quarta-feira, 23 de março de 2011

Crônicas Classificadas: 12) Menino a Bico de Pena

Faz mais ou menos um milhão de anos meu amigo Sérgio-Veleiro me deu de presente o livro de contos Felicidade Clandestina, de Clarice Lispector. Ele queria que eu lesse sobretudo os dois primeiros contos, o homônimo Felicidade Clandestina e Uma Amizade Sincera. Pois bem, li-os. E gostei. Mas estava em meio a leituras outras, de modo que fui adiando e adiando e adiando a leitura desse livro a ponto mesmo de esquecê-lo.


Passou o tempo e meio que por acaso o reencontrei ali na estante, esquecido como esquecidos estão tantos outros à espera de minha literária boa vontade. Senti que era tempo de degustá-lo. E o fiz com gula, empanturrando-me com alguns contos, sentindo mais fome ainda com outros, sentindo uma leve indigestão com poucos, enfim, ao terminá-lo acabei "almoçado" pelo livro. De todos os contos, porém, os que mais me chamaram a atenção foram justamente o último, O Primeiro Beijo, no qual a autora, com sua sensibilidade de mulher conta com ternura e certa ousadia o primeiro (e metafórico) beijo que um garoto deu, que foi também a tomada de consciência do nascimento de sua libido; e...

...Este, um conto que eu gostaria de ter escrito. Eu, que nunca fui pai e provavelmente nunca serei (falo isso sem mágoa, apenas com uma pontada de emoção, pois o tema me lembra a canção O Filho Que Eu Quero Ter, de Toquinho e Vinicius e o poema Testamento, de Manuel Bandeira, cujos versos a seguir sinto como se fossem meus: "Gosto muito de crianças/ Não tive um filho de meu/ Um filho... não foi de jeito/ Mas trago dentro do peito/ Meu filho que não nasceu [...]"), deixo como presente de aniversário atrasado a meu amigo de Fortaleza (e a todos vocês) esta pérola:

Menino a Bico de Pena
Por Clarice Lispector

Como conhecer jamais o menino? Para conhecê-lo tenho que esperar que ele se deteriore, e só então ele estará ao meu alcance. Lá está ele, um ponto no infinito. Ninguém conhecerá o hoje dele. Nem ele próprio. Quanto a mim, olho, e é inútil: não consigo entender coisa apenas atual, totalmente atual. O que conheço dele é a sua situação: o menino é aquele em quem acabaram de nascer os primeiros dentes e é o mesmo que será médico ou carpinteiro. Enquanto isso – lá está ele sentado no chão, de um real que tenho de chamar de vegetativo para poder entender. Trinta mil desses meninos sentados no chão, teriam eles a chance de construir um mundo outro, um que levasse em conta a memória da atualidade absoluta a que um dia já pertencemos? A união faria a força. Lá está ele sentado, iniciando tudo de novo, mas para a própria proteção futura dele, sem nenhuma chance verdadeira de realmente iniciar. 

Não sei como desenhar o menino. Sei que é impossível desenhá-lo a carvão, pois até o bico de pena mancha o papel para além da finíssima linha de extrema atualidade em que ele vive. Um dia o domesticaremos em humano, e poderemos desenhá-lo. Pois assim fizemos conosco e com Deus. O próprio menino ajudará sua domesticação: ele é esforçado e coopera. Coopera sem saber que essa ajuda que lhe pedimos é para o seu auto-sacrifício. Ultimamente ele até tem treinado muito. E assim continuará progredindo até que, pouco a pouco – pela bondade necessária com que nos salvamos – ele passará do tempo atual ao tempo cotidiano, da meditação à expressão, da existência à vida. Fazendo o grande sacrifício de não ser louco. Eu não sou louco por solidariedade com os milhares de nós que, para construir o possível, também sacrificaram a verdade que seria uma loucura.

Mas por enquanto ei-lo sentado no chão, imerso num vazio profundo.

Da cozinha a mãe se certifica: você está quietinho aí? Chamado ao trabalho, o menino ergue-se com dificuldade. Cambaleia sobre as pernas, com a atenção inteira para dentro: todo o seu equilíbrio é interno. Conseguido isso, agora a inteira atenção para fora: ele observa o que o ato de se erguer provocou. Pois levantar-se teve consequências e consequências: o chão move-se incerto, uma cadeira o supera, a parede o delimita. E na parede tem o retrato de O Menino. É difícil olhar para o retrato alto sem apoiar-se num móvel, isso ele ainda não treinou. Mas eis que sua própria dificuldade lhe serve de apoio: o que o mantém de pé é exatamente prender a atenção ao retrato alto, olhar para cima lhe serve de guindaste. Mas ele comete um erro: pestaneja. Ter pestanejado desliga-o por uma fração de segundo do retrato que o sustentava. O equilíbrio se desfaz – num único gesto total, ele cai sentado. Da boca entreaberta pelo esforço de vida a baba clara escorre e pinga no chão. Olha o pingo bem de perto, como a uma formiga. O braço ergue-se, avança em árduo mecanismo de etapas. E de súbito, como para prender um inefável, com inesperada violência ele achata a baba com a palma da mão. Pestaneja, espera. Finalmente, passado o tempo necessário que se tem de esperar pelas coisas, ele destampa cuidadosamente a mão e olha no assoalho o fruto da experiência. O chão está vazio. Em nova brusca etapa, olha a mão: o pingo de baba está, pois, colado na palma. Agora ele sabe disso também. Então, de olhos bem abertos, lambe a baba que pertence ao menino. Ele pensa bem alto: menino.

