terça-feira, 5 de julho de 2011

Ninguém me Conhece: 48) Lucio Dalla, una testa piena di pensieri

Em minha adolescência tive um arremedo de paquera que não durou mais que um suspiro, mas deixou marcas profundas nel mio cuore. Apaixonei-me por uma jovem italiana que viera ao Brasil em missão religiosa. Futuramente ela se tornaria freira em clausura, o que, sinceramente, achei um desperdício, pois sua boca nascera pra mais que orações.

O fato é que la ragazza, de nome tão curto quanto poético (Tea), antes de pegar seu Alitalia rumo à solidão, presenteou-me com uma fita que a acompanhava na viagem e que continha alguns sucessos italianos, como Azzurro ("il pomeriggio è troppo azzurro e lungo per me"...), na voz do canastrão Adriano Celentano, e duas canções que me marcaram durante anos, de autoria de (e na voz de) Fabio Concato, um cantautore de voz delicada e requintadas melodias (não confundir com requentadas). Eram elas: Guido Piano e Fiore di Maggio. Essas duas canções me marcaram sobretudo porque eram as preferidas dela.


1) Caruso (Lucio Dalla)

Tea foi uma das primeiras das muitas desilusões amorosas que colecionei ao longo dessas quase quatro décadas de vida. O que fiz? Sufoquei il mio dolore num curso de italiano, que frequentei durante um ano e meio. Por conta desse curso, passei a ser fã do cinema italiano e virei frequentador assíduo de uma loja de CDs que existe até hoje na rua São Bento, no centro de Sampa, especializada em importados.

Foi por indicação do dono da tal loja que entrei em contato com a complexa música de Lucio Dalla. Admito que, à primeira audição, me causou estranheza. A voz do fulano era rouca e rascante; as letras (quilométricas) pareciam não caber dentro das melodias; alguns temas eram mesmo escabrosos (havia uma canção que se chamava Merdman, que significa exatamente isso que você está pensando); e, pra acabar de completar, a própria compleição física dele não ajudava muito: baixinho, gordo e... careca!

Parecia que minha relação com sua música estava fadada ao fracasso. Fiquei mesmo meio puto por ter morrido com uma grana considerável em troca de sonoridade tão obtusa. Até que quatro fatos paralelos vieram alterar o rumo dos acontecimentos: 1) Descobri, não sei por que cargas d'água, que uma das canções que mais amava de Chico Buarque era dele, Minha História, que, na verdade, era uma versão de uma canção de Dalla chamada 4/3/1943 (não coincidentemente também data de seu nascimento); 2) Me amarrei num comercial televisivo que fundia duas canções, O Que É O Que É, de Gonzaguinha, e Felicità (esta última, de Dalla); 3) Assisti, por acaso, a um especial de TV com apresentações, respectivas, de Dalla e do romântico Eros "Cose Della Vita" Ramazzotti, no qual Dalla cantou sua imortal Caruso; e 4) Num disco de Toquinho, este gravara uma canção de e com Dalla, La Casa in Riva al Mare, cuja história acabei roubando pra escrever meu primeiro (e esquecido - até por mim) romance.

Ou seja, quatro canções fantásticas do tampinha (que também era "quatro-olho") Dalla. Dei-lhe então mais uma chance e, a cada disco novo, ia descobrindo novas pérolas. Inclusive aquelas canções que à primeira audição me pareceram intragáveis revelavam-se aos poucos ante meus ouvidos - e olhos, visto que, à medida que meu conhecimento da língua aumentava, compreendia mais e mais a profundidade de sua poesia... Com'È Profondo il Mare...

Dalla surgiu nos anos 60 e fez parte de um movimento não organizado de cantautori que vinha romper com a tradição "macarrônica" que vigorava então na música italiana, com suas Ritas Pavones e seus Pepinos Di Capris. Mais ou menos como um tapa tropicalista na cara da estética da canzone que se fazia por aquelas bandas e se multiplicava por meio dos festivais de San Remo da vida.

2) Felicità (Lucio Dalla)

A partir daí os cantautori seriam tão aclamados, que chegaria mesmo a se tornar difícil a vida dos cantores (sem distinção de sexo) que não compusessem suas próprias canções, pois a letra que se começava a escrever era então ideológica, experimental, com ecos do (não tão) longínquo movimento beat.  Era maio de Paris indo pro mundo.

