segunda-feira, 24 de julho de 2017

Crônicas Desclassificadas: 187) Confissões de um homem preso fora do artista

Adoro crônicas, e, de tanto gostar delas, acabei me tornando também um cronista, embora menor. E, se hoje escrevinho com regularidade, tenho que admitir que em grande parte devo isso a Carlos Heitor Cony, cuja coluna diária na Folha de S.Paulo acompanhei durante anos. O fato de ele ter envelhecido mal e ter ficado gagá, transformando sua fina ironia em mero cinismo azedo, não conseguiu destruir a estima e a gratidão que tenho por sua obra. Inclusive, é necessário que eu acrescente, ele também é um excepcional ficcionista. Comecei citando-o porque o li certa vez admitir que a felicidade depõe contra a criação. Durante os cerca de 20 anos em que esteve casado, foi feliz e, portanto, não teve ganas de escrever nada que ultrapassasse suas obrigações de jornalista.

Tá, não quero cair na arapuca da generalização, portanto vou falar apenas por mim, e tendo como base esse depoimento de Cony. Considero-me um fiasco como homem. Sempre tive a autoestima no nível dos calcanhares (de aquiles... ou pior, dos meus); nunca soube "fazer dinheiro" nem tive ambição o suficiente pra buscar uma profissão que me possibilitasse viver confortavelmente; sempre fui tímido no trato com o sexo feminino (fosse em relações amorosas ou simplesmente de amizade); na adolescência, cheguei a ser um razoável jogador de futebol amador, mas não tive pernas (peito?) pra tentar as "peneiras"; e vivi a vida inteira me sentindo um bosta ambulante, um sujeito que no mundo só fazia número e cuja existência não significava nada pra si próprio nem pra ninguém mais — excetuando seus progenitores quiçá.

Cheguei aos 20 e poucos anos nessa condição. Sabia, no entanto, que tinha certa facilidade com as palavras, pois me lembrava de que na época de estudante costumava tirar boas notas nas redações — provavelmente ajudado por meu amor aos livros, minha maior droga e talvez o que me tenha feito desistir do suicídio um par de vezes. Na época, tinha uma relação estável de anos com uma garota a quem talvez nem amasse — e cujos sentimentos em relação a mim deviam ser ainda menores — e estava fadado a um casamento infeliz, uma profissão infeliz e um envelhecimento infeliz. Foi quando a música entrou de sola em minha vida e me salvou dessa relação. Como compositor não é profissão, a então noiva me liberou pra viver de meu sonho (ilusão?) e foi cuidar de sua vida (perdão pelo déjà-vu... já havia comentado isso antes aqui).

A partir de então, minha vida deu um salto. Comecei a conviver com pessoas com quem jamais teria contato na condição de homem comum, em pouco tempo passei a ser respeitado e admirado (e, pasmem!, até invejado) por uma quantidade de pessoas que me parecia verdadeiramente incrível, e finalmente consegui mesmo gostar um pouco de mim — descolei até um casamento! Quer dizer, o contato com a criação me fez aceitar o recipiente dentro do qual ela se formava, visto que era ele quem carregava pra cima e pra baixo a essência. Lembro-me de algo que uma amiga compositora disse sobre mim certa vez que considero um dos elogios mais esclarecedores que já tive na vida. Confidenciou ela a outra amiga compositora: "Olhando pra ele, a gente não dá nada; mas como escreve!"

Outra muleta em minha vida sempre foi o humor. Acho que a natural propensão que o cearense tem pra fazer graça deve ter me ajudado. O humor talvez esteja em meu DNA, involuntariamente até, admito, pois me considero mais do pranto que do riso. Contudo, desenvolvi um humor mordaz, anárquico, por vezes mesmo cruel e, naturalmente, politicamente incorreto, mas o que posso fazer se sou a primeira vítima dele? Explico: aprendi que pra viver dentro de meu corpo não tinha outra alternativa que não fosse a de rir de mim mesmo. Ridicularizando-me antes que outros o façam, desestimulo o bullying de lá pra cá ou, na pior das hipóteses, gero no possível ofensor uma espécie de camaradagem, e, se for pra ele me humilhar, rimos juntos e nos irmanamos em minha defenestração.

E é assim, dentro dessa jaula, que chegamos ao artista, ao criador. Como descobri que meu talento era incensado (ao menos aqui, no baixo clero da arte), passei a me pavonear, aumentar o valor de meu passe. Contudo, o que pouca gente entendeu até hoje (mesmo entre parceiros queridos e íntimos) é que sempre me autoelogiei meio que zombeteiramente. Quando digo que sou o máximo, ajo meio como um bufão, quero fazer graça, inofensivamente trazer o interlocutor pra meu lado. É até ridículo ter que explicar, mas vá lá, a explicação faz-se necessária: tenho noção de meu talento, sei que fiz muitas coisas acima da média; mas tenho noção também de que até nesse quesito sou mais um entre tantos. Bora pra novo parágrafo.

Sinto-me sinceramente feliz por estar bem-acompanhado, por não ser uma exceção. Tenho muitos parceiros e amigos cuja arte considero superior à minha. Seria muito triste se eu fosse um gênio rodeado por imbecis. Graças a Deus, não é o que acontece. Meu esporte é coletivo e, assim sendo, me dá a justa noção de que faço parte de um time. Não à toa não canto, não sou instrumentista e ainda por cima não tenho ritmo — até pra dançar sou um desastre. Assim, minha pequena colaboração é pouco mais que poética, e sempre precisarei de quem, em a entendendo, melhore-a. E me sinto abençoado por ter um número satisfatoriamente grande de parceiros cujas competência e genialidade — e, acrescento, generosidade — me permitem ser de seu convívio.

Putz, me estendi demais e agora não sei como terminar. O que quis dizer com esse aglomerado de palavras? Nem eu sei ao certo; o que sei é que, como afirmei dia desses num sarau, minha arte é feita de verdade. E tudo o que escrevi acima faz parte de minha verdade. É o pacote inteiro. Quando compramos um computador, um celular ou sei lá mais o quê, percebemos que ele tem qualidades e defeitos, ou seja, não há o aparelho perfeito. Por melhor que seja, sempre pode ser superado por um modelo mais novo. E assim sou eu, esse punhado de contradições ambulante — só que, em meu caso, por pior que eu seja, também sempre posso ser superado (inclusive por mim mesmo). Portanto, amigos, perdoem se em determinado momento pareço sério ao me gabar. É só tiração de sarro. Eu, na verdade, sou um gambá.


***



2 comentários:

  1. Você é um doce Lêo, toda essa "insegurança" vem do seu grau de exigência. Adoro as suas Crónicas, não são escrita menor, não. Se nos conhecêssemos dar-nos-íamos bem, (sem talento algum) comungo muito com o seu auto-perfil.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Mi, copio aqui a resposta do face:

      Poxa, Mi, obrigado. Mas algo me diz que nos veremos em breve. Ponhamos fé.

      Abraço,
      Léo.

      Excluir