Há alguns anos sofri um acidente automobilístico do qual escapei com vida (e sem maiores complicações que o ganho de um nariz "pugilizado" e uma costela sem condições de dar à luz evas) pelo que se costuma chamar milagre. Mesmo assim, até os 40 anos a morte nunca havia ganho especial atenção de meus pensamentos, porém, se nela eu pensava, nem me fazia cócegas. Sentia-me quase eterno e, com uma larga estrada de realizações a percorrer, preferia, obviamente, deixar de coisa e cuidar da vida, já que eu ainda era tão moço pra tanta tristeza. Mas, dos 40 pra cá...
... uma dorzinha aqui, uma falta de ar ali, uma taquicardia acolá, e a constatação de que eu não era mais um jovem atlético, adicionando-se a isso a vida profissional um tanto assim-assim, enfim, essas e outras coisas trouxeram pra mais perto de mim o agridoce perfume da pálida dama. Não que eu tivesse medo, não, medo é um sentimento muito medroso, digamos que o que passei a sentir foi um receio, talvez um zelo excessivo pelo ato de respirar. Não à toa em espanhol receio e zelo se escrevem, respectivamente, recelo e celo.
E o engraçado, e contraditório, é que passamos a pensar mais na morte, individualmente falando, numa época em que, coletivamente falando, como dizia uma canção do Baleiro, "a morte é como um nu frontal, não choca mais ninguém". Ao contrário, se estamos na estrada (como aconteceu comigo ontem mesmo) e nos deparamos com um acidente, diminuímos a velocidade, esticamos o pescoço e aguçamos a parabólica pra ver se nos deparamos com uma orelha, um dedo ou mesmo vísceras pelo asfalto.
Será que, após tantas guerras, tantas chacinas (tanto individualismo), estaremos ficando sádicos, ou retrocedendo ao tempo em que multidões aplaudiam ao vivo e em cores a morte que se sucedia em arenas? Certa vez estava eu num ônibus, quando, ao perceber que o trânsito se complicara, vi, da janela, um motoqueiro esparramado no chão após um acidente. De repente, algum passageiro gritou: "Vambora, motô, o cara nem morreu!" Ou seja, não havia motivo pra circo, já que se tratava de um acidentezinho corriqueiro com um fulano com, no máximo, uma perna quebrada ou um braço estropiado.
Quando eu não passava de um guri, era diariamente (religiosamente) levado à escola, pelo braço, por minha mãe. Ir sozinho? Nem pensar! Foi então que num desses inocentes dias me deparei pela primeira vez com um morto, que nos esperava estatelado na mesma calçada que teríamos que atravessar. Minha mãe me deu um puxão, soltou algo parecido com um palavrão, mas que na verdade era algo referente a Jesus ou Maria ou José, e me fez mudar de calçada. Não rápido o suficiente pra evitar que eu visse a cara do sujeito. Pelo jeitão, devia se tratar de um indigente que morrera de indigência (desculpem o pleonasmo), pois não havia, pelo que eu notei, marcas exteriores que evidenciassem a causa mortis. Passei meses sonhando com a horrenda expressão daquela face...
Uns dez anos depois, já sem minha mãe a tiracolo, voltando da escola com alguns colegas de classe, deparei-me novamente com um morto na calçada. Este tinha o rosto banhado em sangue, e sua expressão era mais assustadora ainda. Lembro, contudo, que eu e meus companheiros, com a crueldade própria da juventude ("como é perversa a juventude do meu coração"), rimos do infeliz, fizemos algumas piadas sobre ele (fosse hoje, algum de nós teria fotografado o presunto pra postar no fb) e o esquecemos dois quarteirões adiante. No entanto, eventualmente volto a pensar nele, como hoje, porém, menos como um ser humano (eu?) e mais como uma estatística (ele).
Vinha querendo escrever este texto desde que li sobre o jovem que matou dezenas de crianças numa escola dos EUA (além de sua própria mãe!) em dezembro último, mas as palavras não me vinham. O assunto, espinhoso por si só, parecia não carecer de minhas elucubrações e meus lugares-comuns. A questão das armas, dos bullyings, enfim, todo esse universo já foi tão amplamente abordado pelos meios de comunicação... Porém, hoje, ao abrir o jornal e me deparar com a manchete "Dois turistas são assassinados no Guarujá", e após ler seu conteúdo, o que estava engasgado em minha garganta tive que cuspir.
Vejamos: o primeiro "foi morto quando tentava recuperar o celular da filha que fora roubado [...]. Segundo a Secretaria de Segurança Pública, por volta de 0h30, um homem não identificado roubou o celular de uma jovem de 20 anos [...]. A moça avisou ao pai sobre o crime e ele correu atrás do bandido. Quando se aproximou, foi baleado no peito e morreu no hospital". O segundo, um estudante de 22 anos, "foi morto a facadas às 19h de anteontem pelo gerente - e filho do dono - do restaurante X no Guarujá, após uma briga por causa da diferença de R$ 7 na conta. [...] Mesmo com a diferença paga, a confusão continuou fora do restaurante. O dono do local, diz a polícia, desferiu três facadas nas costas de Y, que morreu". Nos dois casos ninguém foi preso.
