Tenho pena dos pobres mortais que passam a vida sem descobrir o prazer da leitura. Eu, apesar de também mortal, e mais ainda pobre, alcanço um êxtase praticamente sexual que me faz beirar a imortalidade (e a riqueza) com determinados livros. E ainda mais com determinados autores.
Quem já provou dessa droga barata (caríssima) que é a leitura sabe do que estou falando. E, da mesma forma que as drogas em geral, a leitura, de tempos em tempos, instiga-nos a explorar novos sabores. E foi assim que, todo un explorador, deparei-me com Mario Benedetti.
Sempre achei de uma arrogância ímpar aqueles que arrotavam que "fulano tem que ser lido no original". Pois não é que me peguei vítima do mesmo "arroto"? Calhou que, por acaso, numa visita a Montevidéu (pra quem não sabe, ele é uruguaio), li de uma sentada La tregua, e, na sequência, todos os outros romances que li de Benedetti, fi-lo no original. E não é que percebi pequenas impagáveis (e intraduzíveis) peculiaridades nessa sequência de leituras?
Claro que há exceções (o que seria do mundo sem elas?); Paulo Coelho, por exemplo, deve ser uma delícia de ser lido em francês (pra quem domina a língua de Zola), mas, brincadeiras à parte, Benedetti... Ah, Benedetti... Sabe o que é uma leitura que te desce tão macia quanto un chorizo argentino jugoso (desculpem, un entrecot uruguayo... ¡jeje!)? Assim é a escrita de Benedetti. Sem empáfia, sem se "dar ares". Técnica a serviço do coração, tudo correndo/sangrando pela mesma veia.
Uma vez disse a meu amigo Élio Camalle algo que acabou virando um bordão nosso: "Quem é é, quem não é não é". E Benedetti é! Não precisa citar fulanóvski ou beltranne pra impor sua intelectualidade. Acho mesmo que ele não estava nem aí pra isso de ser intelectual (quem é...). E, mesmo quando citava, fazia-o de forma tão delicada, que quase não parecia ser citação. Por exemplo, numa passagem de La borra del café, o comandante de um voo que ia com destino a Quito avisa aos passageiros que em três horas e dez minutos pousarão no aeroporto de Mictlán. Fiquei encafifado com o nome de tal cidade e, quando fui pesquisar, descobri tratar-se do nível inferior da terra dos mortos na mitologia asteca!
As preocupações de Benedetti eram bem mais abissais. E, embora suas páginas estivessem repletas de preocupação social, ele se abstinha de ser um chato panfletário. O que queria dizer deixava por conta das personagens. Assim, atingia o cerne do social descendo aos infernos do indivíduo. E eu, na condição de leitor, desci aos infernos de Benedetti pra chegar a seu céu/cerne. Ainda me falta entranhar-me em sua poesia (sim, o homem também é poeta), pois isso se dará num estágio mais avançado; por ora me (i)limito a escarafunchar seus romances.
Os romances de Benedetti me pegaram tão de um jeito, calaram (gritaram!) tão profundamente dentro de meu íntimo, que parece que o conheço, é como se o cara fosse um tio, um avô, um padrinho, sei lá, algo assim (e notem quanta doçura/tristeza há em seus olhos). Ou como se fosse um daqueles caras mais velhos com quem a gente se depara na juventude e que muda nossa vida por meio de seus ensinamentos. Quando jovem, via filmes nos quais esses caras apareciam (como Cinema Paradiso) e ficava reparando por aí na esperança de esbarrar em algum deles. Acabei esbarrando em alguns, mas por meio de seus livros.
Estivesse vivo hoje, estaria completando 92 anos. Mas vejam como são as coincidências. Eu não sabia dessa data comemorativa. Estou escrevendo este texto aos poucos, já há quase um mês (é a falta de tempo...), e esta semana, pesquisando mais sobre ele, reparei na data, daí que dei uma acelerada pra conseguir postar o texto hoje. Em compensação, lembro-me de quando morreu (17/5/2009), pois poucos dias depois partiu também Zé Rodrix (22/5/2009). Duas perdas e tanto!
