domingo, 13 de abril de 2014

Grafite na Agulha: 24) Na cova dos leões

Fiquei muito feliz quando recebi o texto abaixo de meu querido Antoniocarlos (que é como carinhosamente o chamo, já que todo mundo o chama mesmo é de Toninho), porque já era hora de o rock nacional "oitentista" aparecer por aqui. Claro, os puristas o condenam, pois dizem que depois dele a MPB nunca mais foi a mesma. Paciência, assim é a vida. Depois de cada grande movimento cultural que desponta por aqui, o País nunca mais volta a ser o mesmo; já foi assim quando dos grandes festivais, da Tropicália, do Clube da Esquina etc. etc. Creio que na verdade o que ocorreu foi que as gravadoras, que gastavam fortunas com os discos dos "medalhões", perceberam que podiam faturar mais gastando menos, ao investir nas bandas de rock, pois limitavam-se a quatro ou cinco músicos em estúdio.

Não vou entrar no mérito da questão, pois vivi intensamente o advento do rock nacional, visto que era um adolescente na época. Digo mais: ter curtido os poetas Renato Russo, Cazuza, Humberto Gessinger, entre outros, ajudou-me a adquirir um olhar mais atento à poesia das canções brasileiras, o que me preparou pra futuramente assimilar com mais facilidade Chico, Caetano & cia. A real é que jovem necessita ouvir música de jovem, ou seja, letras que tratem de sua realidade. Isso é um estágio que o prepara pra, anos depois, ouvir música de adulto. Em outra oportunidade escreverei mais a respeito, pois as bandas de rock, aliás, do brock, me ajudaram em minha formação, acompanharam meu crescimento. Os primeiros shows que vi eram de brock, e os primeiros porres que tomei foi ouvindo sua trilha sonora. Mas tudo a seu tempo. Por ora, deixem-me apresentar meu mano.

Conheci Antoniocarlos no então 2º grau, e a afinidade foi relâmpago. Além de ter sido ele quem me apresentou o monumental disco de Chico Buarque de 1971, que tem Construção, Cotidiano, Valsinha e outros tantos clássicos (escrevi sobre ambos aqui). E ele é também um dos poucos amigos de adolescência com quem continuei mantendo contato. É um desses caras iluminados, cujo grau de genteboíce já incentivou um ou outro perdido a cursar História na USP. Contudo, como ele próprio nunca havia até há pouco conseguido se tornar um universitário, fiquei contente ao saber que, graças ao Enem, pôde adentrar novamente uma sala de aula, e hoje está encarando um curso de Letras pela concorrida Unifesp. Sabedor de seu carisma e de sua perseverança, estou seguro de que em pouco tempo ele se tornará um excelente professor. Pra cima deles, Totó!

(Ah, minha preferida desse disco: Acrilic on Canvas)


Na cova dos leões
Por Antonio Carlos Barbosa Ribeiro

Eu gosto muito de Charles Mingus, (Haitian Fight Song), Monsueto, (A Fonte Secou), Paulo Vanzolini (Volta Por Cima), Ary Barroso (Na Baixa do Sapateiro), Banda Black Rio (Maria Fumaça), Wilson Simonal (País Tropical – de Jorge Ben), entre muitos outros artistas maravilhosos que estão por aí. Esta é minha pequena homenagem à Retrospectiva, uma brincadeira que eu e o Léo costumávamos fazer todo final de ano (ainda tentamos mantê-la, mas nem todo ano nossas "agendas" de homens casados nos permitem). Funcionava assim:

Escolhíamos as 20 melhores músicas dos LPs (depois, CDs) que havíamos comprado naquele ano e cada um de nós as punha pra tocar alternadamente na vitrola da casa do Léo (quer dizer, algumas vezes, quando a mãe dele – depois a esposa – interditava a casa, os encontros eram na minha. Houve uma vez, inclusive, que foi na casa de um amigo, e com direito a plateia). Bem, começou com 20 músicas, depois o número foi aumentando, e isso regado a muita cerveja. Às vezes brigávamos por uma música ou outra (cada um de nós queria tocar a 1ª colocada por último), daí que o que era para ser uma brincadeira se transformava num FlaFlu, ou melhor, Corinthians (eu) x Palmeiras (ele). Mas isso tudo já tem quase 30 anos (estamos ficando velhos, Léo!), começou no final da década de 1980. Resumindo, era (é) uma homenagem à música e, sobretudo, à arte.

