terça-feira, 18 de julho de 2017

A Palavra É: 25) Frio

Apesar de meu descarado humor, meu hábito hilário (e um tanto otário) de fazer graça, meu incendiário ardor e meu jeitão de boa-praça, no fundo eu sou um triste. Na tristeza consiste minha alegria. E, quem diria?, chega a ser um paradoxo. É que nos sentimentos nunca fui muito ortodoxo. Lamento. Vivo em conflito entre o feio e o finito, entre o nem e o mal, entre o apimentado e o sal. É quase um desacato, um grito. Por isso sou grato à tristeza, que é quem me faz ver com clareza o breu que me ilumina. Ela é gente-fina! E ainda agrega valor (ui!) a minha dor. E, como todo triste que se preze, sou expert em viajar na maionese.

E gosto do frio. É ele quem me aquece nos dias em que um "puta que pariu" vence a prece. É quase um orgasmo o arrepio que atravessa o esqueleto e me deixa pasmo. Praticamente derreto. Olho pro céu nublado, levo nas fuças o vento, e me sinto abençoado. E fico sedento de mais. Como se minha paz dependesse da queda da temperatura (carne mole em picadura...). Parece tara, emoção rara, dez multiplicado por mil. É assim que gosto do frio. Vejo essa gente toda agasalhada e dá uma vontade danada é de me despir, cuspir o pudor e a vergonha como quem sonha com o sexo do século 22. Ora pois!

Mais do que do frio, eu gosto de neve. Aí eu rio, e penso é que deve nevar mais, só pra eu achar demais ver os flocos caindo em blocos, perder o foco olhando pr'aquela dança que nem criança num parque. Isso também é arte. Deixar que eu me encharque desse branco que vem de marte, deitar e rolar no chão como um cão sem dono, como folhas no outono, como chuvas de verão — e o inverno é meu irmão. A neve, pra mim, é como se caísse de uma nave — simples assim. É uma clave de sol, é um farol pra olhos astigmáticos — veja como não sou prático; começo a falar de um assunto e já descambo pra outro tema... Mas não tema; se gostar de frio, tamo junto!

Talvez o lance seja que eu em outra vida fui europeu. E nesta fui rebentar lá no Ceará. Que será será. E não há Saara que evite. Até me aumenta o apetite. O frio me faz sentir mais vivo. E sem o menor motivo. Ir pra praia até que é legalzinho, mas abstraia: nada se compara a um bom vinho numa noite fria e em boa companhia. Ou até sozinho. O prazer a um também pode ser incomum. Quando não há mais ninguém além de mim e de uma taça... qualquer emoção me abraça, me avassala, uma canção soa na sala, rola um Pessoa dito em voz alta... e pronto! O inesperado me assalta. Nem te conto.

É que o frio não é pros fracos. É mais embaixo o buraco. O céu vira de cabeça pra baixo, mãos caem como luvas; e lábios, como uvas. Repare nessa galera de Sampa... Qualquer friozinho e já encampa. E tome cachecol, casaco, gorro... Parece um bando de pinguim repetindo "atchim!". Dá vontade de dar um esporro e gritar: "Sinta o frio, rapá! Deixe-o tocar sua pele com mãos de pianista! Vai que antes que congele você se conquista..." Mas não; ninguém quer o contato, o atrito, ninguém aceita o fato de que o frio dá barato. E bonito! Porque o frio é uma droga que combina com outras drogas — até com ioga. A verdade nua e boa é que Deus abençoa quem no frio sua.

O frio não combina é com gente embaixo da ponte, com a sanha assassina dos que secam nossa fonte e acham que viciado não é gente e os querem varrer pra debaixo do tapete da existência. Oxente! Que topete! Que petulância! Que incongruência! A ânsia de poder faz, quem não pode, se foder. Cidade linda é o escambau! Sua cara de pau vai se dar mal ainda! Sorriso de comercial não resolve problema social. Ainda mais quando chega o frio. É, tio, aí o rabo torce a porca. E quem pode menos emborca. E embarca. A carne é mais fraca pra quem tem a sorte parca. Aí o frio é faca.

É fácil prum cara que nem eu (que já bebeu) dizer que curte frio estando no quente. Quero ver curtir é no meio-fio. Aí, cadê o valente? Mas, além do frio, há o arredio; o que não tem brio; o calafrio; o desvio; o extravio; quem está por um fio; o gentio; o hostil; quem se iludiu; o juvenil (e o Juvenal); o luzidio; o mulherio; quem embarcou nesse navio; quem não ouviu; quem acendeu o pavio; quem mexe o quadril; quem por último riu; quem se mantém sadio; o jovem tardio (come sono io); quem Deus uniu (e o cão desonerou); o vazio; quem inventou a palavra xibio; in italiano, il mio zio; e todas as merdas que um cara telegrafa, depois de matar uma garrafa de vinho, bem-acompanhado, mas sozinho, numa noite de frio, depois que a mulher dormiu.

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PS1: Ao saber que Sampa teve a tarde mais fria dos últimos 13 anos, eu, que gosto de frio (e do 13), resolvi escrever sobre o assunto.

PS2: Trilha sonora: Zeca Baleiro, Mais um Dia Cinza em São Paulo (Zeca Baleiro)



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4 comentários:

  1. Parabéns! Muito bom seu texto! Inspirador.

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    1. Oi, Adriana. Que bom que transpiramos na mesma temperatura. rs

      Abraço,
      Léo.

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    1. Fala, Curci! Bom te ler por aqui após breve hiato. O frio pode ser, trocando um R seu por um B, abrasador.

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