quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Trinca de Copas: 5) Gabriel de Almeida Prado, Ito Moreno e Luhli

1) LABIRINTO

Ano novo, canções novas! No último mês inaugurei novas parcerias e aproveito o frescor de 2012 pra mostrar algumas delas. Como, pra evitar problemas com egos, costumo eleger as canções por ordem alfabética, calhou que a primeira delas não é exatamente nova.

Explico: a canção é nova, mas a letra é bem antiga. O que passou foi que desde quando conheci Luhli pessoalmente fiquei encantado com ela e andei paquerando a ideia de ser seu parceiro. Chegamos a compor uma juntos (muito bonita, por sinal; qualquer hora a posto aqui), mas as outras letras que lhe enviei não acertaram o alvo.


Os anos se passaram e a coisa ficou mais difícil, pois Luhli acabou se mudando pra Lumiar, localizada na serra fluminense, onde a conexão vive às turras com a cidade. E aí ela acabou, por esses motivos, saindo da M-Música, grupo do qual ambos participávamos (eu continuei).

Mas as saudades bateram forte em seu coração e no finalzinho de 2011 ela acabou voltando. E voltou animada, embora a conexão permanecesse desanimadora. Foi aí que lhe recordei nossa parceria, e ela me pediu que reenviasse as letras. E, vejam vocês, este é um exemplo perfeito de que pra tudo há seu tempo:

Uma letra que na época não lhe havia chamado a atenção acabou tocando-a nesse novo momento, e foi aí que nasceu nossa nova parceria. Fizemos outra, esta em parceria com Denilson Santos, mas, por motivos que depois explicarei, vou deixar pra mostrá-la na próxima edição. Por ora, fiquem com este blues rasgado, bem ao estilo de Luhli:

LABIRINTO

Hoje me engoliu o vazio, 
Sou uma folha em branco
Não pego nem no tranco, 
Sou mapa sem Brasil

Me escondi nas entranhas, 
Rolou um pranto seco
De violeiro cego, 
De neve na montanha

Sou um farol sem causa 
Mirando o absurdo
Sou só um som em pausa, 
Sou só um som em pausa
Sou só um som em pausa...

Sou um perdão perdido, 
Um sonho esclerosado     
Um muro não-pichado, 
Sou o que não tem sido

Hoje sou livro em língua morta, 
Lavo as mãos qual Pilatos
Largo pés sem sapatos, 
Hoje eu não abro a porta

Sou parte sem conjunto, 
No lar, um labirinto (Meu lar é um labirinto)
De coisas que não sinto, 
Hoje eu não chego junto
Hoje eu não tenho assunto, 
Hoje eu não tenho assunto

Sou um perdão perdido, 
Um sonho esclerosado     
Um muro não-pichado, 
Sou o que não tem sido

PS: Visite a página de Luhli aqui.

***

2) PÓLVORA

Esta é outra letra antiga que ganhou melodia nova. Pra ser bem sincero, mas sincero mes-mo(!), nem me lembrava mais dela. Acho que a compus por volta de 1910 ou algo parecido. O que acontece é que meu querido parceiro Ito Moreno não é um cara nem um pouco ansioso (ao contrário de mim, né, Nana?). Afinal, é baiano, oras! Contemplador, lapidador, tem raiva do computador...

Mas o fato é que isso sempre ocorre com nossas parcerias. Mando-lhe a letra, ele musica, lapida, fica satisfeito... E fica por isso mesmo. Se eu não lhe encho a paciência ao cubo, o moço não me grava as canções, e eu fico sem saber se é bonita ou não, se existe ou é papo-furado... Afinal, sou meio São Tomé, só acredito vendo... Aliás, no caso, ouvindo.

Daí que há alguns dias  Ito me mandou essa gravação, e, como não sei se ela é da época em que lhe mandei ou é nova, fica valendo a data do e-mail. E estamos conversados. Mas eu não me irrito, não, pois sei que sempre vem coisa boa. Muitas vezes a melodia dele melhora a letra, como acredito ter sido o caso desta. E em alguns casos a melodia evidencia a qualidade da letra. Claro, porque às vezes eu acerto na mira também, né?

