Há poucos dias postei (aqui) depoimento-desabafo de Alexandre Lemos, no qual ele relatava seu desânimo a respeito dos rumos da profissionalização da música. Poucos dias depois, meu camarada Sérgio-Veleiro me avisou acerca de um texto de minha querida Luhli em resposta ao de... ou melhor, dialogando com o de Alexandre. Como é um assunto que me interessa, e creio ser de interesse geral, achei pertinente postar aqui também esse outro olhar lançado por Luhli, que é mais parecido com o meu. Vamos a ele, pois:
Resposta de Luhli a Alexandre Lemos
Por Luhli
Venho pouco no Face, mas de vez em quando passo os olhos pra ver se há algo que valha a pena, e hoje li o desabafo lúcido e pungente do Alexandre Lemos sobre a condição de ser autor musical nesse nosso Brasil. E resolvi escrever, responder ao parceiro com quem tenho uma obra já de mais de 40 composições. Também não sei se alguém vai se dar ao trabalho de ler isso, pois vai ser um texto grande, mas, de qualquer forma, lá vai.
Conheço muito bem toda essa história que o Alexandre conta, e é isso mesmo que acontece. A mídia que nasceu como um meio para divulgar a arte se tornou um fim em si mesma, e a arte sobrou, focou fora da engrenagem da grana do show biz, dos jabás, das jogadas, da fabricação em massas de música-chiclete, que é pra ser mastigada pra se sugar um açucarzinho que logo se gasta, é cuspida, esquecida e substituída avidamente por outro chiclete musical. Isso não tem nada a ver com música popular brasileira. Música de verdade é a que alimenta a alma, faz a cabeça, comove o coração, vira símbolo de uma época, entra pelos poros, une as pessoas num mesmo uivo de alcateia feliz. E, com o tempo, fica cada vez melhor. Não acredito nesse papo de dizer que o povo quer isso que tá aí. O povo consome o que lhes é oferecido. No entanto, experimente cantar o Carinhoso num show, vai ver que toda a plateia canta junto.
Se formos pra fora da cidade grande, onde as pessoas têm contato com a terra, vamos encontrar uma riqueza enorme de manifestações musicais populares, festas e folguedos com infinita variedade de ritmos, quanto mais ricas quanto mais pobre é o povo. Com todo o massacre da televisão, estão lá resistindo, vivos e pulsantes, os reizados, os bois, os marabaixos e chamamés, guarânias e carimbós, cirandas e cacuriás. Nos centros urbanos, na faixa de idade acima dos 40 anos, as pessoas perplexas se perguntam onde foi parar a música que ouviam, acham que isso acabou, que ninguém mais compõe como antes, desligam o rádio e vão ouvir seus velhos discos. Os jovens urbanos, vítimas desse massacre cultural, que estão aí consumindo o que essa mídia oferece, no entanto, vão pelos cantos batucar sambas, pois o samba nunca morre.
Então, não se trata de uma doença do povo, trata-se de uma jogada férrea e despótica de um capitalismo enlouquecido ao ver fugir do seu domínio a grana que extorquiam dos artistas, com o advento da internet, que abre portas para um outro futuro. No tempo de Chiquinha Gonzaga, quando ela compunha uma polca, o editor imprimia a música e os negrinhos iam, com as partituras debaixo do braço, assobiando as melodias pelas ruas, pra dar uma amostra das músicas que vendiam. Uma crônica francesa dessa época descreveu o Rio como uma gaiola de pássaros, uma terra de assobios... e as senhoritas vinham nas janelas comprar as partituras das novas canções, pra tocar nos serões familiares nos seus pianos, pois toda mocinha que se prezava sabia tocar um instrumento, num tempo em que a mídia não existia.
