Estivesse vivo dia 19 de outubro último, Vinicius de Moraes teria
comemorado um século de vida. Hipoteticamente falando, claro, pois,
vivendo como viveu, bebendo como bebeu e amando como amou, acho até que
durou muito. Mas o fato é que, graças a Deus, muito se falou do poetinha
nesses últimos dias. Porém, é bom que se diga: muito, mas não o
suficiente! A tevê, como sempre, ocupada com desimportâncias,
praticamente passou ao largo da data. Ainda bem que hoje, pra falar a
verdade, não precisamos dela mais pra praticamente nada. Visto que caiu em sua própria armadilha, deixemo-la lá, resolvendo os problemas
que ela mesma criou.
E olha que nem sempre foi assim. Provavelmente a primeira vez que ouvi falar de Vinicius foi num musical infantil da Rede Globo chamado A Arca de Noé, cujo repertório era todo de Vinicius, em parceria com Toquinho. O ano era 1980, e eu tinha então 8 anos. Vinicius (novamente com Toquinho) voltou a cruzar meu caminho anos depois, indiretamente, quando estourou nas rádios de todo o Brasil a canção Aquarela. Lembro que fiquei encantado com ela, sabia a (enorme) letra de cor e não me cansava de ouvi-la. O terceiro contato com Vinicius se deu em minha juventude, ao descobrir que havia existido décadas antes uma tal de bossa nova; mas ainda não seria dessa vez que o branco mais preto do Brasil me conquistaria...
Tal só ocorreu por intermédio de um grande amigo de escola: Toninho (já escrevi a seu respeito aqui). Antoniocarlos (que é como o chamo hoje), o mais novo de uma família de muitos irmãos, além de seu gosto pessoal acabou também incorporando o de cada um de seus irmãos. Daí que o rapaz adquiriu um ouvido eclético raro pra época. Quando eu visitava sua casa, ele sempre me mostrava discos os mais variados possíveis, desde trilhas sonoras de 007, passando por sambas antigos e chegando até o rock de Elvis Presley. E Antoniocarlos era (ainda é) simplesmente louco por Vinicius de Moraes!
... E, como ele já me havia apresentado à obra de Chico Buarque, fiquei atento a esse nome. Mas o pior foi que lhe paguei o bem com o mal (coisa de adolescente). Contou-me ele que no centro da cidade havia uma loja de discos onde podíamos encontrar muitas raridades a preços acessíveis e que estava economizando justamente pra adquirir uma obra-prima de Toquinho & Vinicius que ele sempre ouvia quando visitava a casa de um dos irmãos: o disco Vinicius/Toquinho, de 1975, um que tem uma bela capa (esta acima) de Elifas Andreato. Pois bem, o que fiz? Corri à tal loja e comprei o bendito disco! Não preciso dizer que até hoje Antoniocarlos, quando lembra o fato, recrimina minha ratonice.
Mas vamos ao que interessa: Toquinho é considerado por muitos um parceiro menor de Vinicius. Eu, porém, não comungo de tal pensamento. Futuramente adquiriria toda a obra da dupla e poderia notar que a evolução de Vinicius como letrista se deu justamente pelo choque geracional que lhe proporcionou a parceria com o compositor paulista. Hoje, analisando a obra de Vinicius como um todo, constato, sem medo de errar, que houve uma linha evolutiva em sua obra, desde "pois há menos peixinhos a nadar no mar/ do que os beijinhos que eu darei na sua boca" até "e depois, nós dois unidos/ como Eurídice e Orfeu/ fomos sendo conduzidos Gilda e eu/ pelas mágicas esferas/ que se perdem pelo céu/ em demanda de outras eras/ velhas primaveras/ que o tempo esqueceu/ pelo espaço que nos leva/ pela imensa treva/ para as mãos de Deus".
