sábado, 29 de março de 2014

Grafite na Agulha: 23) O mundão sem porteira de Chico César

Nossa democracia (assim mesmo, com d minúsculo), apesar de praticamente balzaquiana, continua trazendo em si uma inconsequência juvenil. Talvez porque, após décadas sombrias, esteja ainda se fartando no desbunde da liberdade plena. Só que liberdade sem memória não passa de prisão maquiada. Vivemos uma época esquisita, em que os homens livres menosprezam nossos avanços e gritam pela volta da mordaça. Hoje estão na moda intelectuais de direita, filósofos de direita, humoristas de direita, compositores de direita(!). A hipocrisia permeia as relações, inclusive as musicais. O debate é ofensivo. Ao menor atrito, o interlocutor se parte em mil pedaços (quando não parte pra cima). Daí que o mais importante deixa de ser a obra e passam a ser as relações "diplomáticas". 

Alguns amigos me pedem que relaxe e deixe as polêmicas de lado. Eu entendo a preocupação, mas o fato é que não crio polêmicas, apenas me dou ao luxo de dizer o que penso. Sou 100% eu no que escrevo e no que componho. E acho que é assim que um artista tem que ser: entregue a sua arte. Criar é um ato político, nós, os artistas, guerreamos por meio de nossa arte, ela é nossa arma. Acabei de ler A balada de Bob Dylan, biografia escrita por Daniel Mary Epstein, e posso citar Dylan como exemplo, pois tem sido, ao longo de décadas, um artista inteiramente verdadeiro em sua arte. Certa vez, numa entrevista, afirmou: "Para mim, a música expressa ideias de liberdade ou é feita sob a opressão de uma ditadura." E mais: "Se um escritor tem algo a dizer, ele deveria dizer a qualquer custo."

Acredito, pois, que, se camuflamos (ou sufocamos) nossos pensamentos, estamos contribuindo pra desvalorização de nossa obra. É por isso que, neste emblemático março que ora agoniza, quando o Golpe (com G maiúsculo) "comemora" seu cinquentenário, meu "presente" a ele vem por meio de um texto em homenagem a Chico César, um de nossos mais combativos artistas. Chico é desses que não têm papas na língua, e, num cenário de hipócritas, já pagou caro por isso, como quando compôs a espetacular Odeio Rodeio (não à toa é parceiro e amigo de Zeca Baleiro, outro que não deixa barato os "rolexinhos"”). Se este, em vez de um Grafite na Agulha, fosse a celebração da entrega do Oscar, eu diria que Chico César levaria uma estatueta pelo conjunto de sua obra, pois chega a ser até difícil escolher um entre tantos maravilhosos discos com que nos vem presenteando desde o Aos Vivos.

Contudo, como não é, escolhi um que pode não ser seu melhor trabalho, mas tem um significado todo especial pra mim: Mama Mundi. Existem discos que são perfeitos, mas não temos muito o que falar deles; já outros nos tocam tão profundamente a alma, que acabamos ficando sem palavras pra dizer o quanto nos são importantes. Contudo, ainda que elas me fujam, vou pegá-las pelo rabo e trazê-las pra cá. Ou eu não seria um cara das palavras. Assim como também o é Chico. Aliás, eu diria mais: quem entra em contato com a obra de Chico César percebe que nada ali é por acaso; o moço é um poço (sem fundo) de fertilidade... e de sensualidade. Suas canções vão de outro Chico, o Buarque, a Roberto Carlos sem escalas; às vezes ambas referências se encontram numa mesma canção. Este sempre foi um dos detalhes que mais me chamaram a atenção em Mama Mundi

Chico tira do lugar-comum o significado da palavra eclético, pois, como tem obrigação apenas com seu trabalho, menospreza termos que limitem sua obra. Não vê o brega como pejorativo nem o chique como dignificante, simplesmente usa e abusa de um e de outro, mesclando-os, fundindo-os, até extrair dessa fusão suas pérolas. E é isso o que ocorre de cabo a rabo em Mama Mundi, que é, talvez, um de seus discos mais românticos. Quero dizer, talvez não, visto que Chico é um romântico, e em qualquer um de seus trabalhos o romantismo tem lugar: Templo, no Aos Vivos (se você olha pra mim/ se me dá atenção/ eu me derreto suave/ neve no vulcão); Isso, no Cuzcuz-Clã (isso que não ouso dizer o nome/ isso que dói quando você some/ isso que brilha quando você chega/ isso que não sossega); Onde Estará o Meu Amor, no Beleza Mano (como esta noite findará/ e o sol então rebrilhará/ estou pensando em você/ onde estará o meu amor)...

