segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Crônicas Desclassificadas: 49) "Pra que discutir com madame?"

Há alguns anos tive que ir a algumas escolas cumprir x horas de estágio, pra conclusão de meu curso de Letras. Eu, que nunca vira com bons olhos a possibilidade de vir a me tornar um professor, assassinei de vez tal hipótese depois da experiência obtida naquelas poucas (muitas) horas. De um lado havia as escolas públicas, onde a gritaria era geral, parecia que eu estava dentro de uma fábrica, tanta era a poluição sonora. Se fosse escolher ser um professor do ensino público, teria que trabalhar com protetor auricular pra evitar o risco da surdez.

Em contrapartida, havia as escolas particulares, de tom mais, digamos, asséptico. Tudo cheirava a irrealidade, como se eu adentrasse uma escola de país de conto de fadas. Mas foi justamente numa delas que tive uma experiência que definitivamente mudaria os rumos de minhas escolhas profissionais. Deu-se assim: assistia eu a uma aula de Português numa sala de 6ª ou 7ª série do ensino fundamental em uma das escolas particulares mais renomadas de São Paulo, quando a professora teve a ingrata ideia de dispor a classe numa espécie de mesa redonda que debateria sobre o então em voga sistema de cotas pra negros nas universidades. Detalhe: nos vários dias em que eu ali estive, jamais vi um só negro entre os alunos.

Pois bem, durante aqueles tenebrosos 50 minutos ouvi tantos disparates, que meu estômago embrulhou. Aquelas criaturinhas de olhar angelical, rosto branco, cabelos lisos e uniformes impávidos me pareceram verdadeiros hitlerzinhos, com suas opiniões pra lá de preconceituosas, certamente herdadas dos pais. E o que mais me chocou foi pensar que eu estava ali diante de pessoas que em vinte anos estariam à frente de cargos importantes no Brasil. Cheguei a esboçar alguma reação, mas a pobre professora me desestimulou com um olhar. Depois da aula, disse-me que tentava incutir-lhes certo senso crítico, mas que não podia ir muito longe, pois seu emprego estaria em risco.

E, alguns anos depois, mais precisamente domingo passado (12/08), deparei-me com uma das prováveis mães daqueles garotos, lendo a coluna de Mônica Bergamo no caderno Ilustrada, da Folha de São Paulo. Tratava-se de uma reportagem sobre o "mensalão", feita em plena Daslu. Algumas madames que faziam compras ali foram abordadas pela reportagem e instigadas a dar opinião sobre o assunto. Umas desconheciam o fato (!); outras defendiam os envolvidos, porque seus maridos ganharam muito dinheiro durante do governo Lula; e outras ainda, que compravam utensílios imprescindíveis a seu dia a dia (que custavam bem mais que um salário mínimo), levavam o assunto um pouco mais longe... 

O depoimento em particular de uma socialite (ô palavrinha feia - tão feia quanto seu significado) teve o poder de estragar minha manhã de domingo. É revoltante ver que, em pleno século 21, ainda há "respeitáveis senhoras" com o tipo de pensamento desta, conforme vocês lerão. Pasmem: "Sabe o que é isso [mensalão]? É nordestino querer fazer alguma coisa em São Paulo. E é erradíssimo. Eles têm de ficar lá, em Garanhuns [cidade de Lula], lá no fuuundo do Pernambuco, lá no fuuundo do Ceará. Aqui, não, aqui é de paulista e de paulistano. É por isso que isso está acontecendo". O nome da digníssima criatura: Anna Maria Corsi. Em todo o reino animal não há uma só espécie que mereça ser citada (em tom de xingamento) pra nomear essa madame! E o pior é que ela não é um caso isolado, faz parte de toda uma cadeia alimentar que não faz a menor ideia do significado da palavra trabalho!

O interessante foi que, no decorrer da semana, fiquei atento pra ver se encontrava alguma repercussão nas páginas da Folha. Nada! Passou batido, como a coisa mais natural do mundo (ô, sangue de barata geral!). E poucos dias antes havia lido que escolas particulares estão ameaçando ir à Justiça contra novo sistema de cotas nas universidades, sistema esse agora ampliado, abrangendo não só raça, como também condição social. Oras, essas escolas que vivem às custas do dinheiro de bacanas, responsáveis por essa torpe educação aristocrática, que em pleno século 21 ensina que aqueles que lá estão têm direitos acima dos daqueles que lá não podem estar, ainda por cima querem "melar" avanços conquistados a muito custo? 