Dalla, sobre um palco, viu-se imenso do alto de seu pouco mais de metro e meio, cantando as canções que a gente (italiana) queria ouvir, com sua voz surpreendentemente soul. Mas, apesar dos abusos e dos arroubos, do endemoninhado clarinete e do "piano-forte", Dalla ainda não se sentia confortável pra escrever suas próprias letras. Afinal, trabalhavam a serviço de suas melodias gente como Sergio Bardotti, uma espécie de Vinicius de Moraes italiano, entre outros. Só aproximadamente uma década depois, mais precisamente no ano de 1977, Dalla estaria à frente de nova revolução musical, dessa vez, interior. Seu disco Com'È Profondo il Mare trazia canções com letras de sua autoria, complexas, experimentais, maduras, como se o poeta que se escondera dentro dele durante anos tivesse sido lapidado em silêncio (e às escuras) até se sentir seguro pra mostrar suas afiadas garras poéticas. Os melhores discos de Lucio Dalla ainda estavam por vir.

Até bem pouco tempo atrás, mantinha atualizada minha coleção de discos de Dalla e acompanhava de perto seus altos e baixos. Posso dizer, sem medo de errar, que é um dos cancionistas mais relevantes da história da música mundial, cuja obra, infelizmente, ficou restrita à Itália e a alguns países de língua hispânica onde suas canções foram traduzidas. 

O tempo passou, estudei espanhol, enamorei-me dessa nova (e imensa) fonte de cultura e deixei um tanto de canto Dalla e i suoi fratelli. Faço um mea-culpa. Fiquei sabendo que Dalla hoje usa uma charmosa (e polêmica) peruca, que brigou com Chico Buarque e cancelou a trilha sonora que fariam juntos pra uma versão italiana pra teatro de Dona Flor e Seus Dois Maridos, e que continua compondo e gravando bastante, só que um tiquinho mais longe de meus ouvidos. Mas, de vez em quando, me bate uma saudade desse país tão brasileiramente contraditório (de Fellini e Berlusconi), de gente calorosa, língua musical, filmes inesquecíveis e canções geniais. Nesses dias, lembro-me das três letras daquele nome, chego a sentir o perfume das fiori di maggio, e ponho um Dalla pra tocar. 

***

Digamos que o texto acabou e que o que segue é uma espécie de bônus, pois me lembrei de uma história que não me perdoaria se não contasse. Ei-la:

Em 1986 se abriam finalmente as portas dos EUA pra música de Dalla. E em grande estilo. Durante uma turnê de um mês, Dalla gravaria ao vivo um disco que se chamaria Dallamerica. Só que, poucos dias antes, ele comporia uma canção que iria mudar os rumos dos acontecimentos: Caruso, cuja versão de estúdio ele fez questão de incluir no disco, que foi rebatizado de DallAmeriCaruso. Transcrevo (e traduzo) suas palavras, explicando numa entrevista como nasceu a canção:

"Este verão, em Sorrento, tive a ideia de instalar-me no belíssimo apartamento que por tanto tempo hospedou o maior cantor de todos os tempos: Caruso. O hotel havia conservado os quartos intactos, havia seu piano, que usei pra compor a canção, seus livros, fotos dele com um menino nos braços e com algumas senhoras. Angelo, que tem um belo bar no porto, contou-me a história de seus últimos dias de vida. Caruso estava doente, com câncer na garganta, e sabia que tinha seus dias contados, mas isso não o impedia de dar lições de canto a uma jovem cantora pela qual aparentemente estava apaixonado. Numa noite muito quente, não quis renunciar a cantar diante dela, que o olhava admirada, e, mesmo estando mal, fez transportarem o piano até seu terraço, que dava pro porto. Caruso cantou, mais que um romance, uma apaixonada confissão de amor e sofrimento, duas coisas que costumam viajar juntas. Sua voz ainda era tão potente, que pôde ser ouvida além do porto, assim, todos os pescadores foram se aproximando pra escutá-lo e atracaram os barcos sob seu terraço. A iluminação vinda dos barcos fazia-os parecerem estrelas no céu, e Caruso, vendo-os, pensou que estava em Nova York, diante de seus arranha-céus, e encontrou forças pra continuar cantando, comovido, perdido nos olhos da garota, que, debruçada ao piano, lhe assistia. Por fim, o estado de Caruso se agravou. Pouco tempo depois, veio a falecer... Escrevi esta canção como uma pequena homenagem à tradição musical napolitana."

