sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Crônicas Desclassificadas: 71) Os diálogos do silêncio

1) Cara

As coisas são assim. Um dia eles estão alegres, gargalhando, os olhos nos olhos irradiando energia positiva, como se todo o magnetismo do mundo existisse apenas pra que estivessem ali, rindo, entregues, o mais perto da felicidade que alguém já pôde chegar. Ele seria capaz de deixar seu bem mais precioso a cargo daquelas mãos, suaves, mas seguras. A certeza é moeda que valoriza dia a dia. A magia daquele encontro não carece de palavras pra ser explicada. E, porque não carecem de palavras, deixam-nas de lado. Mágica não se explica.

Um dia, embora ainda haja sintonia, as coisas se dão com menos intensidade. Ele nota o calor, mas já não o aquece, é apenas morno, burocrático. A gargalhada vira um sorriso de canto de boca, no olhar dela há mesmo um tanto de perplexidade. Talvez carecessem de duas ou três palavras, mas, como elas não são ditas, sentem-nas supérfluas. A confiança ainda existe, e é mais importante do que a compreensão de que ele necessita, contudo, consegue notar certo aborrecimento, que é como uma neblina que desajeitadamente tenta não colidir com corpos e móveis.

De repente, aquele rosto fica sério, o olhar, pesado, cai sobre ele, tacitamente censurador. Quer abrir a boca pra perguntar algo, mas, como há palavras que não sabem voar, estas permanecem ali, na boca do estômago, afogando-se na angústia. No encontro seguinte ele vê raiva naquele olhar. Sua simples presença parece que incomoda, agride, ofende. Os próprios objetos inanimados parecem recriminá-lo, expulsá-lo, e os olhos naquele quadro na parede caem sobre ele, severos, dizendo com força brutal tudo o que a boca, muda, abissal, engessa.

O afastamento se dá lenta e gradualmente, até que, naturalmente, eles se deixam de encontrar. Como não tocam jamais no assunto, maus roteiristas, criam diálogos fictícios, um, dois, dez, cem, todos falhos no intuito de explicar aquilo que não foram capazes de dizer com olhos nos olhos. Ele não sabe se é culpado ou inocente, apenas apaga aquele número de sua agenda, sentindo-se vítima de grande injustiça. E os dias viram meses; os meses, anos; a raiva vira mágoa; a mágoa, lembrança; a lembrança, pó; do mesmo modo como ao pó tornaremos todos.

2) Coroa

As coisas são assim. Um dia estão ali, cúmplices, partícipes, parceiros, complementares, mais que simples parentes, unidos pelo cordão umbilical do livre-arbítrio. O encontro é celebração, mesmo quando não há festa. Os minutos possuem a preciosidade pura que não encontram nem nas joias mais raras. Tudo é motivo, e motivos não faltam. E, ainda que faltassem, inventá-los-iam. Os sorrisos, de tão abundantes, tomam o lugar do verbo. Assim, plenos, calam. Afinal, como dizem, há imagens que valem mais que mil palavras...

Um dia, inadvertidamente, ela se depara com uma atitude enviesada dele. Uma palavra malposta, uma bobagem. Depois do choque inicial, encara mesmo esse deslize quase com fraternal condescendência. Afinal, não é todo dia que estamos de bem com a vida, pondera. Cada um de nós guarda no íntimo mazelas, a própria dor (e a delícia) de ser quem somos. Como a confiança (que, sim, ainda existe) é mais importante que a gentileza ou a empatia, ela releva. Talvez fosse o momento de dizer algo, mas, por medo de pôr tudo a perder por causa de coisa à toa, debita na conta do silêncio.

Daí ela começa a notar que ele, na maior sem-cerimônia, acostuma-se a tratá-la de forma desrespeitosa, como se a união entre eles lhe desse o direito de exigir dela coisas que estão além de seu alcance. De repente, aquela relação, que antes tinha a harmonia de uma dança, torna-se uma difícil caminhada por pedregoso atalho (que, no mais, não leva a lugar nenhum). Ela nota infantilidade naqueles olhos que não a encaram, e se enfurece. Como nunca antes percebera a debilidade daqueles comportamentos e traços? Sente certo asco. O que ela mais queria era que ele simplesmente sumisse. Mão não será ela quem lho dirá.

Finalmente parece que ele se toca. Começa a aparecer menos. E, quando aparece, é por menos tempo. Ela o continua convidando, mais por obrigação que por prazer, mas, pra sua sorte, ultimamente ele tem sempre uma desculpa pra não ir, o que a alivia. Um dia, sem querer, por força do hábito, ela se vê discando o número dele. Quando se dá conta, joga longe o aparelho. E aquela pessoa, por quem até pouco tempo antes ela seria capaz de tanta coisa, de repente nem lhe faz mais falta quando ela percebe que ele saiu de sua vida por completo. Tão definitivamente quanto um dia a alma sai do corpo.

3) Moeda

As coisas são assim. As palavras que calamos, quando não se transformam num tumor (ou em algo mais grave), acabam virando um diálogo diário entre nós e nossos fantasmas (um monólogo a dois?). Durante uma vida inteira, mais e mais habitualmente vamos aperfeiçoando suas falas, até o dia em que nós mesmos também não seremos mais que fantasmas. Talvez por isso um dia surgiu o primeiro poeta: pra empunhar suas armas numa guerra já de antemão perdida contra o final e absoluto... silêncio.

Para F.A.P.

***


Trilha sonora de Simon & Garfunkel: The Sound of Silence


2 comentários:

  1. Craque Léo!

    Como vc postou no e-mail "trilha óbvia" de Simon & Garfunkel EStÀ PERFEITO, mas bem que poderia ter sido "4´ 33´´" de John Cage, ou minha parceria com o Waldir da Fonseca "Além de Mim" (Aprenda a ouvir os quietos"...rs
    http://www.ricardomoreira.com.br/alem.html
    Abração!!!!!!

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    1. Pois é, Ricardim. Há outras menos óbvias. Na verdade eu tinha pensado numa de Camalle, "Insone", mas não achei em lugar nenhum. Vou lá ouvir suas dicas.

      Abração,
      Léo.

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