terça-feira, 22 de outubro de 2013

Crônicas Desclassificadas: 106) Biografias ou A privacidade na Era da Exposição

Cena de Fahrenheit 451
Claro que eu não ia deixar passar a oportunidade de meter minha colher nesse doce de leite que todo mundo tá provando, né ou não é? Só que, do alto de minha "leiguice", como não possuo capacidade/conhecimento pra entrar na questão legal, vou ao menos enfatizar o legal que é ter o privilégio/prazer de ler biografias. Sem querer ser redundante, todos sabemos que há biografias e Biografias. Há aquelas feitas apenas pra saciar a curiosidade mórbida do fã abelhudo, e há outras que resultam de um extenso, complexo e apaixonado trabalho de pesquisa. Ao passo que aquelas estão mais próximas da categoria autoajuda, estas possuem um grau de qualidade que as aproxima dos bons romances.

Uma biografia bem-escrita e fruto de elaborada pesquisa oferece ao leitor um sabor todo especial, pois, embora se assemelhe a um romance, tem o diferencial de contar algo que realmente aconteceu. Claro que nem tudo o que se escreve é verdade, mas mesmo as questões polêmicas acabam dando um tempero a mais à leitura. Dou um bom exemplo disso: quando estava escrevendo meu TCC, que se chamou De Noel a Gardel: um Samba e um Tango, li Carlos Gardel – Su vida, su música, su época, do estadunidense(!) Simon Collier, que não fugiu de temas duvidosos, como local e data de nascimento de Gardel e as várias versões sobre sua morte (e até sobre sua possível sobrevivência ao acidente aéreo que o matou). Claro, ele ressaltou que eram suposições, mas deixou a janela aberta pro devaneio.

Ler ou não ler biografias? Eis a questão. Há quem não goste delas, há quem nelas não creia, afinal, cada um com seu cada qual, já dizia o poeta. Posso dar apenas meu depoimento. Em meu caso particular, as biografias me encantam. Lembro que passei anos à procura de Noel Rosa – uma biografia, de João Máximo e Carlos Didier (que foi extirpada das livrarias por seus descendentes), e quando, finalmente, ganhei-a (de Kana) de presente de aniversário, fiquei feliz que nem criança. Se não foi o melhor presente de aniversário que ganhei, está entre os melhores. E, rapaz, viajar pelo tempo e acompanhar as peripécias de Noel pelo Rio de princípios do século XX foi pra mim tão encantador quanto se estivesse lendo as aventuras da turma do Sítio do Pica-pau Amarelo. Tanto que, quando li sobre a morte de Noel, chorei como o fato estivesse publicado no jornal de hoje.

E mais: eu, na condição de compositor, adoro ler a respeito de como nasceram canções que hoje fazem parte de nosso cancioneiro. Isso me enriquece e me reconforta. Sabemos quão árduos são os caminhos que levam um camarada do anonimato ao reconhecimento, e, apesar de as histórias não se repetirem, nem por isso é menor o prazer com que as lemos. Outra grande biografia que me marcou de forma indelével foi Vinicius sem ponto final, de João Carlos Pecci, irmão de Toquinho (por falar nisso, lembrei-me de uma coisa. Com a licença de vocês: Rodrigo Campos, ô ingrato!, tá sisquecendo de nada, não? rs). Acho que poucas leituras me proporcionaram tanto chororô quanto a desse livro. Se eu já amava Vinicius, após essa leitura, meu amor triplicou. Não há dinheiro na conta de sua prole que pague isso.

Outro inenarrável exemplo é Roberto Carlos em detalhes, de Paulo Cesar Araújo, biógrafo que recentemente pegou Chico Buarque no contrapé e nos deu uma bela prova de que os gênios também são humanos. Assim, continuamos admirando suas obras sem, contudo, idolatrá-los. Ninguém está acima do bem e do mal, e não é um deslize que vai fazer que deixemos de gostar de uma obra. Acho, ao contrário, que o erro do ídolo o aproxima do fã. Mas, voltando ao livro de Araújo, o que quero dizer é que me foi impossível ler aquelas páginas sem identificar em cada linha o respeito e a admiração que o biógrafo deixava transparecer pelo biografado. Achei uma pequenez de Roberto proibir a circulação desse livro. No mais, convenhamos: todo mundo já sabe de seu acidente, ele mesmo já o relatou em canções como O Divã e Traumas; não vejo sentido em querer esconder isso. E o modo como o cara contou... caramba!