Resposta de Luhli a Alexandre Lemos
Por Luhli
Venho pouco no Face, mas de vez em quando passo os olhos pra ver se há algo que valha a pena, e hoje li o desabafo lúcido e pungente do Alexandre Lemos sobre a condição de ser autor musical nesse nosso Brasil. E resolvi escrever, responder ao parceiro com quem tenho uma obra já de mais de 40 composições. Também não sei se alguém vai se dar ao trabalho de ler isso, pois vai ser um texto grande, mas, de qualquer forma, lá vai.
Conheço muito bem toda essa história que o Alexandre conta, e é isso mesmo que acontece. A mídia que nasceu como um meio para divulgar a arte se tornou um fim em si mesma, e a arte sobrou, focou fora da engrenagem da grana do show biz, dos jabás, das jogadas, da fabricação em massas de música-chiclete, que é pra ser mastigada pra se sugar um açucarzinho que logo se gasta, é cuspida, esquecida e substituída avidamente por outro chiclete musical. Isso não tem nada a ver com música popular brasileira. Música de verdade é a que alimenta a alma, faz a cabeça, comove o coração, vira símbolo de uma época, entra pelos poros, une as pessoas num mesmo uivo de alcateia feliz. E, com o tempo, fica cada vez melhor. Não acredito nesse papo de dizer que o povo quer isso que tá aí. O povo consome o que lhes é oferecido. No entanto, experimente cantar o Carinhoso num show, vai ver que toda a plateia canta junto.
Se formos pra fora da cidade grande, onde as pessoas têm contato com a terra, vamos encontrar uma riqueza enorme de manifestações musicais populares, festas e folguedos com infinita variedade de ritmos, quanto mais ricas quanto mais pobre é o povo. Com todo o massacre da televisão, estão lá resistindo, vivos e pulsantes, os reizados, os bois, os marabaixos e chamamés, guarânias e carimbós, cirandas e cacuriás. Nos centros urbanos, na faixa de idade acima dos 40 anos, as pessoas perplexas se perguntam onde foi parar a música que ouviam, acham que isso acabou, que ninguém mais compõe como antes, desligam o rádio e vão ouvir seus velhos discos. Os jovens urbanos, vítimas desse massacre cultural, que estão aí consumindo o que essa mídia oferece, no entanto, vão pelos cantos batucar sambas, pois o samba nunca morre.
Então, não se trata de uma doença do povo, trata-se de uma jogada férrea e despótica de um capitalismo enlouquecido ao ver fugir do seu domínio a grana que extorquiam dos artistas, com o advento da internet, que abre portas para um outro futuro. No tempo de Chiquinha Gonzaga, quando ela compunha uma polca, o editor imprimia a música e os negrinhos iam, com as partituras debaixo do braço, assobiando as melodias pelas ruas, pra dar uma amostra das músicas que vendiam. Uma crônica francesa dessa época descreveu o Rio como uma gaiola de pássaros, uma terra de assobios... e as senhoritas vinham nas janelas comprar as partituras das novas canções, pra tocar nos serões familiares nos seus pianos, pois toda mocinha que se prezava sabia tocar um instrumento, num tempo em que a mídia não existia.
Com o advento do rádio os compositores começaram a ter a necessidade de ganhar algo com a execução de suas músicas, criaram-se as primeiras sociedades autorais e essa coisa toda começou. Claro, o que o compositor quer é ouvir suas músicas cantadas pelo povo. Eu já me entristeci muito por isso, me sentindo como uma árvore cheia de frutos que ninguém come. Mas depois considerei o que acontece na natureza e vi que alguns frutos são comidos, outros caem no chão, apodrecem e dali brota uma nova planta. Minhas músicas são como essas frutas, umas poucas chegaram aos ouvidos do público, e as outras, centenas delas, viraram uma floresta, meu lugar encantado, onde vou me refugiar quando a solidão bate forte.
Essa solidão da qual o Alexandre fala, de ter o acesso ao público negado por um sistema corrupto. A sobrevivência, sem conseguir ganhar a grana que não rola por consequência disso, fica ameaçada, e nossa vida, difícil. Então, é salve-se quem puder, nessa hora nada é contra entrar num negócio de pão de queijo... ou qualquer forma de sobrevivência digna, desde que não corrompa nosso prazer de ser música. Isso é que a gente não pode deixar acontecer.
