Uma amiga que escreve (e muito bem, por sinal) me confidenciou, meio como se pedisse ajuda, sua frustração por estar há meses sem conseguir escrever nada. Era sábado e fazia um belo sol lá fora. Eu, tendo que trabalhar, dei-lhe uma resposta um tanto enviesada. Embora em tom de brincadeira, chamei a isso cagaço. Ela, bicho do mato que é, encolheu-se toda e se recolheu a seu casulo de (des)proteção. Era um papo rápido, via mensagem de celular. Não me fiz entender, e no mesmo dia repetiria a dose com outro amigo. Daí resolvi escrever estas linhas não só pra me redimir, como também pra lhe dar a explicação que ela, nas entrelinhas, me pedia. Ao menos a que está a meu alcance.
Acho que quem escreve tem mais é que escrever. Como o cozinheiro cozinha, o advogado advoga, o médico medica e por aí vai. Escrever tem que (de, eu sei) ser um hábito tão regular quanto respirar. E tão natural como saía a voz de Nara Leão quando ela cantava. Simples assim, como se fosse fácil. Tem que escorrer de nossas mãos como a teia das mãos do Homem-Aranha. Tem que ser meio como incontinência urinária. Algo que não careça de racionalização, simplesmente escape de nós, como um espirro (ou uma lágrima). Leve como o despertar pela manhã (aí varia, dependendo da hora em que somos obrigados a levantar). Prazeroso como o ato sexual. Mesmo quando não é tão prazeroso assim. Escrever é livro sem fim.
Não devemos esperar criar uma obra-prima do nada. Muito pelo contrário. Grande parte do que escrevemos não passa de vômito verbal. Mas é assim, treinando, enchendo o cesto de lixo de ideias descartáveis/descartadas, que entramos em forma. Como um garoto que passa o dia petecando com uma bola murcha. Dizem que há coisas que são como andar de bicicleta, não esquecemos. Discordo. Mesmo porque até pra andar de bicicleta sentimos certa dificuldade se não treinamos de vez em quando. As juntas ficam carecidas de um oleozinho aqui, outro acolá. Sem falar que bicicleta parada enferruja. Escrever é transpirar pelos dedos. É quando a alma vai à academia malhar. É gritar sem acordar os vizinhos. Escrever é inventar caminhos.
Escrever é um porre em si, não necessita de álcool. Mas, se este quiser participar da orgia, que entre. A escrita não é ciumenta. Relaciona-se bem com outros prazeres que com ela se complementam, como a música, o cinema, o teatro... Se não tiver absolutamente nada do que falar, saia pondo pingos nos is, depois volte de lá pra cá tirando-lhes os pingos. Ou simplesmente abra a janela e descreva como é a vida lá fora, a vida dos que não estão preocupados em escrever. Ou então feche a janela, apague a luz, feche os olhos... e escreva. Escrever é sangrar e ao mesmo tempo estancar a sangria. Escrever é uma alegria. Mesmo quando é triste. Escrever é se sentir vivo, e, quando achamos que nossa vida não vale nada, escrevendo a melhoramos, ou, na pior das hipóteses, inventamos novas vidas que lhe façam companhia. Escrever vicia.
Escrever é cravar os dentes na carne do papel, é deitar impressões digitais pela cena do crime. É abrir as comportas e deixar sair da caneta azul espermatozoides que andavam na secura. Escrever, como já disse em outra crônica, é dançar pelas mãos. Escritor que não escreve atrofia as ideias, fica gago do pensamento, desaprende o abecê da prosa, é como o poeta que vai recitar poesia e os versos entram em greve. É grave. Grave isso na memória, escritor: escrever é se doar, mesmo que doa. Vá lá, essa não é nova, mas o que isso prova? Na hora de escrever vale tudo. Escrever é subir num ringue contra um peso-pesado sabendo-se peso-mosca. E ainda transformar isso em comédia. Ou drama. Ou tragédia. Escrever é soltar as rédeas.
É provar por A + B, e com convicção, com quantos paus se faz uma canoa. Mesmo que você não faça a menor ideia de como se faz uma canoa, nem tenha jamais em sua urbana e asfáltica vida subido numa. Escrever é criar, é inventar, "neologizar"... É perguntar pro professor de quantas linhas é a redação e, após ouvir 30, escrever 60. É psicografar o que ninguém lhe soprou. Quem escreve tem que achar que o ar são letras que inspiramos e devolvemos à atmosfera como palavras quando expiramos. Aliás, pra quem escreve, expirar pode ser um ponto final. Escrever pode ser fatal!