Ok, ok, a educação pública anda de mal a pior, mas enquanto continuar esse apartheid as coisas só tendem a piorar. Eu, por mim, mandava fechar todas as escolas particulares (leiam continho que cometi sobre o assunto aqui) e dava educação igual a filho de rico, de pobre, de preto, de nordestino, de índio, de puta, de socialite, de político, de traficante, de chocadeira, órfão etc. Cheguei mesmo a discutir certa vez com uma prima querida por conta de opiniões divergentes acerca dos rumos da Usp. Ela, que estudou a vida inteira em escola pública e conseguiu entrar na Usp e sair de lá bióloga e uma das primeiras da classe, era contra o nivelamento por baixo de sua universidade, ao passo que eu, chutador de balde por natureza, dizia que melhor seria que a Usp descesse do pedestal e se prestasse mais a admitir alunos que não podiam pagar cursos particulares, mesmo que isso acarretasse queda de nível (essa discussão se deu bem antes da questão das cotas).

Ela me respondeu, coincidentemente, o mesmo que essas escolas particulares que querem ir à Justiça agora alegaram: "o governo deveria se preocupar em melhorar a educação básica pública". Concordo, mas é fácil empurrar o problema pro outro, como se ele não fosse também nosso. Tá certo, essa melhora tem que acontecer, e pra ontem! Mas, e enquanto isso? Ficamos de braços cruzados e deixamos milhões de jovens que hoje são vítimas desse fraco ensino virarem mais mão de obra barata? Pô, mas o Brasil é exportador mor de mão de obra barata! Cada enxadada é mais um sem-profissão que aparece, querendo comer e sustentar os (inúmeros) filhos. Se ficarmos esperando a educação melhorar sem pensar nos que já aí estão, ferrou! Não vai ter loja nem obra pra contratar tanto balconista e tanto servente!

Pra finalizar, fugindo um pouco do assunto, mas não tanto, e por falar em Folha de São Paulo, quase daria tema pra outro texto, mas vou resumir aqui: vejam, já é tão difícil educar os jovens, e um jornal como a Folha presta um verdadeiro desserviço com um caderno chamado Folha Teen, americanizado, colonizado e ensinando aos jovens que bom é o que vem de fora. Durante anos lia só pra estar atento tanto ao pensamento dos teens (aagh!) quanto ao da Folha. Depois cansei. Havia gente que escrevia ali que fazia a cabeça da molecada endeusando tudo quanto é banda que vinha de fora e esculhambando nossa música, que é considerada das melhores do mundo. Tá certo que Caetano & cia vez por outra falam muita groselha, mas a consistência de uma obra comentário infeliz nenhum mancha. Agora, ponham no mesmo balaio aquela molecada da escola onde fiz estágio lendo um caderno desses e tendo uma mãe daquelas... Sabe que eu fico com um medo... Mas um medo muito maior que o de Regina Duarte... ME-DO!

Passou da hora de alguém começar a discutir com madame!

13 comentários:

  1. Léo...
    Vc é craque! Ainda bem que não ficou no fuuuuuuuuundo do Ceará...
    É por essas e outras que já tentei, mas não consigo dar aula em escolas particulares, prefiro, e muito, os meus "barulhentinhos" da escola pública...rs
    Ah! Ler "folhas" e "vejas" pra ficar "antenado"? Deus me livre!!! Quem usa antena é televisão...rs

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    1. Hahaha! Só você mesmo, Moreirinha! E, ó, ainda bem que tem gente que nem você, com a sua coragem, dando aula pra essa molecada. Parabéns, viu, meu velho! Não é mole, não!

      Abração,
      Léo.

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  2. Muito medo! Compartilho dessas apreensões. Estes dias fiz várias publicações no face justo sobre a juventude sem noção de hoje em dia. :(

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  3. Léo
    já tentei publicar meus comments aqui varias vezes, sem muito sucesso... acaba que desisto... mas vou tentar agora mais uma vez, pois vc, e seu artigo - hj mais ainda - merecem. E o assunto é da maior importância. Eu estou mesmo assustada com o rumo que as coisas estão tomando neste momento brasileiro... estas pessoas estão ilhadas na sua falta de informação, de lapidação, ou de qualquer mínima consciência social. Já há alguns anos estamos vendo o resultado destes filhotes das multinacionais, agora corporativistas (mega-multi) e seu consumismo alienatório e desenfreado. Nada mais importa par eles. Tenho visto cenas dignas de um relatório/ filme sobre o neo-nazismo, os skins, e a extrema direita... é pra lá de assustador...

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    1. Sonya, querida, na verdade os aristocratas nunca desistiram de ficar com a maior fatia do bolo. Apenas se adaptaram aos novos tempos...