Mas queria aproveitar a data pra prestar essa sincera (e sentida) homenagem a esse gigante da literatura e celebrar, sim, a vida por meio de sua obra. Lembrando novamente Rodrix, este me disse certa vez que os homens morrem e as obras ficam, e a obra de Benedetti é tão maiúscula, que, se você nunca teve a oportunidade de entrar em contato com ela, vá depressa à livraria mais próxima e compre, pra começar, A trégua. Garanto que, mais do que não se arrepender, viciar-se-á!
Num pega pra capar recente feicibuquístico, meu amigo Veleiro usou golpe baixo citando Jorge Luis Borges. Embora eu discordasse de sua argumentação, encantaram-me as palavras de Borges e achei que seriam oportunas pra terminar este texto, pois elas caem como uma luva na literatura de Benedetti. A elas, pois:
"Acho a frase 'leitura obrigatória' um contrassenso. A leitura não deve ser obrigatória. Devemos falar de prazer obrigatório? Por quê? O prazer não é obrigatório, o prazer é algo buscado. Felicidade obrigatória! A felicidade, nós também buscamos. Fui professor de literatura inglesa durante 20 anos na Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de Buenos Aires e sempre aconselhei a meus alunos: se um livro os aborrece, larguem-no; não o leiam porque é famoso, não leiam um livro porque é moderno, não leiam um livro porque é antigo. Se um livro for maçante para vocês, larguem-no; mesmo que esse livro seja Paraíso Perdido ― para mim não é maçante ― ou Quixote ― que para mim também não é maçante. Mas, se há um livro maçante para vocês, não o leiam: esse livro não foi escrito para vocês. A leitura deve ser uma das formas de felicidade, de modo que eu aconselharia a esses possíveis leitores de meu testamento ― que não penso escrever ―, eu lhes aconselharia que lessem muito, que não se deixassem assustar pela reputação dos autores, que continuassem a buscar uma felicidade pessoal, um gozo pessoal. É o único modo de ler."
Quem já provou dessa droga barata (caríssima) que é a leitura sabe do que estou falando. E, da mesma forma que as drogas em geral, a leitura, de tempos em tempos, instiga-nos a explorar novos sabores. E foi assim que, todo un explorador, deparei-me com Mario Benedetti.
Sempre achei de uma arrogância ímpar aqueles que arrotavam que "fulano tem que ser lido no original". Pois não é que me peguei vítima do mesmo "arroto"? Calhou que, por acaso, numa visita a Montevidéu (pra quem não sabe, ele é uruguaio), li de uma sentada La tregua, e, na sequência, todos os outros romances que li de Benedetti, fi-lo no original. E não é que percebi pequenas impagáveis (e intraduzíveis) peculiaridades nessa sequência de leituras?
Claro que há exceções (o que seria do mundo sem elas?); Paulo Coelho, por exemplo, deve ser uma delícia de ser lido em francês (pra quem domina a língua de Zola), mas, brincadeiras à parte, Benedetti... Ah, Benedetti... Sabe o que é uma leitura que te desce tão macia quanto un chorizo argentino jugoso (desculpem, un entrecot uruguayo... ¡jeje!)? Assim é a escrita de Benedetti. Sem empáfia, sem se "dar ares". Técnica a serviço do coração, tudo correndo/sangrando pela mesma veia.
Uma vez disse a meu amigo Élio Camalle algo que acabou virando um bordão nosso: "Quem é é, quem não é não é". E Benedetti é! Não precisa citar fulanóvski ou beltranne pra impor sua intelectualidade. Acho mesmo que ele não estava nem aí pra isso de ser intelectual (quem é...). E, mesmo quando citava, fazia-o de forma tão delicada, que quase não parecia ser citação. Por exemplo, numa passagem de La borra del café, o comandante de um voo que ia com destino a Quito avisa aos passageiros que em três horas e dez minutos pousarão no aeroporto de Mictlán. Fiquei encafifado com o nome de tal cidade e, quando fui pesquisar, descobri tratar-se do nível inferior da terra dos mortos na mitologia asteca!
As preocupações de Benedetti eram bem mais abissais. E, embora suas páginas estivessem repletas de preocupação social, ele se abstinha de ser um chato panfletário. O que queria dizer deixava por conta das personagens. Assim, atingia o cerne do social descendo aos infernos do indivíduo. E eu, na condição de leitor, desci aos infernos de Benedetti pra chegar a seu céu/cerne. Ainda me falta entranhar-me em sua poesia (sim, o homem também é poeta), pois isso se dará num estágio mais avançado; por ora me (i)limito a escarafunchar seus romances.
