quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Crônicas Classificadas: 15) Um lugar ao sol

Caríssimos, o começo do ano me pegou no contrapé, e, por motivos que não vêm ao caso, tenho sido obrigado a estar um tanto relapso na manutenção deste espaço. Ideias não faltam; homenageados e canções, idem... O problema é o tempo. Claro que sei que, se não passo aqui vez em quando pra dar uma espanadinha no pó, as traças tomam conta da residência e nem se dão ao luxo de pagar o aluguel.

Mas não falemos em aluguel, que aluguel lembra dinheiro, dinheiro lembra perdas e danos, e o melhor é olhar pra frente, visto que o que se perdeu é parecido com os 39 anos que deixei pra trás ano passado. Tenho esperanças; afinal, idiota como sou, só me restam as esperanças, sempre. No mais, ainda estou vivo, e isso não é pouco. E, como planejo viver até uns 90, estourando 100, tenho bem dizer uma vida inteira pra sanar os prejuízos e, quiçá, evitar outros (e ainda sair com pelo menos um empate no final da partida).

O prólogo enrolation acima não tem nada que ver com o que virá, já que esta coluna é a de Crônicas Classificadas, ou seja, de autoria de outros que não eu. Apenas, na falta do que dizer, deixo por volta de umas duas dezenas de linhas pra me justificar aqui ante outrem. Isto posto, e marqueteiramente dizendo, lembrei-me de ter lido não lembro onde muito menos quando uma deliciosa crônica de Chico Buarque, creio que pra lá de antiga, mas por meio da qual ele já dava sinais do escritor que futuramente se tornaria. Assim, como ele voltou a ser notícia recentemente por sua volta aos palcos cariocas (e como é época de praia), deem-se por bem pagos, pois, na falta da bijuteria, ofereço-lhes o próprio trabalho do ourives. A ele, pois!


Um Lugar ao Sol
Por Chico Buarque

O vosso correspondente em Roma não se encontra em Roma. Em Roma não há ninguém. Fugiram todos à praia em gozo de sol e férias. Sigo a multidão com minha tenda, meu trapézio e meus leões. Essa é a vida de artista, correr aonde está o público para poder fingir que é o público a nos correr atrás. Dia desses baixei em Capri, que, segundo o cicerone, ostenta as praias mais lindas do mundo depois do Rio de Janeiro. Comovido, agradeci, dobrei a gorjeta e fui conferir. Realmente o azul do mar, com as rochas brancas e a mata cheirosa, é um espetáculo único. Mas ir à praia, aí é que são elas. Convenci-me de que brasileiro não sabe tomar banho de mar, e olha que tive o maior empenho em aprender.

"Paga-se a entrada?". "Pois não". "Paga-se o vestiário?". "Pois não."

"O mictório também? Não tem problema."

Entrada, vestiário, mictório, guarda-sol, cadeira, boia, desci à praia cheio de tickets e privilégios. Irrepreensível, pensei. Agora que descobri os macetes é só deitar na areia, comprar um chica-bom e pensar besteira, igual a Copacabana. Mas qual não foi minha surpresa quando cheguei à areia (pedregulhos) e a encontrei literalmente repleta de cabeças, pernas, barrigas e bumbuns. Tentei abrir caminho, pedi um passinho à frente, por favor, disse que ia saltar no próximo ponto, mas os corpos estavam surdomoles no mormaço. Recuei alguns metros, pisei nas partes duma senhora e subi os degraus de volta. Lá em cima, sobre o cimento, havia um colchão de ar jogado à toa. Deitei e ameacei um cochilo, mas o bilheteiro balneário veio perguntar em inglês se eu era da família americana. À minha primeira pronúncia ficou evidente que eu não era não de tão boa família, diante do que fui convidado a me retirar do colchão esplêndido. Nisso me revoltei brandando que queria um lugar ao sol, queria um lugar ao sol, frase que aprendi nos bastidores da televisão. Na minha terra, insisti, a praia é do povo como o céu é do condor.

"Mas aqui o colchão é dos americanos", disse o bilheteiro friamente.

Eu não ia discutir, ainda mais que os americanos tinham achado de invadir a lua, uns dias antes. Eu não ia discutir por causa dum colchão de ar. Não discuti, mas fiquei com aquilo atravessado na garganta, por isso fui até o bar para engolir melhor. Uma droga dum colchão de ar. Sentei no bar e fiquei vendo os americanos prostados ao sol. Pareciam cada vez mais bonitos, saudáveis, bronzeados, e eu muito cinzento e verde. Assim passavam-se as horas e nada de vagar um só buraquinho. Pelo contrário, chegavam sempre novos banhistas, desses gordos, sem ossos, gelatinas. Iam falando please e acabavam se encaixando. O aglomerado já formava uma massa tão comprimida que dali a pouco, com mais um aperto, dava a impressão de que uns e outros iam estourar para o alto que nem pipoca. E, quando alguém se levantava, deixava sempre um chapéu para garantir a vaga. Às cinco e meia resolvi desistir, mas aí abriram um primeiro espaço. Saiu um, saíram dois, saí eu e corri a reservar meus pedregulhos. Sobrou uma cadeira, tomei conta. Apossei-me duma bola, dum colchão, dum guarda-sol, tudo junto. Afinal, eu tinha os tickets, estava no meu direito. Só achei estranho aquele êxodo assim precipitado, pois em poucos minutos eu estava sozinho na praia. Engraçado, porque americano não é de abandonar um bom lugar sem mais nem menos. Que diabo, se eles foram embora é porque algo de ruim vem por aí! Pensei em chuva, tempestade, tubarão, mas nada. Só os bilheteiros que estavam recolhendo tudo, o bar que estava fechando, o último ônibus que estava partindo e eu que estava sendo expulso. Expulsão não é bem a palavra, não é exata. Mas ficam aqueles garçons resmungando e olhando para a sua cara. E vem aquele empregado mandando você erguer os pés, os dois ao mesmo tempo, para passar o escovão debaixo. Como boteco de português à meia-noite. "Que é isso", perguntei, "vai fechar a praia?". "Pois é claro", disse o empregado, "às seis horas nós fechamos tudo". E continuou a esfregar sabão na praia. Não era o caso de contestar a organização lá deles, mas confesso que fiquei perturbado. Ainda mais quando, ao deixar o local, olhei para o mar e vi o que vi. Aliás, não sei se vi mesmo, é dificil acreditar. Vai ver que o sol me batera na cabeça de mau jeito. Ou então fora o gim, sei lá, gim é uma bebida desleal. Não posso jurar nem peço que me creiam, mas o que vi foi o seguinte: o mar esvaziando, esvaziando, os barcos acomodando-se entre as pedras e o Mediterrâneo sendo chupado pelo ralo, dando lugar a magníficas autoestradas, caminhões, ferrovias, semáforos, supermercados, perdendo-se de vista no horizonte.

3 comentários:

  1. O Chico é meu ídolo! Devo ter ouvido quase tudo, li 2 livros (Benjamim e Estorvo), a ideia da crônica é boa, porém, desta vez, não gostei da construção da narrativa.
    Como dizem, opinião é igual a bunda...
    Abraço forrrrrrrrrte!
    João Prista

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  2. Hola Leó.. qué tal todo...

    gostei muito de ler este texto... aprendi muitas palavras novas em português...
    até...

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  3. Caro João:

    Nem Chico é unanimidade mais, muito menos eu.

    Hola, Javier!

    Qué bien que te volviste mi lector! Me quedo feliz.

    Hasta pronto!

    Léo.

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