Ocultei os nomes. Quem quiser ler a matéria na íntegra, eis o link. O que mais me chamou a atenção nas duas histórias foram os motivos dos crimes. No primeiro caso, um celular, e, no segundo, uma diferença de R$ 7 no preço de um prato. Sem contar que os assassinados estavam na cidade pra curtir as comemorações de fim de ano. Supondo que essas pessoas estariam alegres, tanto o destempero do estudante no restaurante quanto a valentia do pai da moça roubada demonstram que as pessoas estão levando o estresse do dia a dia em suas bagagens. Mas o pior de tudo é o sangue-frio dos assassinos. No caso do ladrão do celular, infelizmente, nem espanta tanto, visto que hoje é praxe roubar e matar. Já no caso do gerente do restaurante, resolver uma divergência na conta na base da faca parece mais roteiro de cordel nordestino.
Peço perdão por começar o ano com assunto tão na contramão do costumeiro happy new year, mas é que fiquei pensando: também eu viajei nesse fim de ano, e, embora não me tenha deparado com tal situação, notei a frieza das pessoas que estão "se divertindo", a falta de "bom-dia", "como vai?" e de um mínimo gesto de gentileza. Todos ali parecem estar preocupados apenas em tirar fotos e postar, quase que imediatamente, no facebook. Estamos tão umbilicalmente presos à rede, que, mesmo "em liberdade condicional", com nossos corpos livres, nossas almas continuam na tela, digo, na cela. E vivemos tão no limite, que, por uma mera banalidade, qualquer um de nós poderia perder a cabeça e se ver no lugar das vítimas ou dos algozes acima. E um homem sem cabeça é capaz de qualquer ato. No novo velho oeste do individualismo, as leis continuam as mesmas: matar ou morrer. Morrer é da vida, matar é do vivo. Eis a questão.
"Hoje é um novo dia de um novo tempo que começou."
Feliz ano-novo.
... uma dorzinha aqui, uma falta de ar ali, uma taquicardia acolá, e a constatação de que eu não era mais um jovem atlético, adicionando-se a isso a vida profissional um tanto assim-assim, enfim, essas e outras coisas trouxeram pra mais perto de mim o agridoce perfume da pálida dama. Não que eu tivesse medo, não, medo é um sentimento muito medroso, digamos que o que passei a sentir foi um receio, talvez um zelo excessivo pelo ato de respirar. Não à toa em espanhol receio e zelo se escrevem, respectivamente, recelo e celo.
E o engraçado, e contraditório, é que passamos a pensar mais na morte, individualmente falando, numa época em que, coletivamente falando, como dizia uma canção do Baleiro, "a morte é como um nu frontal, não choca mais ninguém". Ao contrário, se estamos na estrada (como aconteceu comigo ontem mesmo) e nos deparamos com um acidente, diminuímos a velocidade, esticamos o pescoço e aguçamos a parabólica pra ver se nos deparamos com uma orelha, um dedo ou mesmo vísceras pelo asfalto.
Será que, após tantas guerras, tantas chacinas (tanto individualismo), estaremos ficando sádicos, ou retrocedendo ao tempo em que multidões aplaudiam ao vivo e em cores a morte que se sucedia em arenas? Certa vez estava eu num ônibus, quando, ao perceber que o trânsito se complicara, vi, da janela, um motoqueiro esparramado no chão após um acidente. De repente, algum passageiro gritou: "Vambora, motô, o cara nem morreu!" Ou seja, não havia motivo pra circo, já que se tratava de um acidentezinho corriqueiro com um fulano com, no máximo, uma perna quebrada ou um braço estropiado.
Quando eu não passava de um guri, era diariamente (religiosamente) levado à escola, pelo braço, por minha mãe. Ir sozinho? Nem pensar! Foi então que num desses inocentes dias me deparei pela primeira vez com um morto, que nos esperava estatelado na mesma calçada que teríamos que atravessar. Minha mãe me deu um puxão, soltou algo parecido com um palavrão, mas que na verdade era algo referente a Jesus ou Maria ou José, e me fez mudar de calçada. Não rápido o suficiente pra evitar que eu visse a cara do sujeito. Pelo jeitão, devia se tratar de um indigente que morrera de indigência (desculpem o pleonasmo), pois não havia, pelo que eu notei, marcas exteriores que evidenciassem a causa mortis. Passei meses sonhando com a horrenda expressão daquela face...
