Juca Novaes é daqueles caras que agarram no gol, defendem na zaga
e ainda vão pro ataque. Quando o assunto é música, atua em várias
frentes: é cantor, compositor, pianista e violonista; criador da Fampop (Feira Avareense de Música Popular – um dos melhores festivais do país na atualidade); membro do quarteto vocal Trovadores Urbanos; manteve durante muitos anos uma dupla com o parceiro Eduardo Santhana; e, de quebra, é advogado com especialização em direitos autorais. Entre outras coisas. Escrevi a respeito dele no Ninguém me Conhece, pra ler, basta clicar em, claro, Juca. Temos algumas afinidades: ambos somos sagitarianos, gostamos de escrever, de Fernando Pessoa... e de Lenine!
Falando nisso, quando lhe pedi que escrevesse um texto tratando de algum
disco que o havia marcado, contou-me que já havia escrito um em seu
blogue (aqui) e me autorizou a utilizá-lo nesta coluna. Vamos a ele, pois:
Olho de Peixe – Lenine e Marcos Suzano – CD
Por Juca Novaes
No meio de tantas canções marcantes e bem-feitas, se destaca uma que, ao meu ver, é uma das raras que podem ser chamadas de "clássicas" na produção da música popular brasileira dos últimos 20 anos: Leão do Norte, faixa 9 do CD. A começar pela condução do violão de Lenine, originalíssima, e que se tornou uma influência, a partir daí, para as novas gerações de compositores e instrumentistas. Conheço dezenas de compositores jovens, na casa dos 20 anos, que têm essa forma de tocar como influência. E Leão do Norte não é só a condução do violão, mas o vigor musical, melódico, e a letra excelente de Paulo César Pinheiro, homenageando o Pernambuco natal de Lenine, com o conhecido refrão "Eu
sou mameluco/ sou de casa forte/ sou de Pernambuco, eu sou o leão do Norte". Leão do Norte" é uma das minhas canções preferidas, um modelo de
música bem-feita, e extraordinariamente bem executada, só com violão,
percussão e voz, na gravação do disco.
Já contei essa história em algum lugar. Tudo bem, conto de novo! 1989, pré-seleção do Festival de Avaré.
Éramos cinco pessoas na minha casa, em SP, ouvindo as centenas de fitas
cassete enviadas para o festival. Chegamos a um momento em que todos
ficaram cansados, e nesse tipo de triagem as obras realmente
diferenciadas escasseiam. Eis que, subitamente, numa despretensiosa fita
surge o som de um violão sem paralelo, com suingue e originalidade,
meio João Bosco, meio aquele Gil do Expresso 2222.
Lépidos e atentos, todos pararam e ouviram a canção até o final, sem
fôlego, só entremeados pelo silêncio respeitoso e pela indagação
persistente: "quem é esse cara?" Naquele momento todos pensaram a mesma
coisa: vai ganhar o festival!
E ganhou mesmo. Dois meses depois daquela audição, daquele jeito, só de violão e voz, num ginásio com quase três mil pessoas. Era Oswaldo
Lenine Pimentel, o Lenine, interpretando o imbatível Samba do Quilombo, letra e música dele, depois gravada pelo grupo Batacotô e por
Gilberto Gil (a foto ao lado é da sua apresentação no
festival).
Voltou à Fampop no ano seguinte, quando recebeu o terceiro lugar,
com Virou Areia, música que ele só viria a gravar em 2006, no álbum In Cité. A mesma canção viria a ser registrada, depois do festival,
nas vozes de Dionne Warwick e MPB4. Desde então, Avaré ficou indissociavelmente ligada à sua carreira.
Ficamos
amigos. Em 1992, fui à sua casa, no Rio de Janeiro, e ele me mostrou
algumas faixas, ainda inconclusas, do disco que estava gravando,
chamando a atenção para a coragem do projeto: um disco só de pandeiro,
violão e voz! Mas que pandeiro! E que violão! Era o embrião do Olho de Peixe,
um dos meus discos de cabeceira, uma das obras de referência da década
de 1990 na música popular brasileira.