"Quem é que você está chamando?", pergunta a mãe lá da cozinha.

Com esforço e gentileza ele olha pela sala, procura quem a mãe diz que ele está chamando, vira-se e cai para trás. Enquanto chora, vê a sala entortada e refratada pelas lágrimas, o volume branco cresce até ele – mãe! absorve-o com braços fortes, e eis que o menino está bem no alto do ar, bem no quente e no bom. O teto está mais perto, agora; a mesa, embaixo. E, como ele não pode mais de cansaço, começa a revirar as pupilas até que estas vão mergulhando na linha de horizonte dos olhos. Fecha-os sobre a última imagem, as grades da cama. Adormece esgotado e sereno.

A água secou na boca. A mosca bate no vidro. O sono do menino é raiado de claridade e calor, o sono vibra no ar. Até que, em pesadelo súbito, uma das palavras que ele aprendeu lhe ocorre: ele estremece violentamente, abre os olhos. E para o seu terror vê apenas isto: o vazio quente e claro do ar, sem mãe. O que ele pensa estoura em choro pela casa toda. Enquanto chora, vai se reconhecendo, transformando-se naquele que a mãe reconhecerá. Quase desfalece em soluços, com urgência ele tem que se transformar numa coisa que pode ser vista e ouvida senão ele ficará só, tem que se transformar em compreensível senão ninguém o compreenderá, senão ninguém irá para o seu silêncio ninguém o conhece se ele não disser e contar, farei tudo o que for necessário para que eu seja dos outros e os outros sejam meus, pularei por cima de minha felicidade real que só me traria abandono, e serei popular, faço a barganha de ser amado, é inteiramente mágico chorar para ter em troca: mãe.

Até que o ruído familiar entra pela porta e o menino, mudo de interesse pelo que o poder de um menino provoca, pára de chorar: mãe. Mãe é: não morrer. E sua segurança é saber que tem um mundo para trair e vender, e que o venderá.

É mãe, sim é mãe com fralda na mão. A partir de ver a fralda, ele recomeça a chorar.

"Pois se você está todo molhado!"

A notícia o espanta, sua curiosidade recomeça, mas agora uma curiosidade confortável e garantida. Olha com cegueira o próprio molhado, em nova etapa olha a mãe. Mas de repente se retesa e escuta com o corpo todo, o coração batendo pesado na barriga: fonfom!, reconhece ele de repente num grito de vitória e terror – o menino acaba de reconhecer!

"Isso mesmo!", diz a mãe com orgulho, "isso mesmo, meu amor, é fonfom que passou agora pela rua, vou contar para o papai que você já aprendeu, é assim mesmo que se diz: fonfom, meu amor!", diz a mãe puxando-o de baixo para cima e depois de cima para baixo, levantando-o pelas pernas, inclinando-o para trás, puxando-o de novo de baixo para cima. Em todas as posições o menino conserva os olhos bem abertos. Secos como a fralda nova.

4 comentários:

  1. Oi Léo,

    Este conto há de ser lido,sorvido,degustado,lambido...
    Faça-o bem devagarinho,tal qual um gato no telhado.

    Beijos e parabéns a você por ter postado este conto maravilhoso e parabéns para seu amigo de Fortaleza e viva nós todos que aqui viemos para apreciar tão bela página.

    Lucinda Pradp

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  2. Léo,
    Torno-me repetitivo, mas é imprescindível dizer-lhe o quanto me emociona passear por estas suas praias. O encontro de um Veleiro Perdido, em sua Felicidade Clandestina, chega-lhe em Clarice! Que bom que sejam vocês.
    A sensibilidade das coisas é o possível ponto de convergência. Acredito que esta é a prova da afinidade e a inteireza da agregação.
    Venho e através de sua "inveja" a esta mulher tão magnificamente invejável - mas que nos reconstrói para nossa própria capacidade de vir a sermos invejáveis (talvez, principalmente, a nós mesmos) - re-encontro-me contigo, com Veleiro e com Clarice, compartilhando da sutileza do olhar sensível que faz de nossas paixões muito mais: a beleza!
    Obrigado por ter sempre este imenso prazer ao ser recebido nesta sua casa.
    Abração forte
    Érico

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  3. Oi, Lucinda! Pra nós, da turma dos contos, é um prato cheio, não?

    Beijão do
    Léo.

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  4. Erico, salve!

    Tenho fé que estes encontros ainda hão de ser ao vivo e em cores!

    Abração do
    Léo.

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