E fico pensando em como essa coisa de autorização prévia pode inviabilizar obras que se proponham a ser mais abrangentes. Cito dois maravilhosos exemplos: 1) considero Ruy Castro, senão o maior, um dos maiores biógrafos brasileiros. Agora mesmo estou lendo, fascinado, seu O anjo pornográfico (biografia de Nelson Rodrigues). Taí um camarada que sabe fazer uma reconstituição de época. Taqueopariu! Mas não percamos o foco; Ruy Castro se esmerou pra realizar o maravilhoso Chega de Saudade, que conta não a biografia de alguém, mas a da própria bossa nova! E 2: o não menos talentoso Nelson Motta nos presenteou com o delicioso Noites tropicas (sem falar na biografia de Tim Maia). Pois bem, se esses dois livros estivessem pra ser lançados hoje, como é que os caras fariam? Tinham que pagar direitos aos filhos de toda a MPB? Afe!

A questão não é se é chapa-branca, se é chapa-rosa ou se é chapa-quente. Há muitas autobiografias ótimas, como as recentes de Erasmo Carlos e Lobão, por exemplo. A questão é: se alguém se propõe a escrever uma biografia de uma celebridade, ou seja, aquele animal de duas patas que é famoso por ser famoso, o biógrafo vai precisar encher as páginas de seu livro com algo que atraia os fãs da tal nulidade; daí só lhe restará usar dos mesmos golpes abaixo da cintura que o biografado andou dando pra chegar aonde chegou. Isso é evidente! Agora, se o biografado for alguém que possui uma obra consistente, claro que o biógrafo vai ter que passear por aspectos de sua vida pessoal, mas esta será apenas a ponte que nos levará ao outro lado, que é onde reside a obra de fulano. Todo o percurso será apenas pra ilustrar, e valorizar, tal caminho. E seguramente o trabalho do biógrafo vai estar pleno de zelo e admiração. Duvido que não! Mundo afora temos exemplos: cito dois que li recentemente: a do canadense Leonard Cohen e a do argentino Charly García. De tirar o chapéu!

Se, contudo, o biografado for o maior azarado da paróquia e lhe couber um biógrafo azedo, um inimigo declarado, que escreva por rancor, ódio ou inveja, em primeiro lugar isso já estará claro, o que de cara desqualificará o trabalho desse fulano. Exemplo: Dirceu – a biografia, de Otávio Cabral, funcionário da Veja, que é inimiga histórica da esquerda em geral e do PT em particular. E o cara foi tão petulante, que o artigo antes de “biografia” nem sequer foi “uma”, mas “a”! Haja ódio! Em segundo lugar, pra todos os efeitos existe a lei. Se o cara se sentir ferido em sua honra, pode apelar pra ela. E não adianta falar mal da lei brasileira, pois ela costuma ser bem generosa com quem pode pagar. E a maioria dos biografados pode dispor de uns caraminguás pra engordar a conta bancária de um advogado que, finalmente, multiplicá-los-á num milionário processo.

Pra finalizar, o fato é que hoje ninguém tem mais vida privada. Se os meros mortais só faltam pôr o número de sua conta e a respectiva senha em seus perfis feicebuquísticos, que dirá um Chico Buarque dando sopa na praia com mulher alheia? Ou seja, se não for o biógrafo, serão os paparazzi. Não tem pra onde correr! Ponham isso em suas iluminadas cabeças e procurem saber se não estou com a razão. Assim, é bem melhor obedecer à ministra e relaxar. Entre a versão dos paparazzi e a do biógrafo, não é melhor ficar com a do segundo? Pelo menos este lhe dará um tratamento mais refinado, menos vulgar. E, de repente, vai que as fotos não condizem com os fatos... Nesse caso, ele, após duas ou três entrevistas, perderá algumas laudas pra explicar que não se tratava de nada daquilo que estávamos pensando. Ou seja, afinal, seu trabalho surtirá mais efeito que o de um advogado. De resto, tudo é ego. Se bobear, daqui a cem anos ninguém vai nem ler mais. E quem escreveu não vai mais estar aqui. Fui!

***

12 comentários:

  1. LEGAL !! Sintético e objetivo também ao relacionar a grandes trabalhos feitos!
    E deu uma vontade enorme de ler a do Noel !
    Será que os caras não veem que não é porquê já estão "lá" que suas histórias são ricas, patrimônio cultural?
    O medo do sensacionalismo - será que este é o ponto da privacidade? - ou os tapas que deu quando bêbado já estariam esquecidos? Conversa!
    Se já estão em conta com o público, que se acrescente suas histórias!
    Valeu!