Comecei falando da Retrospectiva pra tentar puxar pela memória um disco especial. Já é muito complicado fazer uma seleção de alguns bons discos (são tantos), imagina escolher um único que marcou sua vida. Bem, sendo assim, resolvi escolher um disco que foi e é muito importante para mim. Seu nome é simplesmente Dois, pelo fato de ser o segundo disco da banda brasiliense Legião Urbana, que tem letras fantásticas. Como, aliás, todos os outros dessa banda.

No início da década de 1980 ainda havia uma ameaça entre soviéticos (hoje russos) e americanos de uma possível guerra nuclear, e o mundo temia qual seria a primeira potência a apertar um botão que liberasse mísseis de destruição sem precedentes – vivíamos no final da Guerra Fria. E uma das canções desse disco expunha os medos e anseios de nós, jovens. "Então me abraça forte/ E diz mais uma vez que já estamos/ Distantes de tudo/ Temos nosso próprio tempo." Tempo Perdido, tocada no Ginásio do Ibirapuera com as luzes apagadas, enlouquecia o público (“não tenho medo do escuro, mas deixe as luzes acesas”). Essa música se aproximou do clima pesado e sombrio que Proust teceu em seu livro Em Busca do Tempo Perdido, no qual narrou as tragédias da 1ª Grande Guerra. Quase sem querer íamos percebendo o quão politizadas eram as letras da Legião.

Antoniocarlos
Quando se acerta um arpão em uma baleia, ela mergulha desesperadamente a fim de se salvar, mas no fundo do mar a pressão faz dilacerar ainda mais o ferimento provocado pelo arpão, e a baleia vem a óbito. Alguns povos inocentemente ofereceram seu ouro em prova de amizade, e o continente europeu, sedento pelo metal dourado, fincou sem piedade seu arpão no centro do continente americano. Uma das páginas mais sangrentas da história virou tema de uma das mais perfeitas letras já escritas em todos os tempos (em minha opinião): Índios  – "Quem me dera, ao menos uma vez,/ Que o mais simples fosse visto como o mais importante/ Mas nos deram espelhos/ E vimos um mundo doente."

No inverno de 1994, pra nos aquecermos e entrarmos no pique do grande show que estávamos prestes a ver, eu e o Léo tomávamos algumas cervejas Kaiser Bock numa padaria próxima ao Ginásio do Ibirapuera. Deu a hora, fechamos a conta, mas não sem antes pedir uma caipirinha dupla, que saímos pela rua bebendo num copo de plástico. Quando entramos no ginásio para assistir ao vivo a Legião Urbana, nossos corações estavam a mil. Lá dentro, enlouquecemos os seguranças, pois nossos assentos ficavam bem distantes do palco, e nós, tal qual Daniel, queríamos entrar na cova dos leões. Quando dei por mim, após alguns dribles, estava diante da banda de rock brasileiro que mais amei na vida. A meu lado, meu amigo Léo. Naquela noite, podíamos conquistar o mundo. E conquistamos.

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DoisLegião Urbana (1986 – EMI)

Lado A
1. Daniel na Cova dos Leões 
    (Renato Russo Renato Rocha)
2. Quase sem Querer 
    (Dado Villa-Lobos Renato RussoRenato Rocha)
3. Acrilic on Canvas 
    (Dado Villa-Lobos Renato Russo  Renato Rocha  Marcelo Bonfá)
4. Eduardo e Mônica
    (Renato Russo)
5. Central do Brasil
    (Renato Russo)
6. Tempo Perdido 
    (Renato Russo)
Lado B
1. Metrópole 
    (Renato Russo)
2. Plantas Embaixo do Aquário
    (Dado Villa-Lobos  Renato Russo  Renato Rocha  Marcelo Bonfá)
3. Música Urbana II
    (Renato Russo)
4. Andrea Doria
    (Dado Villa-Lobos  Renato Russo  Marcelo Bonfá)
5. Fábrica
    (Renato Russo)
6. Índios
    (Renato Russo)

Ouça o LP na íntegra aqui:


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