***
Escrever é inventar um pretexto qualquer pra escrever, mesmo que tal pretexto seja o que você gostaria de dizer a uma amiga escritora que não está escrevendo. E, nesse caso, o que tem menos importância é o que você quer dizer. Principalmente se não souber o que vai dizer. Nem como vai terminar de dizer o que não soube como começar. Pensando nisso, lembrei-me de certa ocasião, quando queria muito compor, mas olhava pra folha em branco e nada vinha. De repente, escrevi nela "Do nada também se cria". Daí pra diante, a caneta praticamente se moveu sozinha. Então, termino este enfeitado embuste com a canção que Adolar Marin fez pra letra resultante do supracitado exercício (escrever é a arte do artifício - o aço do ofício):
Do nada também se cria
Nosso Senhor que o diga
Se até em barriga vazia
Nasce lombriga
Se até no chão da caatinga
Um mandacaru se atreve
Do corpo que dança sai ginga,
Do céu cai neve
Do ventre da mãe sai filho
Que cresce e vira pai
Do mesmo olhar que tem brilho
Lágrima cai
Então creia no que se cria, no que se cria,
Creia na criação
Da explosão de um segundo,
A Terra em flor se abriu
E o mar que banha esse mundo
Ontem foi rio
Do ventre da mãe sai filho
Que cresce e vira pai
Do mesmo olhar que tem brilho
Lágrima cai
Então creia no que se cria, no que se cria,
Creia na criação
Do nada também se cria
E sempre tem lugar pra pôr
Em meu peito nada cabia
E hoje é moradia do amor
Do céu cai neve
Do ventre da mãe sai filho
Que cresce e vira pai
Do mesmo olhar que tem brilho
Lágrima cai
Então creia no que se cria, no que se cria,
Creia na criação
Da explosão de um segundo,
A Terra em flor se abriu
E o mar que banha esse mundo
Ontem foi rio
Do ventre da mãe sai filho
Que cresce e vira pai
Do mesmo olhar que tem brilho
Lágrima cai
Então creia no que se cria, no que se cria,
Creia na criação
Do nada também se cria
E sempre tem lugar pra pôr
Em meu peito nada cabia
E hoje é moradia do amor
Para L.A.
***
"Escrever é transpirar pelos dedos...É gritar sem acordar os vizinhos. Escrever é inventar caminhos."
ResponderExcluirPorra,valeu...
Porra, de nada! rsrs
ExcluirTrans-pira, Liliane!
Beijosss,
Léo.
Escrever é inventar caminhos
ResponderExcluirInventemo-los, pois, Té!
ExcluirAbração,
Léo.
MAS DEVEMOS ADMITIR QUE AS VEZES PASSAMOS DIAS SEM ESCREVER,UMA VONTADE MOLEMENTE SE ACOMODA EM NÓS E FICAMOS ASSIM COMO BICHO SOLTO,SEM FOCO,SEM LUA,SEM ESTRELAS...QUANDO EM UM BELO DIA,ASSIM DO NADA, VEM AQUELA COISA TOMANDO CONTA DE NOSSO CORPO,OCUPANDO TODOS OS ESPAÇO POSSÍVEIS...COMEÇA PELOS PÉS E VAI SE ENROSCANDO CORPO ACIMA. AÍ VEM AQUELA VONTADE AVASSALADORA DE ESCREVER E ESCREVER...ESCREVEMOS...COM FOCO,SEM LUA,SEM ESTRELAS.
ResponderExcluirLucinda, queridona, obviamente todos nós temos períodos de vacas magras. O que quis dizer com meu texto é que há que se criar o hábito. Vai que um dia um jornal nos contrata pra escrevermos crônicas semanais (ou diárias, vai saber...), e aí? Ou escrevemos ou escrevemos. Lembro-me de uma entrevista com Edu Lobo na qual ele dizia que se não fossem os convites pra fazer trilhas sonoras pra teatro ou cinema ele teria composto muito menos. Enfim, no nosso caso, enquanto os convites não vêm, mantenhamo-nos preparados. Meu blogue é meu exercício (quase) diário. Quando o jornal cearense O Povo me contratar, estarei tinindo!
ExcluirBeijos,
Léo.
Sim,meu querido entendi sua ideia e acho correto.Exercitar sempre.
ResponderExcluirBeijos e parabéns pelo texto!
Obs:Me desculpe a caixa alta do primeiro comente,não estou gritando,apenas deu um tchut aqui no meu teclado he he
Tem problema não, queridona! Eu sou meio surdo mesmo. Hehehe!
ExcluirEscrever nao é o meu forte, mas confesso ter um fraco pela coisa. De repente bate uma vontade louca, uma veia solta solta um fio de brilho envolto em sangue e sal...E, sofrido,sai. Nao sei se pelos poros,pele ou brilho dos olhos.Talvez seja um eco do grito da alma em manifesto
ResponderExcluirComo você diz, Léo, é um exercício, como tudo que se quer fazer bem. Mas dom é dom, e isso deixa-se aos privilegiados como vosmecê. Desabafo de um fan
Pedro, parceirão! Você é um poeta, verdadeiramente. Durante nosso (pouco) tempo na Di-versos pude perceber isso com clareza. Privilégio é o ter o dom de sua parceria e, mais que isso, de sua amizade.
ExcluirAbração do
Léo.