sábado, 12 de janeiro de 2013

Crônicas Desclassificadas: 66) O trabalho segundo Lavorato

Lavorato não parava em emprego. Completara recentemente 33 anos (idade de Cristo) e morava ainda na casa dos pais, porque tampouco conseguia manter relacionamentos duradouros com as moças. As que dele não fugiam, ele fazia de tudo pra espantar. Amigos, nenhuns, pois Lavorato tinha o mau hábito de cuspir verdades em narizes alheios. Grana, quando a tinha, torrava em livros. Só não andava esmolambado porque sua mãe, dona Maria (santa Maria!), católica fervorosa e mãe zelosa, supria-lhe o guarda-roupa.

Seu pai, Giuseppe, um italianão bravo de bigode ruivo e faces coradas, metalúrgico que trabalhava havia mais de três décadas na mesma fábrica, não lhe dirigia a palavra ia já pruns quatro anos, depois que Lavorato (Filho), que naquele entrementes lia a biografia de Marx, chamou-o de pau-mandado do patrão. Só não fora expulso de casa porque sua mãe, num arroubo de coragem, sentenciou, "Se ele sair, eu saio". Seu Lavorato, como todo cão que ladra, enfiou o rabo no meio das pernas e foi rosnar noutra freguesia.

Ultimamente, Lavorato não saía do quarto pra nada. Inventara de ser blogueiro (batizara o blogue com o acertado nome de Cabeça de Papelão) e passava o dia escrevendo artigos que espinafravam o Sistema, chamavam a plebe às ruas, pregavam revoluções etc.; entretanto, vez por outra, só pra descontrair, escrevia também uns contos eróticos muito bons. E o pior é que tinha muitos leitores, em geral doidos varridos que nem ele. Já nem tomava banho mais. Comida, então, três ou quatro garfadas e só. Estava um fiapo de gente. Fizera mesmo mais dois furos no cinto. E aquela barba! Meu Deus, onde isso ia parar? Mas o pior estava por vir. Dessa vez Lavorato pegara pesado. Não metera apenas a mão no vespeiro, entrara nele de corpo inteiro e sem escova de dentes. 

Dona Maria soube pela vizinha do apartamento ao lado, que, por sua vez soubera pelo filho. Madalena, a futriqueira. O dedo demorou bem uns 30 segundos na campainha, e nem adiantou "já vai", só parou quando dona Maria abriu a porta. Nem esperou ser convidada, já foi entrando. Na mão, trazia umas folhas de sulfite com um texto impresso. Já sentada no sofá, estirou o braço desafiador e, sem mais, soltou, "Já leu isso? Teu filho que escreveu. Eu, se fosse você, sentava". Dona Maria, com as mãos esquecidas de coordenação motora, com custo conseguiu pegar os papéis, e leu:

A Dignidade do Trabalho e Outras Balelas

O trabalho, dizem, dignifica o homem. Mas também embrutece, emburrece, cansa, estanca, cerceia. O trabalho, no curto prazo, rouba-lhe horas, no longo, anos. O trabalho às vezes (na maioria delas) torna o homem escravo, sem direito a ver a luz do dia, sem direito a regar as pequenas coisas simples da vida, como sorver o aroma de uma flor, ver crianças brincando num parque, ou velhos jogando xadrez, ler um bom livro, ou simplesmente tirar uma benfazeja soneca vespertina... O trabalho lhe cansa a mente. O trabalho mente.

O homem precisa trabalhar porque quer comprar uma casa. É o famoso "sonho da casa própria". Mas todo homem, antes de trabalhar, já devia ter uma casa própria! Ele sai de casa numa hora indecente e pega conduções desumanas porque tem contas a pagar, filhos a sustentar, alimentos a comprar, além de roupas, móveis, aparelhos eletrônicos... Ou seja, o homem precisa trabalhar porque precisa de dinheiro. Mas, como gasta tanto tempo no trabalho, não lhe sobra tempo pra se especializar em algo e, assim, galgar melhores trabalhos que lhe propiciariam mais dinheiro. O trabalho tem mau cheiro.

O homem que passa a vida inteira trabalhando sem pensar no porquê disso não aprende a enxergar a crueldade que há por trás da dignificação do trabalho. E, quando está desempregado, é visto como vagabundo. O homem é sempre julgado, podado, amputado em seu direito de ir e vir (livre-arbítrio?, não me faça rir!), obrigado a agir como cordeiro às vésperas de ser sacrificado numa sociedade que lhe suga os melhores anos e depois, quando este está praticamente inválido, chuta-lhe a bunda e lhe joga nas fuças uns trocados (esmola?), que, por não lhe propiciarem uma velhice digna, obrigam-no a... trabalhar.

Se o homem trabalha pra conseguir dinheiro, não está em pé de igualdade em relação aos que já nasceram com dinheiro, pois estes, já tendo no princípio o que pra outros é fim, podem se dar o luxo de possuir um bem ainda mais precioso que o dinheiro: tempo! Afinal, o homem que tem tempo pode viajar, crescer espiritualmente, intelectualmente, pode gozar de prazeres vespertinos (e matutinos), pode criar, escrever, compor, pintar, gerar filhos a quem ensinará os mesmos valores. E pode aprender a evitar que outros (a maioria) façam o mesmo que ele, obrigando-os a trabalhar pra ele, pra que seu patrimônio aumente e seus netos também não precisem trabalhar. O trabalho dá azar.