... Céu Negro, no Respeitem Meus Cabelos, Brancos (eu queria, eu faria/ amor com você/ até o gás acabar/ até morrer – pensando bem, acho que este é o disco mais romântico dele); Por que Você não Vem Morar Comigo?, no De Uns Tempos pra Cá (adoro o jeito que você me pega/ me chama de meu nego, minha nega/ e quando me abraça e eu me entrego/ vem você e diz "cuidado com esse apego"); Comer na Mão, no Francisco, Forró y Frevo (você vai comer na minha mão/ e só vai passar fome se quiser/ por que é que eu lhe ofereço o coração/ e você fica pegando no meu pé?)... entre tantas outras. Não disse que o moço merecia um Oscar (Grammy?) pelo conjunto da obra? E até agora não tratei do bendito do Mama Mundi. A ele, pois.

Certa vez vi um show de Chico César no qual ele contou a respeito da ocasião em que o maestro de Roberto Carlos lhe ligou e disse que o Rei estava querendo gravar algo dele, e lhe pediu que enviasse uma canção. Foi então que Chico compôs Pensar em Você, que tem todo o estilão de Roberto na linha melódica e uma letra romântica à la Chico (César). Roberto, contou Chico, acabou nunca a gravando, daí que o próprio autor a gravou. E, naquela noite, interpretou-a jocosamente imitando os trejeitos de RC. Esta canção, que está no Mama Mundi, foi uma das primeiras desse trabalho que ouvi no rádio (naquela época eu ainda ouvia rádio). Depois, comprei o disco e pude me comprazer com tantas outras canções do mais alto nível.

Minha preferida do disco é a existencialista Barco, que, além do espetacular arranjo, tem uma poesia que nada deve a Pessoa (Choro contigo, barco/ Nas ondas vagas incertas/ As nossas velas abertas/ São ferramentas do caos/ Chore comigo, barco/ A sina de todas as naus). Contudo, se esta é a obra-prima, todas as outras são, digamos, primas da obra, sem exceção. Apesar de ser um CD dançante, considero-o mais pensante do que pra pular. Há nele toda uma filosofia sertanejo-cosmopolita, de um menino da paraibana Catolé do Rocha que ganhou mundo; o grito da negritude pontuando o(s) canto(s) aqui e acolá; o já citado romantismo (há até a corajosa regravação da setentista Sou Rebelde); uma imensidão de ritmos, pois Chico se aproveita como poucos desse "mundão sem porteira"; sobretudo, há a digital, a assinatura (mesmo nas parcerias ou nas alheias), a originalidade, a inquietude, qualidades que fazem tão imprescindível a música desse mestre de quem temos o privilégio de ser contemporâneos.

César o que é de Francisco!

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Mama Mundi – Chico César (1999 – MZA Music)


1. 4h15 ou 10p/3 
    (Chico César)
2. Dança do Papangu / Imbalança 
    (Chico César – Zeca Baleiro) / (Luiz Gonzaga – Zé Dantas)
3. Tambor 
    (Chico César)
4. Pensar em Você 
    (Chico César)
5. A Força que Nunca Seca 
    (Chico César – Vanessa da Mata)
6. Nego Forro 
    (Chico César)
7. Talvez Você 
    (Vicente Barreto – Chico César)
8. Mama Mundi 
    (Chico César)
9. Barco 
    (Chico César)
10. Aquidauana 
    (Chico César)
11. Sou Rebelde (Soy Rebeld
    (M. Alejandro/versão: Paulo Coelho)
12. Dança 
    (Chico César)
13. Folclore 
    (Chico César)
14. Sonho de Curumim
    (Chico César)

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Ouça o CD na íntegra aqui:



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2 comentários:

  1. Quando comprei este disco, de tanto ouví-lo, ele se cansou do aparelho do meu carro. Às vezes enroscava, outras, com àquele ruído caracterisco que os discos fazem qdo saltam, o toca disco parecia me dizer que ja nao suportava tanto Chico Cesear, hehehe!!
    Barco, minha predileta, traz ,em seu tema, uma estória de contos sufis.

    Bravo,Léo, pelo texto.
    Abraçao

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    Respostas
    1. Hahaha! Também ouvi à exaustão, parceiro. Esse disco é daqueles que viciam. Sobre "Barco", é verdade. Inclusive, qualquer dia desses vou postar aqui um daqueles contos sufis do livro que você me presenteou.

      Abraços,
      Léo.

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