Como diria Sinhozinho Malta, "tô certo ou tô errado"? Aquele papo de peixinhos e beijinhos é legal, mas nada que se compare aos arrebatadores e emocionantes versos de Gilda, canção de seu último disco, em homenagem a sua última esposa. Versos de quem tem consciência de que está partindo. Isto posto, tornemos ao disco de 1975. Talvez a canção mais famosa do LP seja Onde Anda Você ("E por falar em saudade, onde anda você"). Pra mim, o disco inteiro é uma pérola, inclusive são lindas as intervenções poéticas de Vinicius entre as canções; mas há duas que são de chorar de lindas. E, como nada que eu fale poderá dar a devida dimensão do que elas representam, farei melhor, postarei as duas letras, na sequência:
"O meu vizinho do lado/ Se matou de solidão/ Abriu o gás, o coitado,/ O último gás do bujão/ Porque ninguém o queria,/ Ninguém lhe dava atenção/ Porque ninguém mais lhe abria/ As portas do coração/ Levou com ele seu louro/ E um gato de estimação./ Ah! Quanta gente sozinha,/ Que a gente mal adivinha/ Gente sem vez para amar,/ Gente sem mão para dar,/ Gente que basta um olhar, quase nada.../ Gente com os olhos no chão/ Sempre pedindo perdão/ Gente que a gente não vê/ Porque é quase nada./ Eu sempre o cumprimentava/ Porque parecia bom/ Um homem por trás dos óculos,/ Como diria Drummond/ Num velho papel de embrulho/ Deixou um bilhete seu/ Dizendo que se matava/ De cansado de viver/ Embaixo, assinado Alfredo,/ Mas ninguém sabe de quê." (Um Homem Chamado Alfredo)
"É comum a gente sonhar, eu sei,/ Quando vem o entardecer/ Pois eu também dei de sonhar/ Um sonho lindo de morrer/ Vejo um berço e nele eu me debruçar/ Com o pranto a me correr/ E assim, chorando, acalentar/ O filho que eu quero ter./ Dorme, meu pequenininho,/ Dorme que a noite já vem/ Teu pai está muito sozinho/ De tanto amor que ele tem./ De repente o vejo se transformar/ Num menino igual a mim/ Que vem correndo me beijar/ Quando eu chegar lá de onde eu vim/ Um menino sempre a me perguntar/ Um porquê que não tem fim/ Um filho a quem só queira bem/ E a quem só diga que sim./ Dorme, menino levado,/ Dorme que a vida já vem./ Teu pai está muito cansado/ De tanta dor que ele tem./ Quando a vida, enfim, me quiser levar/ Pelo tanto que me deu,/ Sentir-lhe a barba me roçar/ No derradeiro beijo seu/ E ao sentir também sua mão vedar/ Meu olhar dos olhos seus,/ Ouvir-lhe a voz a me embalar/ Num acalanto de adeus:/ Dorme, meu pai, sem cuidado,/ Dorme que ao entardecer/ Teu filho sonha acordado/ Com o filho que ele quer ter." (O Filho que Eu Quero Ter)
Ambas são de Toquinho e Vinicius (podem ser ouvidas abaixo), pra que não restem dúvidas sobre a qualidade da parceria de ambos (viu, Ricardo Moreira? Concorda ou "disconcorda"? rs). A segunda foi, inclusive, gravada por Chico Buarque em seu Sinal Fechado, aquele disco em que ele, cansado de ser censurado, gravou apenas canções alheias... Quer dizer, excetuando-se a de Julinho da Adelaide, mas isso vai ficar pra outro Grafite. Por ora, depois da contundência das duas letras acima, o melhor que tenho a fazer é me calar e deixar o pranto rolar... Toquinho, grazie tante! Vinicius, velho, saravá!
Lado A
1. Turbilhão
(Mutinho – Toquinho)
2. Onde Anda Você
(Hermano Silva – Vinicius de Moraes)
3. Um Homem Chamado Alfredo
(Toquinho – Vinicius de Moraes)
4. Se Ela Quisesse
(Toquinho – Vinicius de Moraes)
5. Acorde Solto no Ar
(Toquinho)
6. Conjugação da Ausente (poema)
(Vinicius de Moraes)
7. Maresia
(Toquinho)
8. Choro de Nada
(Eduardo Souto Neto – Geraldo Eduardo Carneiro)
Lado B
1. Meu Pranto Rolou
(Raul Sampaio – Benil Santos – Ivo Santos)
2. Choro Chorado pra Paulinho Nogueira (part. esp.: Paulinho Nogueira)
(Toquinho – Paulinho Nogueira – Vinicius de Moraes)
3. Separação (poema)
(Vinicius de Moraes)
4. As Razões do Coração
(Toquinho – Vinicius de Moraes)
5. Adeus
(Ismael Silva – Noel Rosa – Francisco Alves)
6. O Filho que Eu Quero Ter
(Toquinho – Vinicius de Moraes)
7. Pedro, Meu Filho (poema)
(Vinicius de Moraes)
E olha que nem sempre foi assim. Provavelmente a primeira vez que ouvi falar de Vinicius foi num musical infantil da Rede Globo chamado A Arca de Noé, cujo repertório era todo de Vinicius, em parceria com Toquinho. O ano era 1980, e eu tinha então 8 anos. Vinicius (novamente com Toquinho) voltou a cruzar meu caminho anos depois, indiretamente, quando estourou nas rádios de todo o Brasil a canção Aquarela. Lembro que fiquei encantado com ela, sabia a (enorme) letra de cor e não me cansava de ouvi-la. O terceiro contato com Vinicius se deu em minha juventude, ao descobrir que havia existido décadas antes uma tal de bossa nova; mas ainda não seria dessa vez que o branco mais preto do Brasil me conquistaria...
