sábado, 4 de junho de 2011

Os Manos e as Minas: 3) Dia de Élio Camalle

Minha vida se divide em AC/DC. Não, não me refiro à banda. Também não me refiro ao moço nazareno. Refiro-me a Élio Camalle. Já contei o começo dessa história em Boca da Noite - Parte I, cuja parte II nunca me propus a escrever (mas um dia ainda me atrevo). O fato é que, pulando o melodrama, acompanho sua trajetória de perto, diria mesmo de muito perto. Às vezes PERIGOSAMENTE perto. Observei, interferi, discordei, ratifiquei; de acordo com a ocasião fui seu irmão mais novo, seu irmão mais velho... Enfim, vi sem óculos de proteção esse eclipse que foi a fusão de sol e lua em um único artista. E em sua obra. E me ceguei dele pra voltar com melhores olhos.  Desde o quase paleolítico Mágicas fui acompanhando as metamorfoses desse camaleônico ser, as dúvidas, as certezas, o "sangue no olho", as flores e as porradas, enfim, todo o barro do qual é feito Élio Camalle. Onde também chafurdei e do qual devo ter forjado (e fraturado) uma ou outra costela.

Posso dizer que o conheço como poucos. Sua parte anjo, sua parte demônio, sua parte glacial, sua parte incêndio... Mas Élio Camalle tem muitas partes, muitas faces. Assim, naturalmente, sua música tem muitos tons, muitos ritmos, muitas poesias. Cada disco novo é o retrato de um momento. E, mesmo que o momento de cada disco não tivesse sido dos melhores, a evolução caminhava com ele, a lapidação (e o domínio) da poesia, a canção mais na mão à serviço da palavra; e foi nesse crescendo que chegamos até o novíssimo Receita.

Do Cria pra cá tenho participado ativamente de todos os seus discos, ora como parceiro, ora atrapalhando na arte gráfica, muitas vezes como revisor ou consultor gramatical, enfim, dando meus pitacos aqui e acolá. E, fora A Felicidade.exe, tenho tido a alegria de ver parcerias nossas incluídas em todos os citados trabalhos. Por falar em A Felicidade.exe, neste tive a quase traumática experiência de ter duas canções extraídas dele a fórceps, porque Camalle estava num momento de dar a cara a tapa sem discípulos, sem parceiros. De raiva, me vinguei na arte gráfica, mas não consegui atrapalhar o suficiente pra abalar a qualidade do todo.

Pois bem, voltando ao Receita, este foi o primeiro disco de Camalle no qual não dei sugestão, não ajudei de nenhuma forma, apenas sabia à distância de seu andamento. Mesmo porque foi um disco-relâmpago. Da noite pro dia Camalle juntou uma banda, conseguiu um espaço com qualidade suficiente pra fazer um show que pudesse virar disco e o fez. Quando soube, o CD já estava pronto e não tive mais o que fazer que esperar. Também soube nos acréscimos que outra canção havia sido abortada, esta, por não ter sido bem executada na gravação ao vivo. Mas sobrevieram duas: a já conhecida Triste Figura, agora rebatizada de Dulcineia, e Demência, uma letra minha musicada por Daisy Cordeiro e Márcia Salomon da qual Camalle sempre gostou, até que resolveu, enfim, gravá-la. Não sem dar uma melhorada na letra, sem cobrar parceria. Mas conosco também acontecem dessas coisas. Da mesma forma eu havia dado duas ou três sugestões em uma ou outra canção.

E eis que chegou o tão esperado dia do lançamento do CD. No dia 3 de junho, vulgo ontem, às 19h, Camalle entrava no belo palco da Sala Adoniran Barbosa, no Centro Cultural de São Paulo, com uma banda de craques, pra mostrar a Receita. E eu ali, na plateia, mais uma vez, esperando mais do mesmo. Ou seja, os shows de Camalle sempre são bons, porque ele, rato de palco, sabe a medida exata do caber. Mas ontem o que meus olhos viram não se comparam a nada do que ele já havia feito antes. Vi um artista em pleno domínio da arte (não da técnica, da arte!) soltar-se, despir-se, entregar-se e, arrebatado, arrebatar. Do meu lado esquerdo Kana assistia a tudo com olhos brilhantes e ouvidos acarinhados. Do meu lado direito minha amiga Corina Sales dançava no assento, cantava, soltava gritinhos tietes, chegou mesmo a me perguntar como eu podia permanecer parado como um poste, como se estivesse imune a tudo. Ela não sabia da quase convulsão interior que me acometia. Embora eu estivesse aparentemente ameno, minhas veias ferviam e meu coração batucava, todo o meu ser encantado por ver um espetáculo de tanta grandeza, e proporcionado por um amigo e parceiro do coração. Corina, querida, não se mede o orgasmo pela altura do grito!

Pra não me alongar muito, ao final a sensação que tive foi de estar num Credicard Hall da vida assistindo a um monstro sagrado da MPB em seu melhor momento. O show de Camalle não ficou a dever em nada a nenhum desses aos quais vamos tendo pago 200 pilas (ou mais). O trabalho da produção foi impecável, a decoração do palco estava simples, mas de bom gosto, a disposição dos músicos e instrumentos tinha um caráter artístico, e a apresentação... Ah, esta, seguramente, entrou pra história da carreira do moço. Espero que ele possa viajar país afora levando esse espetáculo de encher os olhos e ouvidos pra outras plateias. O público só terá a ganhar.

Ah, a casa estava cheia, apesar de eu ter notado algumas ausências de peso, a exemplo do que já havia acontecido nos shows de Kana e Samantha Navarro. Uma pena. Mais pra quem perdeu, é claro, que pros espetáculos.

Quanto ao CD Receita, trouxe-o pra casa e o estou escutando agora, enquanto escrevo. Não sei se é o melhor trabalho de Camalle, pois só o tempo é capaz de dar tal dimensão. O que posso afirmar é que há não poucas obras-primas nele, o que hoje em dia é muito. A verdade é que Camalle é desses artistas que a cada novo trabalho já nos deixam com água na boca à espera do próximo, pois sua criatividade parece vir de um poço sem fundo. Se Élio Camalle tem alguma receita, esta é a de ser um cancionista como poucos. Infelizmente (ou felizmente), não é dessas receitas que se possam copiar só juntando os ingredientes. E Camalle, como todo mestre, sabe guardar pra si o algo mais que faz a diferença no sabor do prato. A nós, resta-nos degustar, sem dieta. Afinal, "a vida às vezes é somente um dia, um instante".

E o dia hoje é seu, Camalle! Parabéns!

***

4 comentários:

  1. Paulinho também não conseguiu postar comentário:

    Você escrevendo sobre Camalle só pode mesmo ser essa maravilha acima. Parabéns para ambos!!!
    Paulinho das Frases

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  2. Valeu, Paulinho! Que bom que você, blogueiro profissional, aprovou! Hehe! Gente o Paulinho tem um blog altamente recomendável: http://colunistas.ig.com.br/bocanotrombone/

    Abração, Paulinho,
    Léo.

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  3. De fato. Camalle é realmente um "gigante". A cada trabalho, uma boa surpresa. Sou fã!
    Daisy Cordeiro

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  4. E eu sou fã da fã!

    Beijos, inevitável!
    Léo.

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