A importância do disco é que
ele transpira brasilidade por todos os poros, tanto no pandeiro de
Marcos Suzano, como no suingue do violão de Lenine. E a brasilidade
continua presente mesmo nas faixas com acento pop, como em Acredite ou
Não, que abre o disco, parceria com o paraibano Bráulio Tavares:
"Estranho/ bizarro/ tudo isso aconteceu/ inesperado /normal só tem
você e eu", diz o refrão.
Lenine gosta de Caymmi, de Jobim, de Caetano. Mas também gosta de
Lulu Santos e de Rolling Stones. Nesse sentido, é um filho dileto da
Tropicália, da mistura, das diferenças, num balaio que, nas letras,
também mistura ficção científica e histórias em quadrinhos. Isso tudo
resultou num disco originalíssimo, em 11 faixas autorais, isoladamente
ou em parceria.
Bráulio Tavares, também vencedor do Festival de Avaré (em 1990), é o
principal parceiro, contribuindo, além de Acredite ou Não, com as
ótimas Miragem do Porto (depois gravada por Elba Ramalho), O Que É Bonito (com os meus versos preferidos: "eu gosto é do inacabado/ o
imperfeito, o estragado/ o que dançou/ eu quero mais erosão, menos
granito/ namorar o zero e o não/ escrever tudo o que desprezo/ e
desprezar tudo o que acredito/ eu não quero a gravação, não/ eu quero o
grito"), a suingada Caribenha Nação e a ciranda Gandaia das Ondas. A
emocionante Mais Além, também com acento pop, traz, além de Bráulio, a
participação autoral de Ivan Santos e Lula Queiroga, este também o
parceiro de Lenine em O Último Pôr do Sol.
Juca |
Olho de Peixe representa a demonstração inequívoca do talento desse pernambucano com nome de líder bolchevique (seu pai era comunista), que influenciou fortemente a música popular brasileira contemporânea. Vinte anos depois, com sua
carreira consolidada internacionalmente, ainda não me sai da cabeça a
audição daquela fita, na Alameda Franca, 1188, apartamento 32, quando
ouvi, pela primeira vez, a música de Lenine.
***
Olho de Peixe – Lenine e Marcos Suzano (1994 – Velas)
1. Acredite ou Não
(Lenine – Bráulio Tavares)
2. O Último Pôr do Sol
2. O Último Pôr do Sol
(Lenine – Lula Queiroga)
3. Miragem do Porto
3. Miragem do Porto
(Lenine – Bráulio Tavares)
4. Olho de Peixe
4. Olho de Peixe
(Lenine)
5. Escrúpulo
(Lenine – Lula Queiroga)
6. O Que É Bonito?
(Lenine – Bráulio Tavares)
7. Caribenha Nação / Tuaregue e Nagô
(Lenine – Bráulio Tavares)
8. Lá e Lô
8. Lá e Lô
(Lenine)
9. Leão do Norte
(Lenine – Paulo César Pinheiro)
10. A Gandaia das Ondas / Pedra e Areia
(Lenine) / (Lenine – Dudu Falcão)
11. Mais Além
11. Mais Além
(Lenine – Bráulio Tavares – Lula Queiroga – Ivan Santos)
***
Ouça o CD na íntegra:
Eu estava neste ediçao da Fampop como concorrente. Já disse, e repito, foi a primeira vez que vi todos os participantes de um festival subirem ao palco para cantarem juntos com o concorrente ,a cançao vencedora. Foi como se todos os compositores tivessem sido premiado. E foram...Sem exceçao, público, músicos, organizaçao. Enfim...A cultura brasileira. Me orgulho de, pelo menos nessse dia, ter dividido o palco com este que considero um dos ultimos dos dinossauros da nossa MPB: Salve Lenine, viva o Olho de Peixe
ResponderExcluirPô, Pedrão! Que depoimento bacana!
ExcluirFico feliz por saber que a música ainda pode oferecer momentos como esse. E, sim, salve Lenine!
Abração,
Léo.