Tal só ocorreu por intermédio de um grande amigo de escola: Toninho (já escrevi a seu respeito aqui). Antoniocarlos (que é como o chamo hoje), o mais novo de uma família de muitos irmãos, além de seu gosto pessoal acabou também incorporando o de cada um de seus irmãos. Daí que o rapaz adquiriu um ouvido eclético raro pra época. Quando eu visitava sua casa, ele sempre me mostrava discos os mais variados possíveis, desde trilhas sonoras de 007, passando por sambas antigos e chegando até o rock de Elvis Presley. E Antoniocarlos era (ainda é) simplesmente louco por Vinicius de Moraes!
... E, como ele já me havia apresentado à obra de Chico Buarque, fiquei atento a esse nome. Mas o pior foi que lhe paguei o bem com o mal (coisa de adolescente). Contou-me ele que no centro da cidade havia uma loja de discos onde podíamos encontrar muitas raridades a preços acessíveis e que estava economizando justamente pra adquirir uma obra-prima de Toquinho & Vinicius que ele sempre ouvia quando visitava a casa de um dos irmãos: o disco Vinicius/Toquinho, de 1975, um que tem uma bela capa (esta acima) de Elifas Andreato. Pois bem, o que fiz? Corri à tal loja e comprei o bendito disco! Não preciso dizer que até hoje Antoniocarlos, quando lembra o fato, recrimina minha ratonice.
Mas vamos ao que interessa: Toquinho é considerado por muitos um parceiro menor de Vinicius. Eu, porém, não comungo de tal pensamento. Futuramente adquiriria toda a obra da dupla e poderia notar que a evolução de Vinicius como letrista se deu justamente pelo choque geracional que lhe proporcionou a parceria com o compositor paulista. Hoje, analisando a obra de Vinicius como um todo, constato, sem medo de errar, que houve uma linha evolutiva em sua obra, desde "pois há menos peixinhos a nadar no mar/ do que os beijinhos que eu darei na sua boca" até "e depois, nós dois unidos/ como Eurídice e Orfeu/ fomos sendo conduzidos Gilda e eu/ pelas mágicas esferas/ que se perdem pelo céu/ em demanda de outras eras/ velhas primaveras/ que o tempo esqueceu/ pelo espaço que nos leva/ pela imensa treva/ para as mãos de Deus".
Como diria Sinhozinho Malta, "tô certo ou tô errado"? Aquele papo de peixinhos e beijinhos é legal, mas nada que se compare aos arrebatadores e emocionantes versos de Gilda, canção de seu último disco, em homenagem a sua última esposa. Versos de quem tem consciência de que está partindo. Isto posto, tornemos ao disco de 1975. Talvez a canção mais famosa do LP seja Onde Anda Você ("E por falar em saudade, onde anda você"). Pra mim, o disco inteiro é uma pérola, inclusive são lindas as intervenções poéticas de Vinicius entre as canções; mas há duas que são de chorar de lindas. E, como nada que eu fale poderá dar a devida dimensão do que elas representam, farei melhor, postarei as duas letras, na sequência:
"O meu vizinho do lado/ Se matou de solidão/ Abriu o gás, o coitado,/ O último gás do bujão/ Porque ninguém o queria,/ Ninguém lhe dava atenção/ Porque ninguém mais lhe abria/ As portas do coração/ Levou com ele seu louro/ E um gato de estimação./ Ah! Quanta gente sozinha,/ Que a gente mal adivinha/ Gente sem vez para amar,/ Gente sem mão para dar,/ Gente que basta um olhar, quase nada.../ Gente com os olhos no chão/ Sempre pedindo perdão/ Gente que a gente não vê/ Porque é quase nada./ Eu sempre o cumprimentava/ Porque parecia bom/ Um homem por trás dos óculos,/ Como diria Drummond/ Num velho papel de embrulho/ Deixou um bilhete seu/ Dizendo que se matava/ De cansado de viver/ Embaixo, assinado Alfredo,/ Mas ninguém sabe de quê." (Um Homem Chamado Alfredo)
