Meu FDP! anda recebendo vários comentários positivos, não só de pessoas que admiro e que são de minhas relações, como também de desconhecidos, o que tem me deixado muito feliz. Assim, independente de atingir ou não o coração da imprensa "oficial", continuarei dando voz a esses leitores em meu espacinho. Nesta segunda edição, contudo, me vi obrigado a escolher apenas um deles, por motivos que vocês entenderão. É que recebi na verdade uma baita crítica da querida Helena Tassara, que já esteve por estas bandas quando escreveu texto sobre Belchior pra coluna Grafite na Agulha (leia aqui).
Já a apresentei quando do supracitado texto, então, pra resumir, colo aqui um trecho de minha apresentação pra dizer que ela, entre tantas outras coisas, "é socióloga, cineasta, pesquisadora, doutora e pós-doutora em Ciências da Comunicação, anda há 30 anos envolvida em projetos culturais dos mais variados e [...] na atualidade está dirigindo o documentário de longa-metragem Vou tirar você desse lugar, baseado no livro Eu não sou cachorro, não – música popular cafona e ditadura militar, de Paulo César de Araújo (aquele da biografia de Roberto)". Por aqui calo minhas palavras pra deixá-los com as dela.
Depoimento sobre o Filho da preta!
Por Helena Tassara
Helena e o FDP! |
Li seu livro numa única sentada durante os feriados de fim de ano. E não o reli, assim como também não li nenhum comentário ou crítica a respeito. Foi de propósito, pra não me "contaminar". Comecei e terminei sem me dar conta ou fazer qualquer esforço, de um folego só, entre o silêncio da sombra, ao sol causticante do meio-dia, e o balançar da rede, na fresca da noite.
E essa é uma primeira e importante qualidade do seu texto: pega o leitor logo de cara. Mesmo não sendo uma história de suspense, fisga a atenção e desperta a curiosidade pelo que está por vir. Impossível largar no meio, impossível não querer saber o desfecho. Aliás, embora não existam pistas concretas sobre o que se delineia como uma tragédia anunciada, desde a primeira página, desde a primeira cena, é um desfecho pressentido, para o qual o leitor vai sendo preparado. Um horror que vai se desenhando na mesma medida do escurecimento das páginas – metáfora para o desvendamento paulatino da cor da pele do narrador? – o que ocorre no sentido inverso do clarear, desvendar da história.
A maneira como você estruturou a narrativa é perfeita nesse sentido. A personalidade socialmente doente do filho da preta e a vida sem opções, sem escolhas, sem redenção, vão sendo reveladas, de trás pra frente, do passado pro presente, e vice-versa, em idas e vindas, com a crueza e o fatalismo de um vômito azedo que sobe e volta. Causa um mal-estar que só não se torna insuportável para quem lê porque sua narrativa é controlada milimetricamente, intercalando momentos mais duros de encarar com situações de leveza prosaica (aparentemente) e até divertidas (muitas vezes sem vínculo com os rumos da história), conduzindo o leitor ao desfecho – que, para mim, foi terrível – com alguma "vaselina".
A sua opção foi trabalhar um tipo de narrativa confessional, testemunhal (na forma e no conteúdo) - à la Grande Sertão: Veredas – o que você realiza muitíssimo bem. Um único personagem é o protagonista, que também é o narrador. Vamos "ouvindo" seu testemunho enquanto ele segue falando por associação de ideias, conforme elas surgem no turbilhão do pensamento. Não há premeditação perceptível, a não ser nos expedientes de autoengano que ele usa pra embranquecer a pele, ou melhor, pra construir a imagem que ele quer ter de si mesmo, da cor da pele que ele quer ter.
Também não sabemos para quem ele está contando aquilo tudo, não há interlocutor visível, nem diálogo aberto. Esperamos o tempo todo que, ao fim e ao cabo, aquele alguém que o escuta venha interromper a sequência das barbaridades que compõem a sua história de vida... Ao leitor, em sua passividade, também não cabe fazer perguntas, apenas escutar. A impotência de reagir acaba criando uma relação forçada de cumplicidade com aquele homem capaz de cometer tantas atrocidades com um nível de culpa zero. Ele nos apresenta uma realidade dura de encarar, difícil de engolir, muito presente no mundo em que vivemos e que causa medo e horror. Aliás, lembro-me de que nas útimas páginas, já pretas, há uma transformação radical na forma e no conteúdo da escrita... muito bom!
