quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Crônicas Desclassificadas: 104) Pra se vingar do esquecimento

De repente L percebeu que REALMENTE estava ali! Deu-se conta de que não era apenas uma sombra de óculos e dentes sem interação comendo pipoca do lado de cá de uma sala de cinema. Não, ele estava ali em carne e osso, fazendo parte dos acontecimentos! Se bem que tais acontecimentos mudavam de um minuto pro outro e desmudavam do outro pro um. Às vezes L era o protagonista, na cena seguinte passava a ser outra personagem, já na outra cena, não era nem uma coisa nem outra, estava mais pra um privilegiado narrador onisciente, embora invisível... e impotente, visto saber, mas não poder interferir nos fatos.


E era nessa hora que sua vista embaçava e a escuridão vinha... a escuridão que antecede a luz. E quando esta se acendia novamente, já ele era outro. Tudo parecia carecer de sentido. A história, pelo que L entendeu, envolvia duas famílias: um jovem casal e seus vizinhos, uma mãe e um filho. L, contudo, não chegou a saber se a mãe era viúva, separada ou mesmo se era solteira, pois no decorrer dos acontecimentos o pai não deu as caras. Nem mesmo no momento mais crítico, aquele em que um homem precisa defender sua honra ou banhar-se no pranto da vergonha.

Mas pra isso, pra lavar a honra, estava lá o filho, ou seja, L. Só que L não era ele! Pôde perceber isso porque sua mãe não era sua mãe. Quer dizer, aquela mulher, jovem, a quem ele chamava de mãe ali, não se parecia em nada com sua mãe de verdade. Tampouco aquele ele se parecia com L. Aliás, ele realmente jamais vira nenhuma daquelas pessoas antes. Sentia que estava enlouquecendo, porém, como não passava de um ator (real, mas ator) que tinha de obedecer a um roteiro, resignou-se a ser conduzido pela trama. Não sabia se era tudo de verdade ou se era encenação, só tinha certeza de uma coisa: ele não era o agente.

Pois bem, a delicada situação era que L era amante da esposa do vizinho, de quem sua mãe (aquela outra) era amante. L, que não era novo, devia ser muito jovem naquele entrementes, pois sua mãe aparentava ser uma quarentona enxuta. Mais enxuta ainda era a mulher do vizinho. E fogosa! Sim, porque as cenas de sexo eram tórridas. Ao menos pelo que L se lembrava. Só que aquela mãe, que na ocasião representava ser a dele, também tinha lá seu fogo. L soube disso porque na cena seguinte ele deixava de ser o filho da mãe pra ser o marido da vizinha. Porém, o mais surreal era que, por vezes, enquanto L era o marido da vizinha em tórrida cena na qual aquele suava sobre sua mãe, voltava a ser L, ainda sobre ela. Entenderam?

O roteiro era meio complexo, parecia uma peça teatral escrita por Freud, inspirada em Sófocles, e dirigida por Woody Allen. Só que as personagens se misturavam e confundiam. Seria o marido da vizinha o pai do filho da mãe? Não, descartou logo a ideia, pois o marido da vizinha, quando muito, seria uns cinco ou seis anos mais velho que L, ou aquele a quem L representava. O engraçado era que as mulheres, apenas elas, não trocavam de papéis. Tinham ambas características diferentes, ao menos pelo que L lembrava.

E eis que, quando tudo ficou escuro de novo, L logrou entender onde estava. Ahá! Ele estava dentro de um sonho! Claro! Só um sonho poderia ser tão absurdo a ponto de criar tão incoerentes personagens. Foi então que, de dentro do sonho, ele teve uma ideia. Aquela intrincada história era tão sugestiva, que L achou que poderia resultar num romance dos mais originais. Mas pra isso ele precisava acordar. Começou, pois, a se debater com o sono (e o sonho), no intuito de despertar e conseguir escrever ao menos a sinopse de tudo aquilo, pra, na manhã seguinte, com calma, tentar entender tão peculiar trama e, após destrinchá-la, dar prosseguimento a ela
.

Porém, o sonho continuava se desenrolando, e tão estimulante, que L não encontrava forças pra se levantar. Era como se uma força extraterrena mantivesse seu corpo inerte na cama, enquanto ele agia dentro de um avatar. Com muito custo, por fim conseguiu sair do transe e se levantar. Fê-lo, no entanto, sorrateiramente, pra que as outras personagens não notassem sua ausência. Pôs-se, então, a escrever furiosa e rapidamente, no intuito de não esquecer, ainda vendo as imagens passarem em sua mente, agora sim como num filme. Só que, de repente, ele percebeu que estava escrevendo... dentro do sonho!

Sim, ainda sonhava! Porque aquela casa não era sua casa e o cara que escrevia não era L. Era um cara que escrevia numa velha máquina datilográfica bem ao lado das demais personagens. L havia deixado de ser o filho e o vizinho e passara a ser o autor, que escrevia em tempo real os acontecimentos. Nesse momento perdeu todas as esperanças, debruçou-se sobre a velha máquina e desabalou num choro inconformado. Suas personagens não lhe pertenciam. Nesse momento, porém, elas notaram seu pranto e foram as quatro em sua direção. De repente o estavam ninando, até que o fizeram dormir.

Na manhã seguinte, quando L despertou de verdade, não conseguia se lembrar do sonho com clareza. Ainda sonolento, foi até seu computador e resolveu escrever este conto onírico, mas, como não se lembrava dos fatos com exatidão, reescreveu-os a seu bel-prazer, só por vingança. Pra se vingar do esquecimento. Espere um pouco... estarei ainda sonhando?

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