sexta-feira, 20 de março de 2015

Crônicas Desclassificadas: 159) A eletrizante história de Lúcio, o eletrófilo


Era uma vez um casal, cujos nomes não vem ao caso revelar, até pra mantermos seu direito à privacidade. O que importa nesta história é que há muito tempo, numa noite em que o céu parecia estar cheio de eletricidade, despachando fortes relâmpagos, raios, trovões e outros aparentados, nossos pombinhos se encontravam num motel chamado Alta Voltagem, onde liberavam seus fluidos, davam vazão à química que rolava entre eles, aquela atração que faz dois corpos ocuparem o mesmo lugar num mesmo instante. Claro, este é um modo poético de dizer, afinal o local não era sempre o mesmo, dado o ato sexual ser algo que costuma ocorrer em movimento. Pra resumir, foi nessa noite que conceberam um menino que nove meses depois rebentaria e seria chamado de Lúcio.

É possível que sua triste sina tenha sido ocasionada pela escolha de seu nome, visto que Lúcio vem do latim Lucius, que por sua vez deriva de raiz que originou a palavra lux, que significa luz. Portanto, Lúcio, ao pé de suas cinco letras, significa "o luminoso". Hoje podemos chegar a tais conclusões, mas elas podem não passar de meras suposições ou mesmo temerárias coincidências. O fato é que Deus disse "fiat lux" e o apaixonado casal fez Lúcio. Que, com o passar dos anos, faria das suas. No princípio... não, não era o verbo. Aliás, nessa época Lúcio nem mesmo havia aprendido a falar. Apenas engatinhava, mas, desde que começou a se deslocar, demonstrou ser um garoto curioso. Com uma queda particular por tomadas. Seus pais tinham que permanecer atentos pra que o menino não ficasse, digamos, chocado.

Lúcio crescia saudável e elétrico, mas não deixava de lado essa preferência. Carrinho, bola, bicicleta, papagaio, skate, patins, bolinha de gude, abafa, amarelinha, pega-pega, esconde-esconde, figurinhas, gibis, livros ilustrados etc. etc., nada disso parecia cativar sua atenção. Seus pais até, num ato de desespero, tentaram fazê-lo brincar de boneca! Tudo em vão. Seu negócio era outro: gostava mesmo era de dar uma plugadinha. De tanto meter o dedo – aliás, dois – em tomadas, essa propensão foi aumentando, e ele passou a se utilizar de chaves de fenda pra saber o que havia do outro lado. Daí, de tanto pegar em fio desencapado, após não poucos choques, a situação foi ficando séria. Lúcio deu mesmo pra desmontar rádio, toca-discos, TV, quando não era pego brincando de trenzinho com pilhas.

Pré-adolescente, descobriu os videogames, pouco mais tarde os computadores; mas ele queria mesmo era fuçar, saber como funcionavam, desmontar e montar, trocar peças de lugar, construir outras engenhocas a partir dos originais. Nada escapava a sua curiosidade: geladeira, fogão, máquina de lavar...  Lúcio, à medida que ia crescendo, mostrava-se um rapaz que não carecia de amizades, nem mesmo se interessava por meninas... No entanto, vivia até aparentemente feliz naquele seu mundinho eletroeletrônico. Nem mesmo era tímido, não mostrava sinais de depressão, na escola ia bem, sobretudo em exatas, só que seu comportamento não era o de um adolescente comum. Quando a situação ficou insustentável, após a perda de muitos aparelhos domésticos, resolveram levá-lo a um médico.

O diagnóstico foi fatal! Lúcio, aquele inocente garoto a quem não fazia muito tempo sua mãe amamentara, era na verdade um eletrófilo. O médico foi enfático. Sem titubear, e até com pouco jogo de cintura, sentenciou: "Pais, após alguns exames, incluído o eletroencefalograma, detectamos que seu filho tem um distúrbio no cérebro; identificamos nele uma perversão que o leva a se sentir sexualmente atraído por eletricidade em geral. Chamamos a tal distúrbio eletrofilia, que é a capacidade que um indivíduo desenvolve de atacar os compostos à procura de elétrons. Nesses casos, o acometido só quando em contato com a vítima chega a sentir eletrofilicidade. E não adianta internar nem tratamento a base de choques, pois ele pode piorar. Recomendo, em princípio, terapia. Caso não surta efeito, só lhes resta pedir o corte de luz residencial."

Durante os primeiros meses de terapia, Lúcio demonstrou certa melhora. A terapeuta instigou-o a mudar sua opção sexual e trocar suas aventuras eletroeletrônicas por outras mais, digamos, ígneas, tentar relacionamentos com fósforos, velas e outras substâncias inflamáveis. Lúcio sentiu-se tentado a experimentar, afinal, apesar de sua vasta experiência no campo da eletricidade, era ainda virgem de combustão. Contudo, o que parecia ser uma evolução por pouco não acabou em tragédia. Enquanto Lúcio, ainda que desajeitadamente, iniciava sua relação com o fogo de forma onanista com velas, tudo ia bem, mas a chapa começou a esquentar quando, após algumas queimaduras, seu grau de tesão foi aumentando até chegar a ter relacionamentos sérios com bombas caseiras. A sorte foi que os bombeiros chegaram quando o incêndio ainda não havia se alastrado.

Frustrado, com traumas na alma e algumas marcas de segundo grau no corpo, voltou ao primeiro amor. Agora já maior de idade e responsável por seus atos, conseguiu emprego de eletricista numa obra e resolveu morar só. Precisava de seu espaço, e os pais eram um tanto inconvenientes, gostavam de ficar à espreita em seus momentos de intimidade. Deu um basta nisso. Houve chororô, mas no fundo eles ficaram aliviados com essa decisão do filho. O problema foi que, logo no primeiro emprego, Lúcio exagerou, e suas saliências findaram por causar um curto-circuito que destruiu um andar quase  inteiro. Por sorte, como era sábado e havia apenas um pedreiro e um encanador no local, não houve mortos, apenas três feridos. Réu primário, respondeu processo em liberdade.

O Brasil se tornava pequeno demais pra ele, que, via México, entrou ilegalmente nos EUA, onde em pouco tempo se transformou num profissional dos mais requisitados. Bem-relacionado, conseguiu a anistia e foi com os olhos faiscantes que recebeu o green card. Chegou a trabalhar na Apple, e tudo indicava que teria uma carreira de sucesso ali, mas a coisa degringolou quando fez amizade com uns rapazes de uma organização fundamentalista islâmica que o convenceram a ajudá-los em alguns atentados. Perseguido pelo FBI, foi preso em Nebraska, onde acabou sendo um dos últimos condenados a morrer na cadeira elétrica. Embora as relações entre Brasil e EUA fossem boas, o perdão não foi concedido. Uma foto sua na hora fatal vazou pela internet e, após muitos compartilhamentos, chegou à casa paterna. Coração de mãe não se engana: ela foi a única a perceber que ele morreu sorrindo.

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