Enquanto isso, uma mulher que não é dona de seu tempo estará limpando a latrina do homem que tem tempo, com a dignidade do suor que lhe cai do rosto. Há coisas que são socadas cérebro adentro do homem que trabalha como verdades absolutas que não lhe permitem pensar a respeito. E, no pouco tempo que este tem livre, alguém lhe disse que ele tem que frequentar instituições religiosas que o limparão de dúvidas, confirmando que ele, sim, está certo em agir como gado (e, se a igreja estiver fechada, sempre haverá um bar aberto). Afinal, se o homem pensa e a moda pega, o mundo vira um caos. Homem não foi feito pra pensar, pois enquanto pensa não trabalha, enquanto não trabalha não ganha dinheiro, e enquanto não ganha dinheiro não gira a roda que faz o mundo girar.

A criança devia desde cedo aprender a ter noção do real significado da palavra prazer. Em vez de os adultos lhe perguntarem "o que você quer ser quando crescer?", deviam lhe perguntar muitas e muitas vezes, durante os anos de seu crescimento, "o que lhe dá prazer?". Aliás, o trabalho devia ser um prazer. Todos devíamos ir pra escola estudar modos de ganhar a vida com prazer. Afinal, a vida passa tão rápido... Qual o significado de perder a maior parte útil do dia gerando dinheiro pra terceiros? Latrina, cada qual devia limpar a sua.

A faculdade, por exemplo. Uma pessoa devia ir pra faculdade só depois dos 30, 40, após ter vivido muito, lido, viajado, curtido... Só assim poderia saber qual curso escolher. Mas não, enquanto o jovem tem saúde, vitalidade, perde anos que não voltarão estudando pra ser algo que não sabe se quer ser ou, pior ainda, estudando pra ser o que os pais querem que ele seja! Muitos estudam algo porque os pais puseram neles suas frustrações.

Ô-ou! Agora vão me chamar de socialista e o escambau. Não, caríssimos leitores do Cabeça de Papelão, eu não sou um socialista! Os governos socialistas que vingaram conseguiram, quando muito, acabar com a riqueza. Eu sou mais ambicioso. Queria acabar com a POBREZA. E entenda-se por pobreza não só a de recursos financeiros, mas TODA pobreza, principalmente a MENTAL. Tá certo, isso é utopia, dirão alguns muitos. É, pode ser. Mas, no dia em que matarem a utopia, terão aberto os portões à Demolições S.A., que botará abaixo os alicerces deste planetinha metido a besta. Ou, como diria Henry Chinaski, alter ego de Charles Bukowski no romance Mulheres: "Nós, os do lado de cá, estaremos bem até o dia em que os pobres descobrirem como fazer bombas atômicas no porão de casa."

***

Lavorato continua fazendo sucesso com seu blogue. Está pensando mesmo em escrever um romance nos moldes de Admirável Mundo Novo. Voltou até a tomar banho, faz a barba, engordou cinco quilos e está com uma cara boa. Dizem os enfermeiros que está de namorico com uma poeta chamada Fernanda (sobrenome Pessoa - artístico), interna vizinha de parede-meia. Sua vida deu uma verdadeira guinada depois que seus pais lhe alugaram uma suíte no Centro Reeducacional Nossa Senhora das Causas Perdidas.

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9 comentários:

  1. Brilhante, como sempre, Mister Léo Nogueira!
    E o nome do Personagem, Lavorato, é um must...
    O Texto, um Manifesto. Não só contra a opressão,mas a favor da liberdade de escolha. O que corroerá e dinamitará, por fim, os alicerces do capitalismo.
    Não vou dizer "selvagem", porquê, como diria a Jade, ... "isso é redundância, pai..."

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    1. Grande Cava! Valeu pelo comentário. Adorei o "must"! rsrs.

      Beijão (na Jade! rs),
      Léo.

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    1. Valeu, Curci! Só me deparei com seu comentário hoje. Sorry.

      Bjs,
      レオ。

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  3. Leozim, entre os lapsos de memória que tenho, até poderia pensar que este conto foi escrito por mim. Na verdade, eu o li como escrito por mim. Não pela pretensão de ter sua grande arte da escrita, mas pelo tudo que compõe este texto e que há tempos - desde que morava em SP no período 85-90 - tinha em mente, nasceu ardorosamente como princípio de vida. Neste período eu já via as pessoas indo pra lá e pra cá, algumas morando em um quarto com um banheiro, dividido entre duas pessoas - o que é um dos maiores absurdos que já vi no mundo "civilizado", sem falar na imensidade de pobreza jogada pelas ruas que me ardia o coração, como agora arde ao lembrar de tantos que já vi nesta condição.
    O texto é must, você é must..... Super! Debulho os confetes, muito atrasado (já que foi em 2017) e digo que se há um entendimento de uma rede social sobre este contexto, há de ser criado este modo de vida. Sem utopias!
    Abração, queridão!

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  4. Salve, Erico!

    Mas veja lá em cima, antes do título: o conto é de 2013 (rs)! No mais, me envaidece ter tocado sua sensibilidade de forma tão, digamos, gêmea, que você possa pensar que o texto é seu. Isso, pra quem escreve, é a glória... Quer dizer, se o leitor não acusar o autor de plágio... Hehe!

    Abração, mano meu,
    レオ。

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  5. Olha... Eu frequentaria o blog do Lavorato!

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