sábado, 24 de fevereiro de 2018

A Palavra É: 39) Gengibre

Minha "patroa", Kana, faz um karê dos deuses — pra quem não sabe, karê é a versão japonesa do indiano curry. Antes de nossa mudança pro Japão, fomos recebidos na casa de Sander Mecca & família pra um bota-fora, e, pra enriquecer ainda mais o cardápio preparado pelos anfitriões, Kana mais uma vez nos brindou com seu karê. Sander, maravilhado, perguntou-lhe qual seria o segredo de tão mágico sabor; e Kana lhe respondeu com simplicidade: "O segredo está no gengibre." Claro que eu já estava a par desse "segredo". Aliás, mais que isso; já tinha o costume de propagar o bendito gengibre pra cima e pra baixo, e não poucas vezes fora do contexto culinário.

Metaforicamente falando, podemos reparar, em praticamente tudo o que se faça, quando algo carece de gengibre. Por exemplo, nas artes cênicas: cada um de vocês, minguados leitores, deve se lembrar (sem dar nomes, pra não sermos indelicados) de um punhado de atores/atrizes cuja interpretação é irretocável, mas que, apesar disso, quando os vemos em ação percebemos que algo está faltando. E ficamos até encafifados sem entender direito o que seria esse "algo", visto que tudo parece estar na mais perfeita ordem. É o tal do gengibre! Aqui, ponhamos o gengibre cênico — não confundir com cínico, pois aí estaríamos falando dos canastrões, e não é este o caso.

Saltemos pra música, que costuma ser tema mais recorrente neste bloguinho. Nessa praia, então, nem se fala. Ou melhor, fala-se. Pois aqui temos uma legião de músicos, cantores, compositores e franco-atiradores que, por mais que se esforce e obedeça à cartilha à risca, não consegue atingir um resultado que acalore seu público. E o termômetro maior pra eles são as palmas. Quando burocráticas e parcas, é sinal de que faltou gengibre; quando entusiasmadas, é porque o gengibre está no ponto — sim, porque quando se põe gengibre além da conta o karê, em vez de resultar saboroso, torna-se acre. Observação: em relação a essas palmas entusiásticas, muitas vezes devemos relevar as de parentes e amigos.

O gengibre dá pano pra manga; eu poderia passar o dia aqui relatando exemplos pra tratar da falta (ou do excesso, vá lá) dessa benfazeja erva. Casos por aí os temos aos montes. Muitos de vocês já comeram um pão insosso; já viram um filme esteticamente impecável, mas igualmente esquecível; já tomaram um vinho caro que sabia a água; já viram um jogador de futebol que antes do jogo era o rei das firulas, mas que, jogo iniciado, sumia; já ouviram muito macho garganta que na hora H não comparecia; já compraram o último best-seller daquele renomado autor e depois, ao final da leitura (quando se chega até lá), ficaram com cara de ué; já viajaram pra PQP pra ver um ponto turístico que não fazia jus à fama; já...

Continuem à vontade, caso queiram. Contudo, é necessário que eu enfatize que não venho por esta demonizar a vítima. Não, estimada leitora e estouvado leitor; muito pelo contrário. Os, digamos, sem-gengibre não têm culpa de terem nascido assim. Na falta de culpados, podemos culpar a Deus por ter economizado no gengibre em relação a essa classe de filhos não pródigos. Se bem que num ou noutro caso podemos, sim, culpá-los. Quando se trata de mera falta de gengibre, não há o que possamos fazer; entretanto, em algumas ocasiões o que ocorre é que o sujeito carece de gengibre numa circunstância, mas não em outra, e a real é que prefere transitar por um universo que não lhe pertence.

Sendo mais claro, o que quero dizer é que às vezes um centro-avante perna de pau pode ser um bom goleiro; um ator medíocre pode se mostrar um cantor talentoso; um médico sem brilho pode ser um professor que encante alunos; um juiz tendencioso e amante de holofotes pode esconder em si um grande ator; um pedreiro pobre e preto que ache uma cartola no lixo pode vir a ser um genial compositor; um analfabeto que acaba se tornando camelô por força das circunstâncias quem sabe com acesso a educação poderia se tornar um advogado, um engenheiro ou quiçá um presidente da república. O que varia aí é que alguns desses cidadãos querem pôr seu gengibre na receita errada ao passo que a outros são negados os demais ingredientes aos quais misturar seu gengibre.

Obviamente, um leitor mais perspicaz já sacou que quando falo de gengibre posso estar, nas entrelinhas, querendo falar de alma, amor, borogodó, carisma, empatia etc. Até porque além do gengibre também há a porta que se abre; a comuna francesa Brive(-la-Gaillarde); quem usa outro calibre; aquele que se descobre; quem tenha labirintite e se equilibre; os que estão sempre em febre; quem já foi a Genebra; os da família Hibre; o que é insalubre; o jengibre (en español); o drinque cuba libre (o drinque!); qualquer um que manobre; quem se acha nobre (e não seja o Dudu); quem obre; o que não tem gengibre porque é pobre; um envergado que não se quebre; o teimoso que reabre; quem sobre e quem soçobre; a Fontana di Trevi; quem vai de Uber; quem vibre (com elogios feitos a terceiros); e a zebra, que é o que ocorre quando alguém sem gengibre se destaca.

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PS1: Mais uma vez, escolhi a palavra; até porque estava havia séculos querendo escrever sobre ela.

PS2: Trilha sonora: Gal Costa, Vatapá (Dorival Caymmi)



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