sábado, 6 de novembro de 2010

Um Cearense em Cuba: Nono Dia

2006
JUNHO
NONO DIA
Lunes, 26.

Não retomei. Dormi. Livros, se não os levamos nas viagens, fazem-nos falta, se levamos, não temos tempo pra lê-los…

Hoje, após o café da manhã, fomos à Casa del Estudiante, que fica exatamente ao lado do Hotel Casagranda, do outro lado da rua. Lá acontecia um ensaio de um grupo de dança chamado Matumba (se não me engano), dedicado à música folclórica. O espetáculo, a cujo ensaio assistimos, mescla três influências da música cubana. Do lado oriental do país há a influência francesa, do lado ocidental há a africana, e há também uma outra (cuja origem esqueci completamente), todas juntas formando uma trilogia a que o espetáculo se dedica. Este grupo é muito famoso, e já viajou por vários países da Europa, além do Canadá. O diretor é rigorosíssimo, um negro pequeno, com tranças e uniforme de basquete, que certamente deve ter trocado com alguém (o uniforme, não as tranças). Ao final, coversamos com o coreógrafo, e Kana o filmou. Foi ele quem nos deu todas essas informações. A dança é muito vigorosa, pois remete às origens africanas dos cubanos.

Ainda com relação ao vistoso uniforme do diretor, se não frisei ainda, vou fazê-lo agora. Aqui, os cubanos me lembraram os antigos índios brasileiros, do tempo da invasão, que trocavam suas coisas por espelhos e outras bijuterias. Aqui, tudo o que há de melhor é para os turistas, e os restos vão para os cubanos. Os mercados que vi aqui em Santiago permanecem com as portas fechadas, e formam-se filas do lado de fora, só entrando um depois que outro sai, como em quase todos os estabelecimentos. Então, os CDs, os shows, as roupas bonitas, estão fora do alcance do minguado salário cubano, por isso eles trocam com os turistas por algum suvenir local, ou então são presenteados por estes.

De tanto sermos abordados nas ruas, hoje usamos a tática do silêncio. Um cubano, de tanto insistir em vão em chamar-nos a atenção, disparou-nos em face “¡Racistas! ¡Ustedes son racistas!”. O sangue me subiu e quis responder-lhe, ao que Kana me puxou, pois seria uma discussão inútil. Entramos numa loja de CDs e uma muchacha muy hermosa nos deu algumas informações que já descrevi acima. Imagine, um CD custa em média 15 pesos, como um cubano pode comprá-lo? Kana pediu desconto na compra de dois CDs, ao que ela falou que era o preço oficial e não podiam fazer descontos. Kana disse que havia trabalhado três anos pra viajar até aqui, ao que ela respondeu que trabalhará a vida toda e não poderá deixar o país. Até agora, não deixou sequer Santiago…
    
***    

Já falei da opacidade dos olhos dos cubanos, falta falar da sua “velocidade”. É incrível como essa gente “pesca” com os olhos. Se caímos na besteira de olhá-los, nem que seja de esguelha e por uma fração de segundos, pronto! Já se sentem autorizados a atacar-nos com seus “hola, amigo” e quetais. Um exemplo: nosso primeiro almoço em Santiago se deu num restaurante simples, mas de pé direito alto e belíssima comida. Já arisco com as pessoas da rua, disse a Kana que não fitasse ninguém pela janela. Tentamos fazer isso até onde foi possível, pois num momento apareceu uma figura sem os dentes laterais, porém com um sorriso de orelha a orelha. Não lhe demos bola, porém, em determinado momento, ao olhá-lo de esguelha, sacou de sua percussão, rapidamente apareceu uma espécie de violeiro, e começaram a cantar pra nós. E cantaram e cantaram, e sorriram e sorriram, que Kana puxou 75 centavos e lhes regalou. Imediatamente, nosso sorridente banguela contou as moedas e olhou-a como quem diz “Só isso?”. Kana deu de ombros, ele se virou pra mim, que também dei de ombros. Terminaram a canção com o percussionista sem sorrisos e tocando de costas pra nós…

***

O mundo continua sua rota, pois pra cada pessoa que nos rouba a confiança na humanidade existe outra que nos devolve. Hoje à tarde pegamos um táxi e fomos até um foco cultural de Santiago, onde se ensina dança pra crianças. Como conhecemos este posto? Por meio de um japonês amigo da Kana, o percussionista Fujita, que nos últimos dez anos já foi a Cuba várias vezes. Pois bem, lá chegando, logo nos deixaram entrar, Kana sacou de sua filmadora, e foi um tal de crianças arrodearem-na, que cheguei a me lembrar de quando fomos pra minha cidade natal, no interior do Ceará, e Kana principiou a tocar Luiz Gonzaga ao violão. Prosseguindo, assistimos a um pouquinho das aulas ministradas às crianças, e, ao final, quando Kana falou que era amiga de Fujita, Cuba mostrou-nos seu outro lado. Falamos por quase uma hora com duas irmãs, uma, professora de dança pra crianças, e a outra, professora de dança pra adultos. No entanto, as duas tinham nomes tão exóticos que não me foi possível decorá-los. Elas nos apresentaram seu irmão Jorge, que acabara de chegar, e que, ao saber que éramos amigos de Jackie Chan (é assim que eles chamam Fujita aqui), tratou-nos como se nos conhecesse há décadas. Quando nos despedimos, Jorge nos explicou sobre os “paladares”, disse que a comida é muito barata, quando um turista é levado por um “amigo”, e levou-nos até La Dalia, um restaurante onde frequentam seus amigos. Comemos e bebemos e pagamos ao todo seis pesos! Jorge nos acompanhou até o hotel, paguei-lhe uma saideira e, enquanto conversávamos e eu puxava papo sobre política, ele falava bem de Fidel e olhava pros lados. Quando saímos novamente, explicou-nos que sua situação ali, junto aos funcionários do hotel era como a de um penetra, e acrescentou que falar de política ali era perigoso pra ele, pois podiam ir em seu encalço depois que nos fôssemos. Levou-nos pra Casa de las Tradiciones, mais um reduto da música santiaguera. Enquanto andávamos, brincou que Fidel não morrerá jamais, depois, sério, disse temer o que sucederá quando este morrer. Chegamos. Estava fechada, por ser lunes. Voltamos. Kana o presenteou com um pacote de balas, pra su hija, alguns sabonetes e seu CD. Ele pediu que lhe entregássemos longe das vistas dos funcionários do hotel, e foi o que fizemos. Antes de nos despedirmos, convidou-nos a jantar em sua casa, na próxima quarta, quando haverá uma apresentação em sua rua. Aceitamos de bom grado e despedimo-nos.
    
Quando entramos no hotel, vi que a recepcionista da noite, uma senhora, estava lendo um livro. Abordei-a sobre literatura cubana, conversamos alguns minutos, ela me indicou alguns autores e seus respectivos livros, porém disse que pode ser difícil encontrá-los, pois, desde que o comunismo acabou na Rússia, eles perderam um grande aliado e que, entre outras coisas, os livros sumiram das prateleiras. Antes, os livros eram abundantes e baratos, os técnicos inclusive. Hoje os jovens, se quiserem ler algo, têm que tomar emprestado livros nas bibliotecas. Comprar, além de caro, é difícil. Por fim, disse que do Brasil leu apenas um livro de Paulo Coelho, mas a história se passava na França. Perguntei se havia gostado, a resposta foi imediata, “No mucho”.

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