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3) 4/3/1943 (Lucio Dalla - Paola Pallottino)

Digamos que o bônus acabou e que o que segue é uma espécie de pós-bônus, pois me lembrei de uma versão que não me perdoaria se não divulgasse. Ei-la:

Minha canção predileta de Dalla chama-se Felicità. Quis mesmo lhe fazer uma versão em português, mas alguém já a tinha feito, então fiz uma em espanhol. Seria cabotino se a postasse aqui. Ao contrário, postarei a feita em nossa língua. Vamos ver quem adivinha quem é o autor dela (que permanece inédita):

Se todos os astros do mundo num certo momento caíssem no chão/ toda uma série de estrelas, de poeira descarregada dos céusmas os céus sem os teus olhos já não brilharão.Se todos os homens do mundo levantassem a cabeça e saíssem voando, sem explicaçãosem a sua bagunça, seu doloroso barulho, não pulsaria a terra, pobre coração.Me falta sempre um elástico pra segurar as calçasde modo que as calças no momento mais belo me caem no chão.Como um sonho acabado, talvez um sonho importanteum amigo traído, eu também já fui traído, mas isso é outra canção.No escuro do céu, cabeças brancas peladasas nossas palavras se movem cansadas, balbuciamos em vãoMas eu tenho gana de falar, de ficar escutando.Fazer papel de bobo, seguir fazendo tudo o que me der na telha, ou nãoAh! felicidadeEm que vagão de trem noturno viajarásEu sei que passarásMas como estás com pressa não paras jamaisSeria o caso de nadar, sem esquentar a cabeçadeixar-se levar pra dentro de dois olhos grandesazuis ou nãoE no afã de libertá-losatravessar um mar medieval, enfrentar um dragão estrábicomas dragões, oh, baby, já não existirãoTalvez por isso os sonhos são assim pálidos, brancose exaustos se rebatem através das antenas de televisãoe voltam pra nossas casas trazidos por senhores eleganteslatrinas falantes, todo mundo aplaudindo, não querendo mais nãoPorém se este mundo é mera cartolinaentão pra sermos felizes, bastaria um nadabastaria um fio de música, quiçáOu não seria o caso de tentar fechar os olhosmas assim que fecharmos os olhos, quem sabe o que seráAh! felicidadeEm que vagão de trem noturno viajarásEu sei que passarásMas como estás com pressa não paras jamais...

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Visite o site de Dalla

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8 comentários:

  1. Léo, é sempre agradável e instrutivo ler as novidades de seu cantinho literário.
    Continue alimentando-o.
    Grande abraço!

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  2. Salve, Cláudio! Grato pela força!

    Abração do
    Léo.

    P.S. Não vai arriscar dar sua opinião sobre quem é o autor da versão acima de Felicità?

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  3. Piango insieme a te la morte subita di Lucio Dalla...lo adoravo anch'io...peccato.

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    1. Sandrinha, l'ho imparato da te. Grazie. Il pianto è il nostro ... Sono senza parole ...

      Léo.

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  4. Caro, fiquei tão triste com a morte de Dalla que uma amiga em comum me repassou seu texto. Durante alguns anos, usei as canções dele nas aulas de italiano ao meus alunos. Fascinado pelas longas letras achei que seria bom espalhar esse cantautore aos iniciados na língua de Dante. Sugiro, caso você não a conheça ainda, conhecer o trabalho de Fiorella Mannoia, cantautrice engajada política e socialmente. Uma voz ímpar! Ah, permita-me uma correção. A música Minha História, de Chico, foi baseada em Gesú Bambino e não em 4/3/1943, como você escreveu no blog. Auguri!

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    1. Caro Aderbal! Grato pela visita e pela dica! Vou pesquisar a respeito da Fiorella. Só um detalhe: Gesùbambino e 4/3/1943 são a mesma canção.

      Tanti auguri,
      Léo.

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  5. adorei seu texto, nunca encontrei ninguem que me traduzisse tão bem Dalla (tb, são tão poucos que conhecem suas músicas no br, como vc mesmo diz..) valeu amigo!
    um abraço e fiquemos com suas lindas e eternas canções. ah, ia me esquecendo, felicitá tb é a minha música favorita.

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    1. Lenir, agradeço por suas palavras!

      Volte mais vezes; há muito mais gente boa por aqui por ser ouvida/lida.

      Abração do
      Léo.

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