Com relação ao tema da questão racial e do desejo/necessidade de "branquear" socialmente a pele, em muitos momentos me lembrei do romance A marca humana, de Philp Roth (certamente um dos mais extraordinários romances da contemporaneidade). E me surpreendi comigo mesma, ao ler seu livro, por nunca ter feito uma reflexão comparativa entre a realidade brasileira e a norte-americana sob esse ponto de vista. Achei muito relevante e importante a perspectiva que a leitura do seu livro me colocou nesse sentido.
Porém, apesar de todas as qualidades do seu texto, o tempo todo, durante a leitura, eu senti um incômodo forte cuja origem demorei pra identificar. No princípio, achei que fosse pela temática, que é indigesta em si. Mas, obviamente, concluí que isso não seria suficiente. Depois, pensei que eram as repetições e os trejeitos da fala do filho da preta que me aborreciam. Confesso que, em alguns momentos, me senti compelida a pular frases repetitivas e maneirismos da linguagem oral do filho da preta (me desculpe, mas não me lembro do nome dele...) e que sofri pra ler e entender o sentido de frases com "erros" de concordância. Por vezes, fui forçada a ler trechos em voz alta (os nomes dos gringos argentinos, por exemplo). Mas não podia acreditar que esse fosse o motivo do meu incômodo, porque são elementos fundamentais para as suas escolhas narrativas, que são indissociáveis da história e da caracterização do seu protagonista e dos outros seres com quem ele contracena.
Por fim, depois de muito matutar, sonhei (de fato) uma resposta e descobri que o que me perturbava era apenas perceber o esforço contido na sua escrita. Talvez nem você tenha se dado conta disso e pode ser que eu esteja completamente equivocada, mas... considerando que você é um profissional obcecado pela escrita perfeita, sem erros, sem falhas (pelo menos essa é a imagem que eu tenho de você!), imaginei o esforço de dimensões oceânicas que você teve que fazer pra escrever as falas com os erros cometidos por seu personagem, uma fala-escrita que é a antítese da sua. Verdadeira contradição.
E acho que esse esforço resultou numa escrita antinatural que ficou visível pra mim; ou melhor, que foi sensível pra mim. Eu achei que você não estava confortável nela, que estava se forçando o tempo todo, buscando separar o seu personagem de você mesmo. E me lembrei de Ray Bradbury, que dizia algo mais ou menos como: o escritor não deve deixar transparecer o seu esforço; o bom texto tem que sair da cabeça pro papel num processo de relaxamento do pensamento. Claro que não se trata apenas de ter uma inspiração e pronto. É claro que é preciso haver esforço, construção, trabalho investido. Mas ele diz que o melhor texto que um escritor pode escrever é aquele que sai quando ele está relaxado frente a frente com a máquina que usa pra escrever. E foi assim que os três mandamentos do mestre me vieram em sonho: TRABALHO. RELAXAMENTO. NÃO PENSE!
Enfim, vou parando por aqui. Era isso o que eu andei pensando sobre o seu livro. Ainda poderia escrever um monte, mas acabou meu fôlego... Não é nada, aliás, que diminua os méritos – que são muitos – dele, que é apenas o primeiro publicado de vários. Tenho certeza.
***
E essa é uma primeira e importante qualidade do seu texto: pega o leitor logo de cara. Mesmo não sendo uma história de suspense, fisga a atenção e desperta a curiosidade pelo que está por vir. Impossível largar no meio, impossível não querer saber o desfecho. Aliás, embora não existam pistas concretas sobre o que se delineia como uma tragédia anunciada, desde a primeira página, desde a primeira cena, é um desfecho pressentido, para o qual o leitor vai sendo preparado. Um horror que vai se desenhando na mesma medida do escurecimento das páginas – metáfora para o desvendamento paulatino da cor da pele do narrador? – o que ocorre no sentido inverso do clarear, desvendar da história.
A maneira como você estruturou a narrativa é perfeita nesse sentido. A personalidade socialmente doente do filho da preta e a vida sem opções, sem escolhas, sem redenção, vão sendo reveladas, de trás pra frente, do passado pro presente, e vice-versa, em idas e vindas, com a crueza e o fatalismo de um vômito azedo que sobe e volta. Causa um mal-estar que só não se torna insuportável para quem lê porque sua narrativa é controlada milimetricamente, intercalando momentos mais duros de encarar com situações de leveza prosaica (aparentemente) e até divertidas (muitas vezes sem vínculo com os rumos da história), conduzindo o leitor ao desfecho – que, para mim, foi terrível – com alguma "vaselina".
