domingo, 6 de outubro de 2013

Grafite na Agulha: 4) Olho de Peixe – Lenine e Marcos Suzano – CD

Juca Novaes é daqueles caras que agarram no gol, defendem na zaga e ainda vão pro ataque. Quando o assunto é música, atua em várias frentes: é cantor, compositor, pianista e violonista; criador da Fampop (Feira Avareense de Música Popular – um dos melhores festivais do país na atualidade); membro do quarteto vocal Trovadores Urbanos; manteve durante muitos anos uma dupla com o parceiro Eduardo Santhana; e, de quebra, é advogado com especialização em direitos autorais. Entre outras coisas. Escrevi a respeito dele no Ninguém me Conhece, pra ler, basta clicar em, claro, Juca. Temos algumas afinidades: ambos somos sagitarianos, gostamos de escrever, de Fernando Pessoa... e de Lenine! Falando nisso, quando lhe pedi que escrevesse um texto tratando de algum disco que o havia marcado, contou-me que já havia escrito um em seu blogue (aqui) e me autorizou a utilizá-lo nesta coluna. Vamos a ele, pois: 


Olho de Peixe – Lenine e Marcos Suzano – CD

Por Juca Novaes

Já contei essa história em algum lugar. Tudo bem, conto de novo! 1989, pré-seleção do Festival de Avaré. Éramos cinco pessoas na minha casa, em SP, ouvindo as centenas de fitas cassete enviadas para o festival. Chegamos a um momento em que todos ficaram cansados, e nesse tipo de triagem as obras realmente diferenciadas escasseiam. Eis que, subitamente, numa despretensiosa fita surge o som de um violão sem paralelo, com suingue e originalidade, meio João Bosco, meio aquele Gil do Expresso 2222. Lépidos e atentos, todos pararam e ouviram a canção até o final, sem fôlego, só entremeados pelo silêncio respeitoso e pela indagação persistente: "quem é esse cara?" Naquele momento todos pensaram a mesma coisa: vai ganhar o festival! 

E ganhou mesmo. Dois meses depois daquela audição, daquele jeito, só de violão e voz, num ginásio com quase três mil pessoas. Era Oswaldo Lenine Pimentel, o Lenine, interpretando o imbatível Samba do Quilombo, letra e música dele, depois gravada pelo grupo Batacotô e por Gilberto Gil (a foto ao lado é da sua apresentação no festival).

Voltou à Fampop no ano seguinte, quando recebeu o terceiro lugar, com Virou Areia, música que ele só viria a gravar em 2006, no álbum In Cité. A mesma canção viria a ser registrada, depois do festival, nas vozes de Dionne Warwick e MPB4. Desde então, Avaré ficou indissociavelmente ligada à sua carreira.

Ficamos amigos. Em 1992, fui à sua casa, no Rio de Janeiro, e ele me mostrou algumas faixas, ainda inconclusas, do disco que estava gravando, chamando a atenção para a coragem do projeto: um disco só de pandeiro, violão e voz! Mas que pandeiro! E que violão! Era o embrião do Olho de Peixe, um dos meus discos de cabeceira, uma das obras de referência da década de 1990 na música popular brasileira.

A importância do disco é que ele transpira brasilidade por todos os poros, tanto no pandeiro de Marcos Suzano, como no suingue do violão de Lenine. E a brasilidade continua presente mesmo nas faixas com acento pop, como em Acredite ou Não, que abre o disco, parceria com o paraibano Bráulio Tavares: "Estranho/ bizarro/ tudo isso aconteceu/ inesperado /normal só tem você e eu", diz o refrão.

Lenine gosta de Caymmi, de Jobim, de Caetano. Mas também gosta de Lulu Santos e de Rolling Stones. Nesse sentido, é um filho dileto da Tropicália, da mistura, das diferenças, num balaio que, nas letras, também mistura ficção científica e histórias em quadrinhos. Isso tudo resultou num disco originalíssimo, em 11 faixas autorais, isoladamente ou em parceria.