Uns dez anos depois, já sem minha mãe a tiracolo, voltando da escola com alguns colegas de classe, deparei-me novamente com um morto na calçada. Este tinha o rosto banhado em sangue, e sua expressão era mais assustadora ainda. Lembro, contudo, que eu e meus companheiros, com a crueldade própria da juventude ("como é perversa a juventude do meu coração"), rimos do infeliz, fizemos algumas piadas sobre ele (fosse hoje, algum de nós teria fotografado o presunto pra postar no fb) e o esquecemos dois quarteirões adiante. No entanto, eventualmente volto a pensar nele, como hoje, porém, menos como um ser humano (eu?) e mais como uma estatística (ele).
Vinha querendo escrever este texto desde que li sobre o jovem que matou dezenas de crianças numa escola dos EUA (além de sua própria mãe!) em dezembro último, mas as palavras não me vinham. O assunto, espinhoso por si só, parecia não carecer de minhas elucubrações e meus lugares-comuns. A questão das armas, dos bullyings, enfim, todo esse universo já foi tão amplamente abordado pelos meios de comunicação... Porém, hoje, ao abrir o jornal e me deparar com a manchete "Dois turistas são assassinados no Guarujá", e após ler seu conteúdo, o que estava engasgado em minha garganta tive que cuspir.
Vejamos: o primeiro "foi morto quando tentava recuperar o celular da filha que fora roubado [...]. Segundo a Secretaria de Segurança Pública, por volta de 0h30, um homem não identificado roubou o celular de uma jovem de 20 anos [...]. A moça avisou ao pai sobre o crime e ele correu atrás do bandido. Quando se aproximou, foi baleado no peito e morreu no hospital". O segundo, um estudante de 22 anos, "foi morto a facadas às 19h de anteontem pelo gerente - e filho do dono - do restaurante X no Guarujá, após uma briga por causa da diferença de R$ 7 na conta. [...] Mesmo com a diferença paga, a confusão continuou fora do restaurante. O dono do local, diz a polícia, desferiu três facadas nas costas de Y, que morreu". Nos dois casos ninguém foi preso.
Ocultei os nomes. Quem quiser ler a matéria na íntegra, eis o link. O que mais me chamou a atenção nas duas histórias foram os motivos dos crimes. No primeiro caso, um celular, e, no segundo, uma diferença de R$ 7 no preço de um prato. Sem contar que os assassinados estavam na cidade pra curtir as comemorações de fim de ano. Supondo que essas pessoas estariam alegres, tanto o destempero do estudante no restaurante quanto a valentia do pai da moça roubada demonstram que as pessoas estão levando o estresse do dia a dia em suas bagagens. Mas o pior de tudo é o sangue-frio dos assassinos. No caso do ladrão do celular, infelizmente, nem espanta tanto, visto que hoje é praxe roubar e matar. Já no caso do gerente do restaurante, resolver uma divergência na conta na base da faca parece mais roteiro de cordel nordestino.
Peço perdão por começar o ano com assunto tão na contramão do costumeiro happy new year, mas é que fiquei pensando: também eu viajei nesse fim de ano, e, embora não me tenha deparado com tal situação, notei a frieza das pessoas que estão "se divertindo", a falta de "bom-dia", "como vai?" e de um mínimo gesto de gentileza. Todos ali parecem estar preocupados apenas em tirar fotos e postar, quase que imediatamente, no facebook. Estamos tão umbilicalmente presos à rede, que, mesmo "em liberdade condicional", com nossos corpos livres, nossas almas continuam na tela, digo, na cela. E vivemos tão no limite, que, por uma mera banalidade, qualquer um de nós poderia perder a cabeça e se ver no lugar das vítimas ou dos algozes acima. E um homem sem cabeça é capaz de qualquer ato. No novo velho oeste do individualismo, as leis continuam as mesmas: matar ou morrer. Morrer é da vida, matar é do vivo. Eis a questão.
"Hoje é um novo dia de um novo tempo que começou."
Feliz ano-novo.
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Meu caro amigo-parceiro.
ResponderExcluirCheguei a torpe conclusao de que vivemos num planeta infermo, ou melhor dizendo, um planeta com habitantes doentes. Fora desta violência explícita que vivenciamos no dia a dia exstem outros tipos de violências ocultas formalizadas por entidades dignas de respeito. Se você nao leu, te sugiro a leitura de dois livros do escritor, David Yallop: O poder e a gloria ( o lado escuro do Vaticano de Joao Paulo II e, Em nome de Deus.
Um forte abtaço
Valeu pelo depoimento e pela dica de leitura, Pedrão. Infelizmente sou obrigado a concordar com você quanto à enfermidade do planeta. Realmente preocupante.
ExcluirAbração,
Léo.
Pois é, enfermo...
ResponderExcluirÉ, Pedrão, às vezes dá esse nó. Até porque um planeta enfermo é quase um inferno...
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