"É comum a gente sonhar, eu sei,/ Quando vem o entardecer/ Pois eu também dei de sonhar/ Um sonho lindo de morrer/ Vejo um berço e nele eu me debruçar/ Com o pranto a me correr/ E assim, chorando, acalentar/ O filho que eu quero ter./ Dorme, meu pequenininho,/ Dorme que a noite já vem/ Teu pai está muito sozinho/ De tanto amor que ele tem./ De repente o vejo se transformar/ Num menino igual a mim/ Que vem correndo me beijar/ Quando eu chegar lá de onde eu vim/ Um menino sempre a me perguntar/ Um porquê que não tem fim/ Um filho a quem só queira bem/ E a quem só diga que sim./ Dorme, menino levado,/ Dorme que a vida já vem./ Teu pai está muito cansado/ De tanta dor que ele tem./ Quando a vida, enfim, me quiser levar/ Pelo tanto que me deu,/ Sentir-lhe a barba me roçar/ No derradeiro beijo seu/ E ao sentir também sua mão vedar/ Meu olhar dos olhos seus,/ Ouvir-lhe a voz a me embalar/ Num acalanto de adeus:/ Dorme, meu pai, sem cuidado,/ Dorme que ao entardecer/ Teu filho sonha acordado/ Com o filho que ele quer ter." (O Filho que Eu Quero Ter)
Ambas são de Toquinho e Vinicius (podem ser ouvidas abaixo), pra que não restem dúvidas sobre a qualidade da parceria de ambos (viu, Ricardo Moreira? Concorda ou "disconcorda"? rs). A segunda foi, inclusive, gravada por Chico Buarque em seu Sinal Fechado, aquele disco em que ele, cansado de ser censurado, gravou apenas canções alheias... Quer dizer, excetuando-se a de Julinho da Adelaide, mas isso vai ficar pra outro Grafite. Por ora, depois da contundência das duas letras acima, o melhor que tenho a fazer é me calar e deixar o pranto rolar... Toquinho, grazie tante! Vinicius, velho, saravá!
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Vinicius/Toquinho – Toquinho & Vinicius de Moraes (1975 – Philips)
1. Turbilhão
(Mutinho – Toquinho)
2. Onde Anda Você
(Hermano Silva – Vinicius de Moraes)
3. Um Homem Chamado Alfredo
(Toquinho – Vinicius de Moraes)
4. Se Ela Quisesse
(Toquinho – Vinicius de Moraes)
5. Acorde Solto no Ar
(Toquinho)
6. Conjugação da Ausente (poema)
(Vinicius de Moraes)
7. Maresia
(Toquinho)
8. Choro de Nada
(Eduardo Souto Neto – Geraldo Eduardo Carneiro)
Lado B
1. Meu Pranto Rolou
(Raul Sampaio – Benil Santos – Ivo Santos)
2. Choro Chorado pra Paulinho Nogueira (part. esp.: Paulinho Nogueira)
(Toquinho – Paulinho Nogueira – Vinicius de Moraes)
3. Separação (poema)
(Vinicius de Moraes)
4. As Razões do Coração
(Toquinho – Vinicius de Moraes)
5. Adeus
(Ismael Silva – Noel Rosa – Francisco Alves)
6. O Filho que Eu Quero Ter
(Toquinho – Vinicius de Moraes)
7. Pedro, Meu Filho (poema)
(Vinicius de Moraes)
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Ouça o LP na íntegra:
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Léo,
ResponderExcluirClaro que conheço muitas das canções desse disco, mas nunca o ouvi na íntegra. Acho que está na hora, né? :)
Engraçado, lendo seu texto eu entendi que tenho certa aversão a coisas (letras, versos) que falem assim tão abertamente sobre a morte. Freud deve explicar! rs
Mas tenho implicância, confesso. OK, são letras lindas, mas ainda fico com a alegria de "Chega de saudade". Agora, "O filho que eu quero ter" é realmente estupenda!
Um beijão,
Danny.
Danny, se você tem implicância, respeito, mas nem só de alegrias vive nosso cancioneiro. Não devemos fechar os olhos à dura realidade de tantas pessoas que, por um motivo ou por outro, sentem-se excluídas do convívio social. Tratar da morte é tão importante quanto tratar da vida. Não se esqueça de que "Construção", do Chico, toca exatamente no mesmo e dolorido tema.
ExcluirBeijos,
Léo.
É verdade. Coisa minha, um bloqueio, sei lá! :)
ExcluirAcho que depende de como o tema é tratado. A refletir!
Beijos,
Danny.
Desbloqueemo-nos, pois, Dannoca. Há os momentos pra assistirmos a leves comédias, mas há outros em que o riso fica do lado de fora da sala de exibição. Lembrei-me de certa ocasião em que fui ver no cinema o filme "Irreversível" (recomendo aos fortes). A meu lado se sentou uma moçoila munida de coca-cola e pipoca. Pouco antes de as luzes se acenderem, ela escapuliu, furtivamente. Quando olhei pro lado, vi a pipoca praticamente intacta. Ou seja, ela errara de sala. rs
ExcluirBeijos reflexivos,
Léo.