quarta-feira, 16 de abril de 2014

Eu Não Vi, Mas Me Contaram...: 4) Severino, nome de macho!

... na época eu tinha cerca de 18 anos e trabalhava como auxiliar de almoxarifado na matriz de uma grande empresa que possuía muitas filiais. Meu trabalho era, em suma, receber as requisições da minha e de outras unidades, separar os materiais pedidos (que iam desde caneta esferográfica até papel higiênico), empacotá-los, anotar no(s) pacote(s) o nome da unidade (e era muito importante não haver erro nesse item, ou o pedido de uma unidade acabaria indo parar em outra) e levá-lo(s) ao setor de Expedição, onde eram devidamente separados e empilhados, à espera de que um dos muitos motoristas da empresa viesse buscá-los pra posteriormente os entregar à unidade que fizera originalmente a requisição. Claro, quando se tratava da matriz, quem havia feito a requisição vinha pessoalmente buscar.

Era um ambiente bastante agradável. Tratava-se de um imenso galpão com várias prateleiras dispostas uniformemente onde eram guardados os materiais, sempre separados de acordo com seu tipo: material de escritório, produtos de higiene e limpeza, artigos de cozinha etc. E, como éramos todos homens – à exceção de uma supervisora e uma secretária –, costumávamos trabalhar sem camisa, pois o calor era grande ali. Assim, como o ambiente era propício a informalidades, a relação entre os funcionários do setor era das melhores. Costumávamos mesmo sair pra beber às sextas-feiras (quando éramos dispensados uma hora mais cedo) e não raro aos sábados alugávamos uma quadra e disputávamos acirradas partidas de futebol, geralmente contra os motoristas do setor de Transportes. 

Aliás, era com os motoristas que mantínhamos as mais estreitas relações de camaradagem, visto que a todo momento chegava por lá algum deles numa kombi vindo buscar os tais pacotes que mencionei acima. A maioria era formada por nordestinos bons de copo e de papo, e, obviamente, o assunto principal era futebol. Eu me dava bem com todos eles, mas tinha mais afinidade com Severino, um pernambucano fortão e bigodudo que tinha um aperto de mão esmagador, uma gargalhada estridente e, de quebra, era, como eu, torcedor do Palmeiras. Foi também Severino quem me iniciou na arte do jogo de palitinho e no consumo não moderado de bombeirinho. Eu costumava ansiar pelas sextas-feiras, que era quando saíamos pra beber e, às vezes, dávamos uma esticada até uns inferninhos.

Numa manhã chuvosa, Severino chegou acompanhado. Apresentou-nos a todos um motorista recém-contratado chamado Procópio, um sujeito bem peculiar, pois, apesar do corpo bombado de halterofilista, tinha modos bastante efeminados. Hoje é comum vermos homossexuais frequentando academias, mas naquele tempo eles costumavam ser, em geral, tipos franzinos. Até hoje não me esqueço de seu aperto de mão, que era exatamente o oposto do de Severino, pois o tal do Procópio não punha força nenhuma no aperto, como se tivesse nojo do contato físico. Chegava mesmo a retirar sua mão antes que a pudéssemos envolver no aperto. Contudo, reparei que tinha uma aliança na mão esquerda. Era um tipo de boa aparência, seu rosto me lembrava o de Stallone, e possuía penetrantes olhos verdes.

Aos poucos, Procópio foi caindo nas graças de todos, pois possuía um fino senso de humor e era dado a rir de si mesmo, principalmente das brincadeiras que todos faziam a respeito de sua sexualidade. Nessas horas, exagerava nos trejeitos e chegava até a beliscar as partes íntimas dos que o satirizavam, revertendo assim a brincadeira a seu favor. Tinha um sorriso de canto de boca que era um deboche só – daqueles que os meninos culpados dão a seus cúmplices – acompanhado de uma piscadela, e sempre tinha um segredo a revelar sobre quem quer que fosse. Acabou virando meio que o "repórter" da empresa. As noites de sexta ficaram mais agradáveis depois de sua chegada. Só escapulia quando via que a noitada ia acabar descambando em paquera. Dava uma desculpa qualquer e ia embora mais cedo, o que fazia aumentar os rumores sobre sua preferência sexual.