Os romances de Benedetti me pegaram tão de um jeito, calaram (gritaram!) tão profundamente dentro de meu íntimo, que parece que o conheço, é como se o cara fosse um tio, um avô, um padrinho, sei lá, algo assim (e notem quanta doçura/tristeza há em seus olhos). Ou como se fosse um daqueles caras mais velhos com quem a gente se depara na juventude e que muda nossa vida por meio de seus ensinamentos. Quando jovem, via filmes nos quais esses caras apareciam (como Cinema Paradiso) e ficava reparando por aí na esperança de esbarrar em algum deles. Acabei esbarrando em alguns, mas por meio de seus livros.
Estivesse vivo hoje, estaria completando 92 anos. Mas vejam como são as coincidências. Eu não sabia dessa data comemorativa. Estou escrevendo este texto aos poucos, já há quase um mês (é a falta de tempo...), e esta semana, pesquisando mais sobre ele, reparei na data, daí que dei uma acelerada pra conseguir postar o texto hoje. Em compensação, lembro-me de quando morreu (17/5/2009), pois poucos dias depois partiu também Zé Rodrix (22/5/2009). Duas perdas e tanto!
Mas queria aproveitar a data pra prestar essa sincera (e sentida) homenagem a esse gigante da literatura e celebrar, sim, a vida por meio de sua obra. Lembrando novamente Rodrix, este me disse certa vez que os homens morrem e as obras ficam, e a obra de Benedetti é tão maiúscula, que, se você nunca teve a oportunidade de entrar em contato com ela, vá depressa à livraria mais próxima e compre, pra começar, A trégua. Garanto que, mais do que não se arrepender, viciar-se-á!
Num pega pra capar recente feicibuquístico, meu amigo Veleiro usou golpe baixo citando Jorge Luis Borges. Embora eu discordasse de sua argumentação, encantaram-me as palavras de Borges e achei que seriam oportunas pra terminar este texto, pois elas caem como uma luva na literatura de Benedetti. A elas, pois:
"Acho a frase 'leitura obrigatória' um contrassenso. A leitura não deve ser obrigatória. Devemos falar de prazer obrigatório? Por quê? O prazer não é obrigatório, o prazer é algo buscado. Felicidade obrigatória! A felicidade, nós também buscamos. Fui professor de literatura inglesa durante 20 anos na Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de Buenos Aires e sempre aconselhei a meus alunos: se um livro os aborrece, larguem-no; não o leiam porque é famoso, não leiam um livro porque é moderno, não leiam um livro porque é antigo. Se um livro for maçante para vocês, larguem-no; mesmo que esse livro seja Paraíso Perdido ― para mim não é maçante ― ou Quixote ― que para mim também não é maçante. Mas, se há um livro maçante para vocês, não o leiam: esse livro não foi escrito para vocês. A leitura deve ser uma das formas de felicidade, de modo que eu aconselharia a esses possíveis leitores de meu testamento ― que não penso escrever ―, eu lhes aconselharia que lessem muito, que não se deixassem assustar pela reputação dos autores, que continuassem a buscar uma felicidade pessoal, um gozo pessoal. É o único modo de ler."
Benedetti, ¡gracias por el fuego!
***
Vc sabe me informar de que texto do Borges veio este excerto?
ResponderExcluirALemos, descobri o fragmento acima ontem, enviado pelo Veleiro pra ilustrar seu argumento no meio de uma discussão. Gostei tanto que pesquisei rapidamente no Google pra ver se não era mais uma dessas postagens fake e descobri que faz parte de um livro chamado "Borges Professor", que na verdade é resultado de aulas que ele ministrou que foram transcritas por seus alunos e posteriormente publicadas. Mas o Veleiro pode dizer mais, já que partiu dele a informação. Inclusive, ou muito me engano, ou já escreveu a respeito. Diga lá, Veleiro!
ExcluirAbraço,
Léo.
Valeu!
ResponderExcluirNão por isso!
ExcluirParabéns Léo texto delicioso.
ResponderExcluirValeu, Totó! Lê o homem!
ExcluirAbraço,
Léo.