu ainda mais de horror. Dentro de uma casa normalmente mobiliada, o que parecia ser uma família de aberrações via tranquilamente TV. Contando com o que havia chegado, eram dois adultos e duas crianças, todos vestidos com uma espécie de manto branco. Só que, no lugar de seus rostos o que havia era uma massa disforme, um borrão, como numa fotografia tirada de alguém em movimento. Não tinham olhos, nem nariz, nem boca, muito menos orelhas! E na TV... Eu podia perceber que estava ligada, mas a única coisa que minha visão podia identificar era também um cinzento borrão.
Finalmente, vozes! Sim, vozes, não palavras. O que lhes saía da boca... Aliás, do lugar onde devia haver uma boca, era um "Mmmmm" que era prontamente respondido por outro igual "Mmmmm", desencadeando todo um diálogo de "Mmmmms", sem contar o "Mmmmm" contínuo que saía da TV. Todos monótonos, sem expressão nem alteração de altura ou velocidade. Não suportei. Senti que enlouquecia e gritei:
"Mmmmm!"
Pavor! Minha voz não saía! E além disso eles me viram! Ou melhor, voltaram-se em minha direção. Respirei fundo (ou engoli aquela gosma incolor) e, enquanto me preparava pra correr, tentei manter a calma, pensar... Lógico! Se eu estava submerso, por que então não nadar? Uma última e furtiva olhadela antes do "mergulho" (?) me mostrou que eles estavam praticamente a três passos de mim. Lancei-me na água-ar-espaço-gosma-ou-fosse-o-que-fosse e... Senti um lampejo de êxtase os milésimos de segundo que durei levitando antes de estatelar-me no chão.
Foi o menor deles o que se aproximou de mim e me estendeu a mão. No auge do desespero fitei-o fixa e demoradamente e cheguei mesmo a nutrir certa afeição por aquele monstrengo, talvez hipnotizado por sua falta de expressão. Deixei minha mão cair sobre a sua e no mesmo instante minha vista embaçou e desfaleci.
Despertei com água entrando pelas narinas.
***
Interessante Léo. Tive a mesma coisa no tsunami de 2004, com a "informação" da alteração do eixo de rotação terrestre. Fato confirmado. Quando conheci o trabalho-pesquisa de Miguel Nicolelis, onde a macaca Aurora com a força do pensamento (nos EUA) movia um robot no japão, devido emissão de suas ondas cerebrais, percebi que isso é natural, banal mesmo. Não nos torna diferentes em nada, tá tudo ligado; daqui umas décadas estaremos habituados a isso sem tanto impacto. Não se impressione.
ResponderExcluirMonica Martins
Atlântida, Léo?
ResponderExcluirOlá, Monica! Grato por sua informação científica. Pesquisar a respeito é algo interessante e importante. Contudo, só a título de esclarecimento, é bom informar que não escrevi o conto acima na condição de "iluminado", apenas quis compartilhar com os amigos algo que me chocou e foi devolvido por minha mente na forma de um pesadelo de ficção.
ResponderExcluirAbraço do
Léo.
Salve, Fernando! Qual seu sobrenome? Só pra saber a quem me dirijo (hehe).
ResponderExcluirAtlântida? Hum... Não, acho que está mais pra aquapurgatório.
Abração do
Léo.
viste la película "Azul profundo" de Luc Besson? (como se llamará en português???)))))
ResponderExcluirMarcela, o filme é "Imensidão Azul" e foi exatamente o que me lembrei na descrição do quarto que começa a se encher de água. (E sempre achei esta cena fantástica e assustadora - será que Luc Besson também não teve uma experiência dessa que ele conseguiu realizar tanto no quarto submerso como com o mergulhador que se entrega ao golfinho em plena "escuridão gris"?)
ResponderExcluirLéo, o conto está ótimo, a sensação é incômoda demais, e também SEMPRE tenho sonhos malucos assim quando acontecem estas tragédias, ainda mais quando há pessoas que tenho relação afetiva. Obviamente, o corpo continua em sofrimento após estes sonhos...
Interessante a observação de "Atlântida" do Fernando. Se o que está sendo imerso hoje se torna esta densidade, como seria Atlântida, senão um "aquapurgatório"?
(O que seria a existência senão a grande mistura de todos estes conceitos?)
Valeu por mais um ótimo conto!
Abração
erico
Marce, o Erico chegou na frente e já respondeu, né?
ResponderExcluirInteressantes as explanações dos comentários. De quebra, ficam registradas aqui não como filosofias de botequim, mas de... "bloguim"?
Doravante vou tentar transformar esses sonhos malucos que me acometem em contos. Lembram-se de "Sonhos", de Kurosawa?
Beijos do
Léo.