A sua opção foi trabalhar um tipo de narrativa confessional, testemunhal (na forma e no conteúdo) - à la Grande Sertão: Veredas – o que você realiza muitíssimo bem. Um único personagem é o protagonista, que também é o narrador. Vamos "ouvindo" seu testemunho enquanto ele segue falando por associação de ideias, conforme elas surgem no turbilhão do pensamento. Não há premeditação perceptível, a não ser nos expedientes de autoengano que ele usa pra embranquecer a pele, ou melhor, pra construir a imagem que ele quer ter de si mesmo, da cor da pele que ele quer ter.
Também não sabemos para quem ele está contando aquilo tudo, não há interlocutor visível, nem diálogo aberto. Esperamos o tempo todo que, ao fim e ao cabo, aquele alguém que o escuta venha interromper a sequência das barbaridades que compõem a sua história de vida... Ao leitor, em sua passividade, também não cabe fazer perguntas, apenas escutar. A impotência de reagir acaba criando uma relação forçada de cumplicidade com aquele homem capaz de cometer tantas atrocidades com um nível de culpa zero. Ele nos apresenta uma realidade dura de encarar, difícil de engolir, muito presente no mundo em que vivemos e que causa medo e horror. Aliás, lembro-me de que nas útimas páginas, já pretas, há uma transformação radical na forma e no conteúdo da escrita... muito bom!
Com relação ao tema da questão racial e do desejo/necessidade de "branquear" socialmente a pele, em muitos momentos me lembrei do romance A marca humana, de Philp Roth (certamente um dos mais extraordinários romances da contemporaneidade). E me surpreendi comigo mesma, ao ler seu livro, por nunca ter feito uma reflexão comparativa entre a realidade brasileira e a norte-americana sob esse ponto de vista. Achei muito relevante e importante a perspectiva que a leitura do seu livro me colocou nesse sentido.
Porém, apesar de todas as qualidades do seu texto, o tempo todo, durante a leitura, eu senti um incômodo forte cuja origem demorei pra identificar. No princípio, achei que fosse pela temática, que é indigesta em si. Mas, obviamente, concluí que isso não seria suficiente. Depois, pensei que eram as repetições e os trejeitos da fala do filho da preta que me aborreciam. Confesso que, em alguns momentos, me senti compelida a pular frases repetitivas e maneirismos da linguagem oral do filho da preta (me desculpe, mas não me lembro do nome dele...) e que sofri pra ler e entender o sentido de frases com "erros" de concordância. Por vezes, fui forçada a ler trechos em voz alta (os nomes dos gringos argentinos, por exemplo). Mas não podia acreditar que esse fosse o motivo do meu incômodo, porque são elementos fundamentais para as suas escolhas narrativas, que são indissociáveis da história e da caracterização do seu protagonista e dos outros seres com quem ele contracena.
Por fim, depois de muito matutar, sonhei (de fato) uma resposta e descobri que o que me perturbava era apenas perceber o esforço contido na sua escrita. Talvez nem você tenha se dado conta disso e pode ser que eu esteja completamente equivocada, mas... considerando que você é um profissional obcecado pela escrita perfeita, sem erros, sem falhas (pelo menos essa é a imagem que eu tenho de você!), imaginei o esforço de dimensões oceânicas que você teve que fazer pra escrever as falas com os erros cometidos por seu personagem, uma fala-escrita que é a antítese da sua. Verdadeira contradição.
E acho que esse esforço resultou numa escrita antinatural que ficou visível pra mim; ou melhor, que foi sensível pra mim. Eu achei que você não estava confortável nela, que estava se forçando o tempo todo, buscando separar o seu personagem de você mesmo. E me lembrei de Ray Bradbury, que dizia algo mais ou menos como: o escritor não deve deixar transparecer o seu esforço; o bom texto tem que sair da cabeça pro papel num processo de relaxamento do pensamento. Claro que não se trata apenas de ter uma inspiração e pronto. É claro que é preciso haver esforço, construção, trabalho investido. Mas ele diz que o melhor texto que um escritor pode escrever é aquele que sai quando ele está relaxado frente a frente com a máquina que usa pra escrever. E foi assim que os três mandamentos do mestre me vieram em sonho: TRABALHO. RELAXAMENTO. NÃO PENSE!
Enfim, vou parando por aqui. Era isso o que eu andei pensando sobre o seu livro. Ainda poderia escrever um monte, mas acabou meu fôlego... Não é nada, aliás, que diminua os méritos – que são muitos – dele, que é apenas o primeiro publicado de vários. Tenho certeza.
