terça-feira, 23 de agosto de 2016

A Palavra É: 19) Gol

Parecia que seriam favas contadas. Começo do primeiro tempo, gol de falta (e de placa!) de Neymar, o time jogando bem, confiante, por um momento deu até a impressão de que o placar podia ser elástico. Não um 7 a 1, obviamente, mas um 3 a 0 não era de todo impossível naquele momento. Sonhar é permitido (pelo menos até agora, enquanto não privatizam). Corta! Começo do segundo tempo, gol da Alemanha – putz!!! Tensão, autoestima descendo dentro de um elevador desgovernado ao mesmo tempo que esquecidos traumas vinham à tona: complexo de vira-lata, crise, golpe, desemprego, falta de expectativa, nervos à flor murcha da epiderme, nós baratas tontas embaixo da pata de um paquiderme...

Corta! Prorrogação. Ooooooohhhh, nããããão! Tudo teria sido em vão? Achou pouco, que tal... Corta! Que tal pênaltis? Aí, meu chegado, nobody aguenta! Até que o goleiro de nome engraçado (Weverton) pega uma cobrança e, pra acabar com a conversa, ele de novo, Neymar, marca. Ouro inédito da Seleção Brasileira em olimpíadas. Soltar aquele "ufa!" preso na garganta foi inevitável. Até choveu! Cântaros, pra dar uma enchiquecida na crônica. E, ah, é bom que se diga: do mesmo modo que o pobre (pobre?) do Mick Jagger foi chamado de pé-frio, que fique registrado que minha amiga Vanessa Curci é pé-quentaço! Estava eu assistindo a tudo embasbacado no bar onde Kana faria show minutos depois quando, cinco segundos antes de Weverton pegar o pênalti, ela entra, semiensopada. Na sequência, Neymar encaçapa. A noite tava ganha!

Afirmar que o brasileiro, ao longo dos séculos, tem sido um povo sofrido é recorrer ao lugar-comum? É. E afirmar que o brasileiro é um povo alegre e festivo também é? Também. Contudo, essas duas afirmações nos ajudam a entender por que, entre tantos jogos esportivos (olímpicos ou não), o brasileiro foi se encantar tanto com o futebol, e a ponto de o Brasil ser chamado de País do Futebol. Explico: vejamos o basquete. É um tal de cesta pra lá, cesta pra cá, que no final das contas, quando o jogo acaba, o excesso meio que brocha a gente. Da mesma forma, o vôlei, o tênis, o rúgbi etc. e tal. Não tem zero no placar. Só que, quando é demais, como diz o ditado, até o santo desconfia. Acaba o jogo e a gente chega a nem ter direito uma imagem que nos fique tatuada na memória com agulha infectada.

Agora, pensemos no futebol. Até um jogo dos mais feinhos, retrancados, sonolentos, nos causa uma emoção orgástica quando já nos acréscimos um zagueiro perna de pau erra o chute e de canela desvia a bola do goleiro, mandando a gorduchinha surrada pro fundo das redes. Aquele gol, naquele momento, vale trocentas cestas do basquete. No dia seguinte, a foto tá lá na primeira página do jornal, enchendo de orgulho o torcedor do time vitorioso que madrugou pra ir trampar numa segunda-feira cinzenta e fria que fica até bonita, colorida e quente só por causa do golzinho mixuruca do zagueiro. Ah, sem falar na ressaca "olímpica" do torcedor do time adversário, que já tava nervoso com o empate e teve que dormir de cabeça quente por causa dele, o gol. Reflita!

Não vou dizer que isso é freudiano, porque Freud não entendia nada de futebol (pelo menos é o que imagino eu, que não entendo nada de Freud); isso tá mais pra rodrigueano – de Nelson Rodrigues, se não me entenderam, nosso controverso Shakespeare, maravilhoso reacionário e fluminense roxo. Diria mais: se o futebol não existisse, Nelson Rodrigues o teria inventado, só pra morrer de rir depois da cara dos otários apaixonados. Pensando bem, Fernando Pessoa também poderia tê-lo feito, mas sem patenteá-lo. Não é de rir (ou chorar) um esporte que pode ser decidido nos pênaltis e que leve um time a ser campeão porque um jogador do outro time chutou pra fora? Quem não se lembra do italiano Baggio?

É, amigos, pra nós, brasileiros, menos é mais. É como um sexo bem-feito que leva horas até chegar a um maravilhoso empate de 1 a 1 entre os dois times. Bem melhor, diga-se, do que um 2 ou 3 a 0 dos machos coelhinhos que acham que são bons porque deram uma, deram duas, deram três, mas se esquecem de que, nesse caso, o placar elástico é a prova dos nove da derrota do vencedor. Não, senhores, nada de basquetear o amor! Deixemos isso lá com os gringos, que são recatados enrustidos, vítimas de uma criação castradora e hipócrita. Nós somos diferentes, somos os livres e luxuriosos filhos da dor. E é por isso que nossa alegria também é assim, exagerada. Sofremos tanto, que elegemos três dias por ano pra nos autoaplicar uma overdose de felicidade que pode ser levada às últimas consequências.

Tanto pode ser um prazer letal, o gol fatal que nos abrirá as portas da eternidade, quanto uma derrota vexatória e cabal que encherá de cinzas nossa quarta-feira. Tudo ou nada! Nossa alegria é melancólica, pusemos samba no tango, pusemos band-aid no calcanhar (de aquiles) do bolero. Somos os minimalistas do exagero. Por isso, elevamos meninos, pobres meninos, à condição de heróis. Pelés, Manés, Romários, Ronaldos, Neymares... Crianças que só sabem chutar uma bola e de repente, do dia pra noite, recebem a incumbência de vestir uma camisa tão pesada que mais parece uma armadura... E, pior, levamos a sério as abobrinhas que vomitam! Eles, que sem a bola nos pés mal sabem o que fazer. Não, caros, a César o que é de César e a Neymar o que é de Neymar! Deixem que engulam quem quiserem desde que resolvam dentro das quatro linhas! O resto é bola na trave.

Mas o gol é tão especial, que é a única palavra que a língua portuguesa incorporou que termina em "ol" e tem som de "ôl". Pensaram nisso? Tudo o mais são o peixe no anzol, a cesta de basquetebol, a pipa com cerol, um tambor que chamam de dol, a gasolina e o etanol, a escuridão e o farol, um cabelo da cor do girassol, o hol (que também atende por hall), o alcatrão de onde sai o indol, o jota (que não dá rima nem fodendo!), o que se esconde sob o lençol, aquele velho imperador mongol, os vegetais que produzem o oleol, os que lutam em prol, o carvalho e o quercitol (que eu achei no dicionário de rimas), o canto do rouxinol, as nuvens que encobrem o sol, os olhos com terçol, as utilidades do urinol, a rede do voleibol, o chileno e o xilol... e os zés que exigem de manés calcanhares de Sócrates.

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PS1: Escolhi a palavra de novo, mas foi um gol de letras.

PS2: Trilha sonora: Moacyr Franco, Balada Nº 7 (Alberto Luiz)



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