Foi numa festa de confraternização de fim de ano na empresa que tivemos uma surpresa. Sua esposa não era ficção, ela existia! E, mais que isso, era um pedaço de mulher! Loira, esbelta, alta (era mesmo alguns centímetros maior que Procópio), parecia uma modelo, e desfilava como uma. Os machos predadores do recinto, sem exceção, não conseguiam tirar os olhos dela. Sobretudo Severino, que chegava a salivar. Nem precisava falar nada, seus olhos diziam tudo o que ia em sua mente. Por falar em Severino, sua esposa também fora. Porém, ao contrário da do colega, era morena, baixinha, calada. Não chegava a ser feia, mas o recato com que se vestia não a beneficiava. Severino, ao apresentá-la na ocasião, disse que era crente e vivia no culto. Ah, esqueci de dizer: Procópio tinha uma filha pequena que parecia a boneca Barbie. Já Severino não tinha filhos. Ele não comentava, mas Procópio dizia que o colega era estéril.

E eis que, com o tempo, Procópio se relevou o maior come-quieto. Ninguém escapava de sua mira, faxineiras, cozinheiras, até algumas chefes de seção. Chegou mesmo a sair com a secretária de meu setor, que, coitada, caiu de quatro por ele. Procópio era um verdadeiro don Juan míope, pois não escolhia vítima. Ia até nas mais feiosinhas. Como ficamos bastante amigos, quando eu lhe perguntava a respeito, ele me dizia que estas eram as melhores, porque, como ninguém dava bola pra elas, possuíam um fogo acumulado que, na cama, ao menor contato, entrava em combustão. E, quando eu o recriminava por galinhar tendo uma bela mulher em casa, ele dava um daqueles famosos sorrisos de canto de boca acompanhado de uma piscadela e não dizia nada. Contudo, era extremamente discreto nas conquistas. Ninguém jamais o viu flertando em horário de expediente. Quando ele o fazia era um mistério.

Aos sábados, os motoristas se revezavam, pra que sempre houvesse um de plantão. Num desses plantões em que a escala era de Severino, Procópio aprontou das suas. Quem me contou foi o próprio, na segunda seguinte. Chamou-me de canto, como costumava fazer quando queria contar um "segredo", e me confidenciou que naquele dia, como soubesse que o colega não estaria em casa, disse à mulher que precisava levar o carro ao mecânico e ganhou a rua, indo parar na casa de Severino. Tocou a campainha e, quando a esposa do outro atendeu, deu uma desculpa qualquer e tentou entrar. Como esta, receosa, já lhe ia fechando a porta na cara, avançou até ela e rápida e ousadamente tomou-a entre os braços. Disse que fez e aconteceu, chegando mesmo a conhecer regiões nunca antes penetradas pelo marido daquela.

Procópio não durou muito no emprego. Arranjou outro que pagava melhor e sumiu no mundo. Nunca mais o vi. Ainda hoje de vez em quando me pego lembrando dele, de seus verdes e brilhantes olhos, o sorriso de canto de boca, a piscadela, o jeito efeminado e as tiradas mordazes. E fico pensando por onde andará e o que deverá estar aprontando. Pouco tempo depois, numa manhã qualquer, Severino apareceu feliz da vida. Quando o víamos assim já sabíamos que o motivo era alguma vitória do Palmeiras. Não foi este o caso naquele dia (naquela época o Verdão andava tão mal, que nós comemorávamos até empate). Envolveu-nos um a um com seu abraço apertado e, fazendo força pra que os olhos não marejassem (pois dizia que homem não chora), contou-nos que em breve ia ser pai. Se o filho nascesse homem, ia ter o nome dele: Severino, nome de macho!

***

O conto acima é livremente inspirado em fatos reais. Contudo, apesar de ser razoavelmente íntimo dos protagonistas na época, obviamente o fator principal ao redor do qual gira a história... ver eu não vi. No mais, faz tanto tempo, que verdade e ficção se embaralharam em minha lembrança. Afinal, quem conta um conto...


***

Nenhum comentário:

Postar um comentário