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  4. Leo, acho que ir á raiz dos problemas ajuda muito. O apartheid começa nos primórdios das civilizações. Um pensamento irrompeu no imaginário que se construia: existe alguma força maior que os homens. Depois alguns reconheceram o poder desta força, e criaram imagens pra elas. Os Deuses, e assim na mitologia começa a separação de mundos, o dos Deuses e o dos Homens. Com este apartheid criou-se a falsa idéia de que existia um representante desta força. Ai,Leo, começa a separação de mundos e de privilégios. Os que detiam o poder em nome de Deus, detinham tambem as ameaças com a vida e a morte, porque todos eram muito frágeis e acreditavam no que viam acontecer. guerras, destruições, pragas, fenomenos naturais.. Atribuiam ao Deus, as emoções humanas. Catrastofes são iras de Deus. E isto está bem documentado no primeiro testamento da biblia. Bom segue daí todos os nosso mundo segregado, que não conseguimos nos livrar até hoje. Marilena Chauí em seu livro " Servidão voluntária" descreve muito bem este nosso sistema, ainda hoje de abaixarmos a cabeça ao mundo de poderes!!! Poucas vezes temos reações conectadas contra o mundo de poder.. O homem ainda não acredita em sua força

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  5. o comentário anterior é de Lia Helena Giannechini

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    1. Lia, interessante você tocar no assunto sob esse viés. Ando mesmo há tempos quereno escrever algo a respeito e creio que o farei em breve, daí estenderemos mais o assunto. Por ora agradeço pelo comentário e pela visita.

      Abração do
      Léo.

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  6. Leo, meu caro,
    Não perca a tua manhã de domingo por uma bobagem dessas! hehe É só a fala estúpida de uma madame sem-noção, e que não serve nem como representante das clientes da Daslu, como se viu no painel de entrevistas feito pela dupla de jornalistas da coluna da Mônica Bergamo.
    O preconceito não é privilégio dos ricos. A imbecilidade, infelizmente, se distribui por todas as classes sociais. Vieram da classe média os três estudantes de medicina que agrediram um senhor negro pelas costas numa rua de Ribeirão Preto. Vieram da classe pobre os skinheads que atacaram gays na região da Av. Paulista. Gente agressiva e violenta assim é que dá medo!
    A cadeia de preconceitos é só a face visível de uma patologia social muito complexa. Vai demorar a mudar. A cura para este mal passa por mais e melhor educação, como você bem observou. Pena que o quadro da educação no Brasil não é nada animador, como se viu na última pesquisa Ideb.
    Apesar de tudo, eu tenho esperança em dias melhores. Há sinais de mudança. Até aquela escola das criancinhas racistas, que tanto te assustou, foi capaz de produzir uma campeã nacional de trabalhos escolares contra o racismo.
    Encerro com uma boa notícia (para você): a Folhateen morreu! A última edição circulou em novembro do ano passado. Por outro lado, isto não muda nada. A força da cultura pop anglófona está aí há décadas, perdeu qualidade, mas ainda continua na preferência da juventude mundial. Felizmente, a nossa cultura tem tido força para resistir e dar a volta por cima.
    Abraço

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    1. Alan, meu velho, salve, salve!

      Sim, a imbecilidade se distribui por todas as classes sociais, mas os detentores do poder têm mais culpa no cartório, poi não usam nem uma pequena parcela de seu dinheiro em prol de um mundo melhor. Essa fulana daí de cima, vai lá ver quanto ela gastou na Daslu e vai ver quanto ela gasta em prol da sociedade. A imbecilidade dos mais pobres, embora inaceitável, dá pra ser de certa forma entendida, pela falta de oportunidades, pelas injustiças etc. O segredo, sim, ainda é a educação, mas alguém lá em cima tem que fazer um esforcinho pra que isso vire realidade, ou só nos restará a guerra civil (que, se pensarmos bem, já existe).

      Abração do
      Léo.

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  7. Leo, eu só quero evitar generalizações. Há ricos egoístas, sovinas, mas há ricos do bem que gastam sim "uma pequena parcela de seu dinheiro em prol de um mundo melhor". Já era assim antes, mas hoje em dia o que mais se vê é rico envolvido em mecenato de ongs de cunho social. Há os que fazem para aliviar a sua culpa. hehe A maioria faz mecenato visando isenção fiscal, transformando imposto a pagar em marketing para suas empresas. Mas há quem faça isso de forma sincera. Convém mirar a pedra na pessoa certa para que o justo não pague pelo pecador.
    Os detentores do poder são, na verdade, os políticos. Às vezes a classe política se confunde com a elite econômica, mas nem sempre. É aos políticos que devemos cobrar ações efetivas para melhorar a educação. Afinal, nós pagamos os seus ricos salários para isso.
    Melhor deixar essa madame para lá. Ela vai morrer pensando assim. Aos 71 anos, não há educação que possa mudar aquela cabeça. hehe Por isso, é melhor investir na educação das novas gerações.
    Abração

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    1. Beleza de argumento, Alan! E tá aí o x não do poema, mas da questão: um povo ignorante elege políticos que querem que o povo continue na ignorância pra que continue votando neles. Então, a se continuar esse círculo vicioso, a educação nunca vai melhorar. Veja aqui em São Paulo como está nas pesquisas o tal do Russomano, cria do malufismo, querendo meter uma igreja em cada esquina pra ganhar voto dessa imensa multidão de crentes que a cada dia aumenta mais. Afe!

      Abraço,
      Léo.

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