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PS1: O depoimento acima foi fruto de uma troca de e-mails; portanto, permito-me também publicar, abaixo, um fragmento do que escrevi pra Helena em resposta à questão espinhosa com a qual ela se deparou no livro:
Bem, sobre o incômodo, não sou capaz de identificar o seu, mas queria apenas dizer que você se equivocou em relação à origem dele. Eu posso te revelar abertamente que, durante todo o processo da escrita, me diverti bastante. Pra mim não foi sacrifício nenhum escrever pela boca do Isidoro, e vou te dizer por quê: o personagem é uma colagem de pessoas com que me deparei ao longo de minha vida. Inclusive, roubei alguns cacoetes dele de um cara com quem trabalhei há mais de 20 anos. Veja você como a dicção do fulano era forte; mesmo tanto tempo depois, não pude esquecê-la. Claro, comecei a escrever o livro em 2004, então a memória sobre ele estava mais fresca. Na verdade, me senti como que psicografando, ou ainda como alguém que digitasse uma conversa que ouviu num bar. No começo, o personagem estava em minhas mãos; porém, quanto mais as páginas iam avançando, mais ele ia pondo as garras de fora. Tanto, que, quando acabei o livro e me pus a revisá-lo, tive que reescrevê-lo por inteiro, pois o cara que havia começado a contar a história não era o mesmo que a terminou.
No mais, além de minhas origens nordestinas, sempre morei na periferia, e lá travei contato com as figuras mais kafkianas que você possa imaginar. Assim, posso dizer que sou um apaixonado por sotaques, pelas diferenças de musicalidade que a palavra falada pode adquirir, numa mesma língua, em regiões diferentes. E o fato de ser letrista me ajudou nisso, pois sempre componho pensando em quem vai cantar. E sempre tive em mente essa ideia de fazer uma literatura mais, digamos, oral, que não é muito explorada em nosso país. Gosto muito de Saramago, e ele certa vez disse que seus livros eram pra ser lidos em voz alta, por isso ele aboliu os sinais de pontuação. Tive isso em mente ao escrever meu FDP!. Também me utilizei de algo que Nelson Rodrigues dizia: escrevendo, exorcizamos nossos monstros, assim, dando-lhes vida literária, não precisamos agir como eles. Posso dizer que fui fundo em meu íntimo, explorando um possível Mr. Hyde que existiria em mim pra compor esse personagem, que é uma espécie de negativo meu. Não à toa enfatizei sua data de aniversário – 1º de dezembro, a mesma do meu. E a escolha da primeira pessoa me fez não julgá-lo; simplesmente lhe dei carta branca pra expor sua visão de mundo, tacanha, como disse o Baleiro, mas complexa.
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PS2: Você tem três opções pra adquirir o livro: 1) entrando em contato comigo; 2) pelo site da Reformatório (aqui); ou 3) na Livraria Cultura (aqui).
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Oi Léo.
ResponderExcluirJá lhe escrevi minhas impressões sobre o livro. É aquilo.
Por hoje, achei legal ler esse sopro de sua relação com sua obra e um pouquinho do processo e desenvolvimento da vida do livro. Não tinha visto, ou ouvido você se referir a ele, ainda. Curti.
É. Pra mim é assim. Logo que a criação é identificada como inteira (ou nem tanto), a ponto de ser exposta, pelo seu criador, ela ganha vida própria. E sai por aí, conversando das mais diversas formas com as pessoas que se deparam com ela. Aliás, essa é a parte mais divertida da brincadeira...ou não...não sei.
Pra vc sucesso, sempre.
Beijo
PS: Acho engraçado com que frequência teus textos são postados às:...vou chamar de parzinho. Este às 12:12
Ahá! Descobriu meu segredo! Eita menina mais atenta! rsrs
ExcluirSobre o processo de criação, qualquer dia desses falamos ao vivo, pois não posso dizer muito por aqui senão acabaria revelando mais do livro, e sempre aparece gente que não o leu ainda...
Beijos,
Léo.
Sim, sim...concordo. Nada de revelações...ou melhor, muitas revelações, do tipo, olho no livro, livro na cabeça, cabeça n...sei lá. Daí cada um que tenha sua cabeça que coloque onde quiser.
Excluirrsrsrsrs....
Beijo
É isso aí! Fechado! Seja lá o que isso signifique. rs
ExcluirBeijos,
Léo.
kkkkkkkkkkkkkkkkkk
Excluirtraduzindo:
Que o livro seja revelado por quem o leia, e o leitor que o interprete de acordo com suas experiências.
Deus vai me salvar! Eu acredito, ainda!
bj
Ah, bããão... rs
ExcluirÉ, queridona, tem que ter fé. Como diria mestre Gil, ca fé não costuma faiá. rs
Beijos,
Léo.