Os tempos são bicudos? São. Aí a gente se vira e arranja outras formas de ganhar dinheiro, pois nunca se tem um talento só na vida. Vamos esquecer um pouco essa necessidade imperativa de que nossa música nos sustente, enquanto vamos espiando as possibilidades que as novas mídias nos trazem, enquanto se desbrava essa terra de Marlboro que ainda é a comunicação virtual, vamos nos virando pra sobreviver confiando num renascimento que venha a pôr fim nessa Idade Mídia, pois o renascimento sempre vem. A história se repete, e os sinais já nos chegam, sinais de terra depois de uma longa travessia. O importante agora é resistir.
Vamos manter ferozmente defendida nossa relação de amor com a nossa arte, não vamos permitir que o desânimo broxe nosso tesão musical. O ato criativo traz no seu bojo a essência do sagrado, a alegria da chegada de uma música nova é um sopro de renovação e esperança, o importante é esperar pelo possível e não perder o acesso a nós mesmos que só o prazer criativo traz.
Eu me recuso a ficar sentada, folheando um álbum de recorte de glórias passadas, a carregar minha obra de mais de mil músicas no peito, como medalhas, me curvando com o peso. Envelhecer não tem de se esmorecer, quero me merecer, ficar à altura da beleza da qual bebi e na qual embebi por toda a minha vida. O grande desafio, caro parceiro, é ser fiel a si mesmo, ao seu genuíno prazer, e não à sua amargura. Por seu talento, por nosso alento, para ser maior que o momento, vamos lá, vamos juntos, celebrar o fato de sermos sobreviventes, compondo mais uma?
Grande abraço,
MARAVIHOSO TEXTO! SEM SUPRESA... A LUHLI É ABSOLUTAMENTE FANTÁSTICA!!
ResponderExcluirPARABÉNS PELA CLAREZA, PELA FIRMEZA, PELO SENTIMENTO, PELA BELEZA DO TEXTO. UMA LIÇÃO DE VIDA E DE AMOR À ELA
MAESTRO AGENOR RIBEIRO NETTO
finalizando o que escrevi, espero um dia me reencontrar com a Luhli, que tive a alegria imensa de ouvir na primavera de 1984, em S. José do Rio Pardo no FEMP - festival de música da primavera que não existe mais...
ResponderExcluirfiquei literalmente encantado com a virtuose, harmonias sofisticadas, violão primoroso e forma única com que duetava com sua parceira Lucina, com contrapontos geniais e um swing fantástico! Nunca mais a vi e nem a sua parceira Lucina.Anos atrás aconteceu um fato inusitado: alguém me deu um CD sem capa, tipo pirata e disse : "achei isto aqui caido num barzinho e as meninas cantam muito bem. mas não sei quem são. Você vai gostar com certeza"
Levei prá casa e fui ouvir: eram as duas! Inesquecíveis e únicas.Uma música melhor que a outra e uma interpretação de uma música dos Secos e Molhados que nunca ouvi nada igual ou melhor...
Este CD, todo riscado já está no bico do urubú. Mas o ouço com frequência. Saudades, saudades... Um grande abraço para ela e para você, Leo. MAESTRO AGENOR RIBEIRO NETTO
Salve, maestro Agenor!
ExcluirAgradeço pela visita e pelo emocionado depoimento. Também sou admirador do trabalho da Luhli. E também sinto muito pelo fim do FEMP. Participei uma única vez, mas gostei bastante da organização e do calor da cidade.
Sucesso!
Abraço,
Léo.
Eu? Desanimar? Jamais! Posso até perder. Mas nunca será por W.O.
ResponderExcluirLucia Helena Corrêa
Boa, Lucia!
ExcluirPerder por W.O é a maior vergonha. Bora pra cima, encarar os Barcelonas da vida!
Beijão,
Léo.