Bráulio Tavares, também vencedor do Festival de Avaré (em 1990), é o principal parceiro, contribuindo, além de Acredite ou Não, com as ótimas Miragem do Porto (depois gravada por Elba Ramalho), O Que É Bonito (com os meus versos preferidos: "eu gosto é do inacabado/ o imperfeito, o estragado/ o que dançou/ eu quero mais erosão, menos granito/ namorar o zero e o não/ escrever tudo o que desprezo/ e desprezar tudo o que acredito/ eu não quero a gravação, não/ eu quero o grito"), a suingada Caribenha Nação e a ciranda Gandaia das Ondas. A emocionante Mais Além, também com acento pop, traz, além de Bráulio, a participação autoral de Ivan Santos e Lula Queiroga, este também o parceiro de Lenine em O Último Pôr do Sol.

Juca
No meio de tantas canções marcantes e bem-feitas, se destaca uma que, ao meu ver, é uma das raras que podem ser chamadas de "clássicas" na produção da música popular brasileira dos últimos 20 anos: Leão do Norte, faixa 9 do CD. A começar pela condução do violão de Lenine, originalíssima, e que se tornou uma influência, a partir daí, para as novas gerações de compositores e instrumentistas. Conheço dezenas de compositores jovens, na casa dos 20 anos, que têm essa forma de tocar como influência. E Leão do Norte não é só a condução do violão, mas o vigor musical, melódico, e a letra excelente de Paulo César Pinheiro, homenageando o Pernambuco natal de Lenine, com o conhecido refrão "Eu sou mameluco/ sou de casa forte/ sou de Pernambuco, eu sou o leão do Norte". Leão do Norte" é uma das minhas canções preferidas, um modelo de música bem-feita, e extraordinariamente bem executada, só com violão, percussão e voz, na gravação do disco.

Olho de Peixe representa a demonstração inequívoca do talento desse pernambucano com nome de líder bolchevique (seu pai era comunista), que influenciou fortemente a música popular brasileira contemporânea. Vinte anos depois, com sua carreira consolidada internacionalmente, ainda não me sai da cabeça a audição daquela fita, na Alameda Franca, 1188, apartamento 32, quando ouvi, pela primeira vez, a música de Lenine.

***

Olho de Peixe Lenine e Marcos Suzano (1994 Velas)

1. Acredite ou Não 
    (LenineBráulio Tavares)
2. O Último Pôr do Sol
    (LenineLula Queiroga)
3. Miragem do Porto 
    (LenineBráulio Tavares)
4. Olho de Peixe 
    (Lenine)
5. Escrúpulo 
    (Lenine Lula Queiroga)
6. O Que É Bonito? 
    (Lenine Bráulio Tavares)
7. Caribenha Nação / Tuaregue e Nagô 
    (LenineBráulio Tavares)
8. Lá e Lô 
    (Lenine)
9. Leão do Norte 
    (LeninePaulo César Pinheiro
10. A Gandaia das Ondas / Pedra e Areia
    (Lenine) / (LenineDudu Falcão)
11. Mais Além
    (Lenine Bráulio TavaresLula QueirogaIvan Santos)

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Ouça o CD na íntegra:
 










2 comentários:

  1. Eu estava neste ediçao da Fampop como concorrente. Já disse, e repito, foi a primeira vez que vi todos os participantes de um festival subirem ao palco para cantarem juntos com o concorrente ,a cançao vencedora. Foi como se todos os compositores tivessem sido premiado. E foram...Sem exceçao, público, músicos, organizaçao. Enfim...A cultura brasileira. Me orgulho de, pelo menos nessse dia, ter dividido o palco com este que considero um dos ultimos dos dinossauros da nossa MPB: Salve Lenine, viva o Olho de Peixe

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    1. Pô, Pedrão! Que depoimento bacana!

      Fico feliz por saber que a música ainda pode oferecer momentos como esse. E, sim, salve Lenine!

      Abração,
      Léo.

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