quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

Crônicas Desclassificadas: 70) Júlio, Cortázar e eles

Eles começaram a chegar, aglomeradamente. No começo eram apenas vozes, altas vozes. Júlio não quis se virar, estava sentado de costas, absorto com o livro. Mas a concentração se fora. Pôs uma mão na fronte, à Chico Xavier, e continuou a leitura, fingindo que não tinha nada a ver com eles (e não tinha). Uma moça esbarrou em sua cadeira, mas não pediu desculpas. Pareceu-lhe proposital, pra que ele se tocasse. Virou o pescoço e olhou pra cima. Ela lhe deu um sorriso amarelo, entre tímido e despeitado. Despeitado por ele ter se virado, como quem, estando errado, reclama tacitamente.

Então percebeu que eram umas 20 pessoas. Quase todas jovens; moças e rapazes. Procurou auxílio nos ponteiros do relógio. Ainda faltavam 15 minutos. Suspirou pensando em sua falta de sorte. Trocou de cadeira e sentou-se a um canto, só que agora estava praticamente de frente pra eles. Fingiu ler, mas não era fácil. Ainda mais em espanhol. Ainda mais Cortázar. Tudo bem que era um livro de contos, mas Júlio já sofrera tanto pra ler O jogo da amarelinha em português... Como manter a concentração agora?

E, pra acabar de completar, garoava. Nem chuva era, apenas irritantes gotas que o impediam de ir se sentar mais adiante. Só lhe restava, pois, ficar ali, espremido entre a muvuca na parte coberta do terraço, ou voltar pro trabalho, 15 minutos mais cedo. Não. Virara uma questão de honra! Júlio estava em plena queda de braço com aquela rapaziada toda que, por sua vez, nem se dava conta de que ele estava ali. Invadiram-lhe a paz da hora de almoço com a maior sem-cerimônia e nem mesmo o notavam! O que, em certo sentido, era até bom... 

E eis que ela chegou, má atriz, fazendo cara de surpresa. Claro, veio o "parabéns pra você nessa data querida", alguns trocaram "pique" por "pica", mas o que lhe chamou mesmo a atenção foi que jurou ter ouvido vozes femininas no meio do coro cantarolando a fálica palavra. E em horário comercial! Em pleno expediente! Eram realmente outros tempos. "Discurso! Discurso!", bradou alguém. "Ah, gente... Muuuuito obrigaaaaada! Eu, tipo, tô passaaaaada! Não tava esperando isso! Vocês, tipo, são superdez! Mesmo!" Palmas. ... E o primeiro pedaço do bolo (sim, havia um bolo), pra quem iria?

Um olho na página, o outro no circo, Júlio já nem lia mais, só fazia de conta, também mau ator. Por um momento sorriu, imaginando o surreal que seria se ela lhe oferecesse o primeiro pedaço. Óbvio que não. O contemplado foi um rapaz de modos afetados. O abraço foi tão demorado, que faltou pouco pro pedaço de bolo cair, mas o muchacho possuía mãos de garçom, e o pedaço dançou no ar, agilmente. Agora os olhos de Júlio observavam a dança do pratinho de bolo. Inadvertidamente fechou mesmo o livro... E nem marcara a página!

Uma garota que esperava a vez de ser servida espiou-lhe, de rabo de olho, o desenho da capa e seu olhar não demonstrou nenhuma expressão. Parecia ter visto uma parede branca, sem quadro. Nem chegou a perceber que o título do livro estava em espanhol, orgulho bilíngue dele, que, quando estava no metrô, estupidamente não se cansava de mostrar a torto e a direito a capa do livro a belas e desinteressadas silhuetas, sem querer querendo. E ainda se dava o luxo de ficar irritado quando via alguma moçoila metida a besta se dar ares de superior com um livro... em inglês!

Praticamente à revelia sua já estava quase se divertindo. Virara um jogo de adivinhação. Agora, ele se encontrava kafkianamente assistindo a uma peça teatral e imaginava se alguém se lembraria de descer do palco e lhe oferecer um pedaço do bolo com refrigerante. Claro que ele negaria, numa mescla de veemência e falta de convicção. De repente, despertou de seu sonho acordado e viu que todos já haviam voltado pro trabalho. Foi então que se deu conta de que passara alguns minutos fora do ar, dando inúteis asas à galinácea imaginação.

A mesa estava vazia. Sobre ela, jaziam só alguns farelos. No chão, um copo de plástico flertava com a gravidade. Não tinham deixado nem um guaraná. Não que ele fizesse questão, já que não tomava refrigerante, mas se sentia humilhado (ofendido?) apenas pela (falta de) consideração. Observou a garoa e subitamente sentiu frio. Não por causa da temperatura, que era até amena, mas pela ausência de calor humano. Ele era o negativo da aniversariante. O despertador do celular o chamou de volta à realidade. A editora o requisitava pro segundo tempo de um jogo que não era de amarelinha. E já estava perdido.

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