quarta-feira, 9 de abril de 2014

Crônicas Desclassificadas: 127) De mulheres e estupradores

Sem entrar no mérito do erro na pesquisa do Ipea, na qual 65% eram na verdade 26%, fiquei com vontade de escrever duas ou três (perdoem o eufemismo) palavrinhas a respeito do assunto. Qualquer cidadão que more no Brasil e tenha estado por aqui nos últimos dias não passou incólume a ele. TV, jornais, redes sociais, amigos, parentes, colegas de trabalho, enfim, todo mundo meteu sua colher nesse caldo. O mais incrível, contudo, foi que não notei muitos comentários dessa fatia da população (seja de 65% ou 26%) que culpa as mulheres pelo estupro. Ou melhor, talvez tenha encontrado, o caso é que tais pessoas, ao se manifestarem, precisam "pegar mais leve" em seus comentários, afinal, pra explicar o inexplicável, além de cara de pau, há que se ter criatividade.

Pois bem, não venho aqui me fazer de advogado do diabo, gostaria apenas de lançar nessa atmosfera virtual uns tantos raciocínios desconexos que têm menos a ambição de ser explicativos e mais a de constatar que numa sociedade tão complexa como a nossa tudo é mais ambíguo (não confundir com umbigo) do que possa crer nossa vã certeza. Algumas colegas, embora sejam (obviamente) contra os estupradores, admitem que há moçoilas que exageram no quesito vestuário. Aliás, exageram no direito de ser, digamos, minimalistas no uso de seu guarda-roupa. Segundo essas colegas, a intenção de tais muchachas é realmente "causar", valorizando seus atributos. Ou, na melhor das hipóteses, produzir inveja nas demais crias da costela de Adão que, mais recatadas, preferem não ser vistas apenas como objeto.

Eu, na condição de compositor e cronista amador, procuro, quando saio à rua, estar atento aos aspectos comportamentais dos cidadãos em geral (principalmente do indivíduo em particular). Afinal, somos todos frutos do meio, moldados pela sociedade de consumo. Em tal sociedade, tudo parece estar à venda, desde objetos a pessoas. Assim, a embalagem busca valorizar o "produto". Os marqueteiros explicam melhor que Freud: capas de revistas (livros, CDs...), manchetes e fotos de jornais, a caixinha colorida que guarda dentro de si um brinquedo, um bombom, uma lingerie... e, da mesma forma, a roupa com que alguém resolve sair de casa: o terno do político, o traje social do corretor, o uniforme dos alunos, o esporte fino do playboy, as sandálias havaianas do turista, a bermuda da periguete... tudo está de acordo com o que a sociedade espera desses indivíduos. 

É preciso me antecipar e dizer que não condeno em absoluto que garotas que mal atingiram a puberdade (ou, na outra extremidade da "cadeia alimentar", senhoras emancipadas que há muito saíram da menopausa) desfilem seminuas ante os olhos da marmanjada. Vivemos num país que nos dá a liberdade de ir e vir conforme nos convenha. Não é essa a questão. Diria mais, por mais que o homem finja indiferença e demonstre neutralidade, em seu íntimo cada um celebra um centímetro a mais de carne à mostra ou um decote generoso; fomos educados pra agir assim, como machos "predadores". A questão é justamente a pessoa não se dar conta de que está sendo usada por uma engrenagem maior e mais perversa. 

Não é só no caso do vestuário. Também percebo o mesmo ocorrendo com tatuagens, piercings, argolas e outros brinquedinhos que fazem a pessoa se sentir mais livre ao usar. Também não condeno. Minha crítica não é direcionada à pessoa que usa; meu alerta é em relação aos exageros que alguém comete em nome de uma suposta "atitude", sem pensar que o que ela considera atitude (e liberdade) pode ser, ao contrário, obediência ao status quo. Atitude que se evidencia no corpo sem antes passar pelo cérebro deixa de ser atitude. Afinal, se eu faço só porque todo mundo faz, não estou escolhendo fazer, estou sendo induzido a tal. E aí voltamos ao tema: seguindo esse raciocínio, as moças que saem às ruas em microtrajes se sentindo livres e abençoadas porque estão em forma e são saudáveis também, por sua vez, não percebem que estão sendo levadas a agir como objeto sexual.

Agora tratemos dos estupradores. Considero material muito rico de estudo o cérebro de fulanos assim. Não me refiro apenas aos estupradores, mas a todos os indivíduos que desenvolvem certas patologias. Quando adolescente, pensei mesmo em estudar psicologia, mas depois a vida foi me levando em outras direções. Mas voltemos: acredito que a maior diferença entre um estuprador e um cidadão comum é o passo que aquele dá em direção ao estupro. Deixando a hipocrisia de lado, a sociedade educou o homem pra ser um ser sexual ativo, dominador. Tanto que não são muito comuns casos de estupros cometidos por mulheres. Só que essa mesma sociedade, em contrapartida, pra garantir a segurança geral, inventou leis, religiões e punições que fazem o bicho que mora dentro do homem ficar por ali mesmo, escondidinho.

O estuprador é aquele fulano que vence os medos, é meio parecido com qualquer viciado que, mesmo conhecendo o mal que o vício lhe causa, entrega-se a ele. O diferencial é que o mal que o viciado comete é contra si mesmo, ao passo que o estuprador atenta contra a integridade de terceiros. E a questão do vestuário que comentei acima, aqui, não tem o menor valor. Porque, no caso desse fulano, pouco importa a roupa de seu alvo; tanto pode ser uma adolescente de microssaia ou uma respeitável mãe de família envolta em múltiplas vestes. O problema do estuprador é, na maioria das vezes, sua relação com a falta de autoestima, que vai aos poucos se transformando em insanidade. Quando atinge esse estágio, esse fulano culpa as pessoas a seu redor por suas próprias deficiências. 

Já o cidadão dito "normal" acabará resolvendo seu problema com a libido de N modos, podendo mesmo ter a coragem de flertar com sua pretendida e, muitas vezes, conquistá-la. E, caso isso não ocorra, não será o fim do mundo. Nada que um futebol, um sexo solitário ou um porre não resolva. Aliás, válvulas de escape não faltam: o cinema, a literatura, a poesia, a música... Ops, talvez eu esteja sendo um tanto elitista, mas quero com isso apenas dizer que uma sociedade com pouca cultura fabrica mais "vítimas" e "agressores". Exemplo: a música que induz ao sexo é responsável por aumentar o número de adolescentes grávidas. Resumindo: não podemos deixar que o politicamente correto mate a libido; devemos, sim, elevar a cultura de nossa sociedade. Termino com outro exemplo: Tom Jobim e Vinicius de Moraes, ao verem passar a famosa garota de Ipanema, canalizaram sua testosterona por meio de uma canção pela qual homenagearam a musa.

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