No mais, o que falar da canção?  Ito, pra quem não conhece, é um baita violonista que prima pelo aspecto rítmico. Mas isso eu já expliquei no texto que escrevi sobre ele. Quem tiver curiosidade, basta clicar no nome dele e ir se deliciar com suas canções (e meu texto, que também não ficou tão mal assim). Por ora digo que a letra tem a seu favor tratar de uma separação pela ótica da não-manifestação das coisas (e pessoas) ao redor do abandonado, e pelo fato de ele perceber isso, pois, em geral, quando um camarada leva um pé na região glútea, acha que o mundo acabou e enxerga tudo com olhos de miserável. Este, não (o que talvez o torne mais miserável ainda...). Tirem suas próprias conclusões (tenho certeza de que já escrevi isso, mas, a exemplo da letra, "que se exploda!"):

PÓLVORA

Meu amor foi embora
E o sol ainda brilha lá fora
E o mendigo ainda entoa cantigas
Nenhuma alma chora
Nenhuma alma liga

Meu amor foi embora
E o ponteiro ainda aponta as horas
E a paróquia ainda faz a quermesse
Nenhuma alma cora
Nem empalidece

Meu amor deu o fora
E há fauna! E há flora!
E agora?
Meu amor deu o fora
E há flauta! E metáfora!
Nossa Senhora!

Meu amor foi embora
E o trânsito ainda piora
E o mosquito da dengue ainda mata
Ainda há catapora
Ainda há catarata

Meu amor foi embora
E o poderoso ainda explora
E a bala perdida ainda acha
Ainda há juro e mora
Ainda há sobretaxa

Meu amor foi embora
Essa víbora é mesmo covarde
Pois deixou essa pólvora toda 
E o meu peito arde
Que se exploda!

***

3) TODA BELEZA TEM SEU ATRITO

Respeito quem compõe sozinho, afinal, todas as formas de compor valem a pena (se a inspiração não é pequena), desde que se atinja um resultado final gratificante. Mas a parceria, sobretudo aquela feita ao vivo, olho no olho, dá um sabor especial à canção, pois acaba ganhando elementos da vivência de cada um dos parceiros, sendo assim enriquecida, ou seja, nenhum dos dois (ou mais) que fazem uma canção juntos seria capaz de fazê-la só. Há mais ou menos uma semana fiz uma canção assim. Acredito que meu relato possa servir como aprendizado aos leigos.

O jovem Gabriel de Almeida Prado apareceu em casa dia desses. A prosa fluiu sem papas na língua, principalmente por conta de quatro garrafas de vinho que nos serviram de combustível. Gabriel me contava que quando era estudante sentia-se um tanto isolado do resto de sua turma por não gostar de esportes nem dos assuntos que agradavam aos demais (seria já um precoce?). Em seguida, mudou de escola e ficou um tanto espantado por se ver assediado por algumas garotas. Foi grosso com elas e as afastou. Lembrando-se de suas experiências frustrantes na escola anterior, não cria ser possível que alguém se interessasse por ele. Ou seja, regou seus fantasmas e devolveu seus frutos ao mundo.

Em contrapartida, contei-lhe que, apresentado por meu parceiro Madan, li alguns livros do indiano Osho, que fora uma espécie de filósofo religioso, aliás, religioso não é a palavra certa, pois seu pensamento extrapolava doutrinas. Dependendo dos olhos de quem lê, os livros de Osho podem ser considerados tanto de autoajuda quanto de filosofia, digamos, mística. Confesso que, na época, agradou-me o que li. Contei a Gabriel algo que li num livro de Osho que jamais esqueci e que procuro (sempre que possível) aplicar a minha vida. Não vou conseguir citar ao pé da letra, mas ele dizia aproximadamente que devemos abrir os braços pra receber os presentes da vida, tanto as coisas boas quanto as ruins. Se fecharmos os braços pras coisas ruins, estaremos fechando-os também pras coisas boas, pois estaremos interrompendo o fluxo natural da vida. 

Esses e outros assuntos fizeram parte de nosso papo, e eis que, costurando-os, começaram a brotar algumas ideias. Pedi-lhe que pegasse o violão e tentasse compor algo pros versos que nasciam. Então ele me disse que tinha assistido recentemente ao filme francês O Fabuloso Destino de Amélie Poulain e ficara com a trilha sonora na cabeça. Dei-lhe corda e em seguida ele começou a tocar algo inspirado na trilha. Vi que daí vinha coisa boa e meus instintos se aguçaram. A canção foi ficando muito bonita, e minha emoção ainda era maior porque tinha à frente praticamente um garoto, porém sua sensibilidade e sua inteligência eram tão impressionantes, e ele ao mesmo tempo demonstrava... Como direi? Humildade? Não, acho que não é a palavra correta... O que me parecia era que ele possuía certo desprendimento, desapego mesmo eu diria, da arte que manejava com tanta facilidade.

