sábado, 19 de março de 2011

Crônicas Desclassificadas: 11) Assento preferencial

Ela era linda! E estava ali, toda sorridente (um sorriso encantador, diga-se de passagem), falando comigo, me dando a maior bola! Sinceramente, eu não sabia o que ela tinha visto em mim, eu, um quatro-olho que de bonito não tinha nada. E o melhor era que eu não precisava nem falar, bastava escutar, porque ela tinha papo por nós dois. E como falava! Sobre tudo! A mina tinha a maior vivência, conhecia metade do mundo, todo fim de ano viajava com os pais pra algum país diferente. E eu ficava pensando, se ela soubesse que o mais longe aonde eu já tinha ido era o litoral sul...

Estávamos na estação Saúde. O metrô chegou. Entramos. O vagão estava praticamente vazio. Era um sábado. Ela, distraída, sentou-se no assento preferencial. Eu, gentilmente, peguei sua mão e a conduzi pra outro assento, afinal, o vagão estava vazio. Eu peguei em sua mão! Tive coragem! E ela veio, como se estivéssemos numa dança e eu a conduzisse. Escolhi outro assento e ela me seguiu, sentou-se e continuou falando... E falando... E falando... 

De repente, algo que não devia passar por minha cabeça intrometeu-se: ela nem teria reparado? Seria mesmo que ela não reparara que havia sentado num assento preferencial e que eu a levara pra outro? Naquele momento um milhão de pensamentos invadiram minha mente. Eu mesmo fui seu advogado de defesa. Pensei em quantas vezes eu, cansado do trabalho, sentara-me no tal assento. Mas aí vinha o promotor: sim, eu me sentava, mas, se alguém que preenchesse as características preferenciais entrasse, eu imediatamente me levantava e dava-lhe o lugar. Sim, mas quem disse que ela não faria o mesmo? Mas o vagão estava vazio! Se ela agia assim com o vagão vazio, que dirá com ele cheio! Sim, mas e se ela, absorta no papo, nem tivesse notado? Isso deveria ser até um bom sinal, prova de que ela tava na minha...

Não sei, não sei... O fato é que ela continuou falando e falando e falando. E nem notou que eu não tava mais prestando atenção, limitava-me a balançar a cabeça afirmativamente e soltar vez por outra um monossílabo. Notei que ela tinha os dentes tortos. Mas, e daí? Os meus eram amarelos. A verdade é que eu dei uma viajada. Pensei em nós dois passando os anos juntos, e eu discordando de tudo o que ela falava, mas sem coragem pra dar minha opinião. Quando fôssemos ao cinema, ela escolheria o filme (e seria uma porcaria duma comédia água com açúcar); quando saíssemos pra jantar, ela escolheria o prato; quando fôssemos viajar, ela escolheria a cidade... Mas isso não era nada. Muito provavelmente, em época de eleição, ela deveria votar no candidato oposto ao meu. E mais, devia torcer pra todos os times, menos o meu! Não, não, isso não ia terminar bem...

Comecei a reparar que nós não tínhamos nada em comum. Ela usava roupas caras, eu parecia um mendigo. Só de mesada ela devia ganhar muito mais do que eu trabalhando que nem um camelo. Além disso, ela devia ser uns quatro ou cinco anos mais nova que eu. Devia ser do tipo dessas que procuram um "ficante". Enquanto eu queria algo sério. Mas, peraí... Afinal, o que eu vira nela? Uma babaca filhinha de papai que, mesmo tendo estudado nas melhores escolas (cuja mensalidade devia ter sido uma fortuna!), viajado o mundo e o escambau, não tinha a menor noção de cidadania. Quem ela pensava que era? E por que ela não calava essa maldita boca? Além do mais, percebi que a voz dela me irritava. Por que ela tinha que falar tão alto? Todo mundo no vagão tava olhando pra gente. 

Sem que eu pudesse evitar, fiquei com a maior vergonha. Acho mesmo que ruborizei. Que merda! Eu ruborizei! Por que ela não calava essa porcaria dessa matraca?

"Oi! Ei! Cê tá me ouvindo? Acorda, meu! Pô, cara, eu tô aqui faz umas seis ou sete estações falando com você e você nem tchuns! Qualé? Diz aí o quê que tá pegando?"

Eu fiquei em silêncio. Queria dizer um milhão de coisas, mas não saía nada! Nada! O máximo que consegui foi dar uma olhada de esguelha pro assento de onde a arrancara estações atrás. Ela notou. 

"Pô, que maus, hem? Passei da estação onde ia descer faz tempo! E você nem pra perguntar meu nome, pedir meu telefone, sei lá... Essas coisas..."

Tentei sorrir e notei que meu rosto estava pegando fogo. Ela segurou minha mão e colocou entre as dela. Fez um carinho. Ela fez um carinho na minha mão! Deu até um sorriso, aquele sorriso encantador! Então, se levantou e foi me conduzindo... Até o assento preferencial. Me fez sentar nele. De repente as portas se abriram e ela saiu, ainda sorrindo. Soprou-me um beijo. Lembro como se fosse hoje que era a estação Liberdade. Nunca mais a vi.

Desde aquele dia, toda vez que eu pego o metrô, esteja cheio ou vazio, me dá a maior vontade de me sentar no assento preferencial. Chego mesmo a ensaiar em pensamento como seria tal gesto. Mas aí sinto o rosto se incendiar e acabo ficando em pé. E com a maior raiva! Pelo menos fico na porta (mesmo quando ela abre), que é o máximo de transgressão que consigo.

***

Livremente inspirado em um acontecimento real.

3 comentários:

  1. Ah Léo, que "bobaginha" mais fofa! Vou levar para trabalhar com meus alunos adolescentes!

    Você sabe que eu também viajo na maionese com os personagens do metrô? Tem cada figura que dá uma crônica mesmo.

    Adorei. Como sempre.

    Beijão

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  2. Léo querido,

    você me faz viajar com seus textos!!!

    Beijocas!

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  3. Oi, Júlia! Que honra! Use e abuse. Taí, qualquer dia escrevo o "Romance do Metrô".

    Oi, Lulu! Brigadu!

    Beijos do
    Léo.

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