domingo, 30 de julho de 2017

A Palavra É: 26) Ponte

Por Rob Gonsalves
No princípio, havia o abismo entre duas extremidades, mas cada uma delas se sentia em paz, quiçá até feliz, pois não se dava conta de sua solidão. E solidão é como qualquer outro sentimento negativo: não nos afeta muito quando sempre fez parte de nossa vida. Um eremita, por exemplo, vive lá sossegadinho em seu canto, longe da muvuca que algum néscio batizou com o nome de civilização. Até que um dia, por um motivo qualquer, vê-se arrastado pro meio do convívio de outros seres humanos, depara-se com o afeto, com o toque, com o sexo, com a separação, com a mágoa, com a dor... E adeus felicidade. Quando volta pra sua caverna, já é outro, pois tem pela primeira vez na vida consciência de sua solidão.

Por isso a ignorância pode ser vista também como uma bênção, uma virtude, um dom. Os ignorantes, por mais que sejam infelizes, são felizes, pois seu mundo é pequeno. Eles, que sabem quase nada, têm certeza de tudo. E a certeza lhes dá tranquilidade. Como tranquilos dormem aqueles que creem que quanto mais sofrem nesta vida mais terão gozo na próxima. Eles estão serenos e imunes a toda injustiça de que é composta a sociedade lá do lado de cá do abismo que os separa dos que, vivendo num grande mundo, vasto mundo, somos todo dúvidas e fragilidade. Os dias eram assim, até que veio um desavisado e ergueu uma ponte unindo os dois extremos opostos. A ponte trouxe o caos, aproximou os desiguais; a ponte é a verdadeira babel.

Uma ponte é um elo, uma aliança, um acordoum pacto. E todas as vezes que apertamos a mão de alguém como símbolo de entendimento estamos nos submetendo a regras que nos podam, nos limitam, nos cerceiam (não confundir com ceceio). Os portugueses, por exemplo, fizeram um acordo com os ingleses, depois com os espanhóis, mais pra frente com os índios e na sequência com os africanos (à revelia destes). Só deu merda. Porque a ponte representa o trânsito, o ir e vir, coisas que interferem no ser (verbo, mas também sujeito) e no estar. Sem falar que há pontes que não levam a lugar algum. Ou, pior, a lugares aonde não queremos ir, embora nos vejamos obrigados (por um acordo) a ir. A ponte é um tapete vermelho estendido rumo a nosso cadafalso.

E por quê? Porque a ponte nos rouba a pureza da ignorância e, portanto, faz-nos perceber o quanto somos ignorantes. A ponte revelou a Adão e Eva (que sempre estiveram nus) que eles estavam nus. E adeus paz no Éden aos pelados de boa vontade. A ponte nos afasta de Deus. Sim, porque antes, de um dos extremos, quando víamos o abismo precisávamos de um salvador pra que não fôssemos engolidos por essa bocarra. Depois da ponte, tal abismo passou a não representar pra nós mais um problema. Nesse caso, a ponte nos trouxe segurança. E quem tem seguro não necessita segurar na mão de Deus. E a ponte nos levou ao outro lado e nos fez perceber que há outras culturas além da nossa.

Assim como há outras crenças (e descrenças), outros deuses e outros demônios. E a fé ingênua e incontestável foi posta em xeque, foi pro buraco. Tudo culpa da ponte. A ponte atrai os diferentes, e todos sabemos que pra haver paz e ordem precisamos conviver entre os iguais — cada um em seu quadrado. A ponte mostra ao pagodeiro que existe o samba, mostra ao sambista que existe a bossa nova, ao bossa-novista que existe o jazz e assim por diante — com todos os "istas" e "eiros". Mostra ao leitor de tons de cinza que há outros tons, "os mil tons, seus sons e seus dons geniais". Ah, ponte... como era mais legal na época do abismo! Pra que tudo isso? E agora, ainda por cima, a ponte se propaga pelos ares, em ondas, não mais satisfeita com seu estado físico maciço.

O mais interessante é que a ponte não se move (quer dizer, fora a ponte levadiça), ela apenas faz que nos movamos — faça o que eu digo, não faça o que eu faço. Depois da ponte, nunca mais fomos os mesmos, nem seremos. A ponte desapontou nossas certezas, apontando pr'algum horizonte distante. E quer coisa mais temerária que dizer a um indivíduo que ele pode ir longe? Onde já se viu? Gente é pra ficar em seu lugar, como a torcida do Guarani de um lado e a da Ponte Preta do outro. Aliás, como se não bastasse, a ponte construiu outras pontes no cérebro de cada um, pontes imaginárias (que, cá pra nós, são as mais perigosas), inabaláveis e que, paradoxalmente, abalam todas as estruturas do corpo de quem deixou que as erguessem em sua cachola.

Sin embargo, como nem só de ponte vive o homem, há também quem afronte; o brutamonte; quem conte (outra); e, em contrapartida, o que desconte; o elefante; a água da fonte; o gerente; o horizonte; o imigrante; quem jamais se junte; quem olha através de outra lente; a Marisa Monte; il dulce far niente; o antes de "onte"; o protestante; o rinoceronte; aquele que nada sente; o passageiro e o tripulante; o que unte (e o que besunte); o viajante; o xavante; o ziguezagueante (que deixa tonta a zaga); e mais uma porrada de caras ou coisas que não cabem nessa rima. E há o pior de tudo nesta prosa: a consciência de que a ponte criou um elo entre mim e você. E agora, cadê dinamite pra explodir essa maravilhosa e monstruosa obra? Fala sério, não era melhor o abismo?


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PS1: Quem escolheu a palavra desta feita foi Vanessa Curci, que não coincidentemente aniversaria hoje (30/7) e a quem dedico estas desapontadas linhas como um modesto mimo.

PS2: Trilha sonora: Gilberto Gil, Deixar Você (Gilberto Gil)


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