O que quero dizer com isso é que o enxerguei como uma pessoa muito mais experiente (pra não dizer velha) do que ele realmente é, justamente por essa falta de... ego? O que já é um precioso passo no sentido do domínio da arte de compor. Ele estava ali na minha frente despido de preconceitos, aberto a ouvir o que eu tinha pra acrescentar e ao mesmo tempo capaz de dialogar com meus argumentos sem que isso parecesse um jogo, mas sim uma... parceria! Daí me lembrei de como fui mal interpretado no texto Música Não É Futebol, pois tudo o que sempre quis dizer aos jovens compositores é que essa troca é enriquecedora a ambos lados, mas é preciso ter menos ego (e menos insegurança) pra encurtar essa ponte. Admito também minha parcela de culpa nisso. Mas deixemos de delongas e vamos à canção:

TODA BELEZA TEM SEU ATRITO

De tanto levar porrada
Da vida, com farda ou sem farda,
Percebo que o fardo é conversa fiada
É só abaixar a guarda

De tanto cantar sozinho
No coro dos descontentes
Joguei fora a flor, reguei os espinhos
Me desarmei até os dentes
Até

Até o fogo é bonito
A faca abre o fruto ao meio
O espelho de Narciso é feio
Toda beleza tem seu atrito
Toda beleza vem do atrito
Toda beleza vem

De tanto beijar na boca
Da vida, a sangue e saliva
Percebo que a dor, mesmo grande, é tão pouca
É só caminhar à deriva

De tanto rezar pra tantos
Alá, Maomé ou Buda
Joguei fora os deuses e todos os santos
Saquei que a fé é crer sem bula
É crer

É crer que o fogo é bonito
A faca abre o fruto ao meio
O espelho de Narciso é feio
Toda beleza tem seu atrito
Toda beleza vem do atrito
Toda beleza vem

***

10 comentários:

  1. Gabriel de Almeida Prado4 de janeiro de 2012 às 15:20

    Pô Léo...
    Assim você deixa o espelho do meu Narciso um pouco mais bonito cara...ehehehe...
    Obrigado pelas palavras, parcerias e amizade...
    Sempre bom dividir a arte e a vida com pessoas de verdade.
    Gostei também das outras parcerias. Essa com o Ito Moreno ficou uma maravilha.
    Abração cumpádi...

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  2. Fernanda, grato!

    Gabo, desculpe meu espanto com relação a você, mas é que com 22 anos eu era um mané... Quer dizer, com 40 ainda não mudei muito... Hehehe! Resumindo: brindemos à amizade e à parceria, que o resto leva a Melancolia (pô, dá letra, hem?)!

    Abração do
    Léo.

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  3. Gostei bastante dos textos. Não consegui ouvir um som, mas como conheço sir Gabiru, tenho quase certeza da qualidade tão comentada. Mas ainda quero ouvir esses sons...

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  4. Gabriel de Almeida Prado4 de janeiro de 2012 às 18:28

    AHAHAHAHA... essa foto eu to mto feio AHUHAUHAUhauha mas é a vida...hahaha

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  5. Prezado Léo,

    Sou leitora assídua dos seus textos e admiro a sensibilidade da arte da escrita, a delicadeza das suas letras, o excelente domínio da língua portuguesa.

    A habilidade em escrever ótimos textos, aliada à musicalidade de elevadíssima qualidade, certamente tornam esse blog uma preciosidade, tão bom e gratificante de se acompanhar.

    Parabéns!

    Um abraço,

    Ana Lucia Nascimento.

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  6. Meu querido Gabiru, você está mandando muito bem do auge dos seus "twenties"! Gostei da canção e da sua interpretação. Já que a coisa foi surgindo ali na hora, que outras garrafas de vinho sirvam de combustivel para sua criação, rs.
    Léo, adorei a letra e me pus a pensar sobre ela. Também gostei das outras parcerias, principalmente, de Pólvora, cujo ritmo é delicioso.
    Parabéns a todos!

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  7. Felipe, Louise, Sonekka, Jacinta:

    Grato pela visita e pelas palavras.

    Ana Lúcia:

    Sempre quando eu estiver pra baixo vou vir aqui ler seu depoimento. Hehe!

    Gabo:

    Cê ficou biito na foto, rapá!

    Abraços gerais,
    Léo.

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