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    1. Salve, Erico!

      Pois é, rapaz. Do modo como eles se manifestaram, a propaganda acabou surtindo efeito contrário...

      Sobre a biografia de Noel, está fora de catálogo, mas, se encontrar em algum sebo, compre, que vale a pena.

      Abração,
      Léo.

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  2. Parceiro, "me perdoe a pressa/ É a alma dos nossos negócios"!
    Concordo com você em número, gênero e grau! Fora que adoro ler uma boa biografia! Uma que adorei foi a do Gonzagão e Gonzaguinha, da Regina Echeverria.
    O que será que esses artistas tanto temem, sinceramente, não sei. Calúnias, difamações etc. vão continuar existindo... E se ocorrerem em uma biografia, recorre-se à Justiça. Enfim...
    Se eu fosse biógrafa, simplesmente desistiria de escrever sobre esses caras, por mais geniais que eles sejam.
    Fiquei com vontade de ler essas que você cita!
    Um beijão,
    Danny.

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    1. Oi, Danny!

      Adorei seu comentário por livre e espontânea pressão! rsrs

      Então, sem falar que a proibição às vezes é a melhor propaganda. Quando saiu a biografia do RC, como tava muito cara, deixei pra comprar depois. Daí, quando soube que ia ser recolhida, corri pra livraria mais próxima e comprei. Muita gente deve ter feito isso. No final, durante aqueles dias, o livro deve ter vendido muito mais do que se não tivesse sido recolhido...

      Enfim, vejamos no que vai dar... E esperemos que prevaleça o bom senso.

      Beijos,
      Léo.

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    2. Poxa, foi sob livre e espontânea pressão, mas eu até melhorei a resposta... rs

      Aguardemos!

      Beijos

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    3. Eu não disse que não. rs

      Há pressões que vêm pra bem.

      Beijos,
      Léo.

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  3. Daqui a cem anos, não lerão mais? Acho que JÁ não leem, não? [nunca vi tanto não numa só linha!] Raquel

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  4. Concordo totalmente com seu ponto de vista, Léo.

    Na hora que lhes interessam, os artistas adoram exibir suas vidas privadas, com intuito de promover seus trabalhos e aumentar suas vendas.

    Roberto Carlos ganhou muito dinheiro com as músicas que fez sobre seu acidente, ajudando a criar sua imagem de bonzinho/sofredor/carente, que tanto agrada ao público feminino balzaquiano. Caetano, entre outras ocasiões, apareceu há alguns anos numa premiação no Teatro Municipal do Rio de Janeiro usando uma saia feminina com uma jaqueta por cima, para chamar a atenção (como sempre) da mídia para seu novo disco. Gilberto Gil adora aparecer (como sempre) elogiando algum artista insignificante, para promover polêmicas e chamar a atenção para suas racionalizações ininteligíveis. Chico sempre usou as suas puladas de cerca e suas namoradas jovens para manter sua fama de pegador, ajudando a manter a sua fama entre o público feminino consumidor.

    É por isso que eu estou criando um movimento "Não Quero Saber!!!", boicotando todo tipo de informação midiática que venha desses artistas de posicionamento tão lamentável.

    De repente, é até bom proibirem de vez todas as biografias, para que a gente pare de ficar olhando para o passado, ao invés do futuro.

    abraços revoltados...
    Denilson

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    1. Hahaha! Denilson, meu caro, se revolte, não! Como escrevi acima, os artistas que aprendemos a admirar também são humanos, se equivocam, falam besteira, têm atitudes lamentáveis... Por essas e outras nosso saudoso Zé Rodrix dizia que o que importa são as obras. Por isso curto biografias: pra saber em qual contexto nasceram as obras que me tocam o coração.

      No mais, nossos "heróis" nunca ligaram muito pra "formar" sucessores. Estão mais preocupados com seu patrimônio. Infelizmente Belchior continua atual: "Hoje eu sei que quem me deu a ideia de uma nova consciência e juventude está em casa, guardado por Deus, contado o vil metal."

      Por isso estamos cá, sós, recomeçando do zero essa empreita de fazer a música brasileira continuar mantendo o nível.

      Bem, mas isso é papo pra outra biografia... rs

      Abração,
      Léo.

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