sexta-feira, 2 de agosto de 2013

Crônicas Classificadas: 31) Aqui, jazz

Em meus primeiros contatos com Alexandre Lemos achei que ele era meio ranzinza. Contudo, amigos em comum eram todo elogios em relação a ele, daí que acabei notando que o problema nessa relação era eu. O tempo passou e isso foi se acentuando mais, visto que constantemente discordávamos acerca dos mais variados assuntos, como pude perceber até neste espacinho que inventei. No entanto, em respeito a esse mesmo espaço e ao grande compositor/intelectual que é Alexandre, vi-me na obrigação de publicar aqui o texto abaixo, que ele postou há pouco no facebook (aqui). 

Não posso dizer que concordo com tudo (pra não perder o hábito), mas achei-o da maior relevância, inclusive pra ser lido por pessoas que estão começando agora na música ou mesmo por aqueles que não sabem de absolutamente nada que ocorre nos bastidores musicais. O facebook é um meio bacana de divulgação, mas também efêmero. Por isso resolvi guardar este importante texto aqui e preservá-lo, dando-lhe atemporalidade. Trata-se de uma narrativa não editada, mas, além de não ser cansativa, posto que bem-escrita, vale a pena.


Aqui, jazz

foto de Monika Mendonça
Acho que ninguém vai ler, o texto vai ficar longo. Mas fica aqui meu testemunho.

Não sei dizer com que idade comecei a compor. Desde que lembro de mim, lembro de inventar canções, cantigas, trovas cantadas. Mas foi só no início da adolescência que passei a compor usando um violão como guia, ali pelo começo da década de 1970. Era uma época difícil, o país entrevado pela ditadura, tudo era dúvida e medo. Mas a música popular resistia, apesar da censura, dos exílios, apesar da invasão crescente das multinacionais do disco, essas gravadoras que, com o tempo, passamos a chamar de majors, numa prova de nossa subserviência cultural.

Naqueles primeiros anos 70, algumas canções chamavam atenção e faziam sucesso de maneira especial. Casa no Campo soava país afora na voz da Elis Regina, O Vira era o grande sucesso do grupo Secos & Molhados, que acabava de arrebatar o público com sua androgenia psicodélica e música de primeira qualidade. Eu, começando a compor, não fazia ideia de que esses artistas acabariam entrando em minha vida e minha carreira. Mas o fato é que acabei virando parceiro de Tavito e Zé Rodrix, os caras que fizeram o Brasil inteiro desejar uma casa no campo, e de Luhli, a letrista de O Vira e genial compositora de zil outras canções. Pra completar, a mesma voz que brilhava no Secos & Molhados foi a voz que gravou umas das canções mais importantes que já fiz e aqui fica registrada minha gratidão ao Ney Matogrosso.

Olhando daqui, de meados de 2013, minha estrada de cancionista não parece das piores. Já fui cantado, gravado e regravado por mais de 40 intérpretes diferentes, mais de 140 canções minhas viraram fonogramas. Há quem me conheça, há quem me admire, há mesmo quem me tenha como exemplo. Mas eu, de verdade, sinceramente, não vejo mais graça na brincadeira.

Claro que gosto de compor, claro que ainda me sinto impelido ao violão sempre que uma ideia surge na cabeça. Claro que adoro quando recebo melodias pra letrar, claro. Mas também é claro que ser autor de canções é, cada vez mais, uma ato psicótico de falar sozinho e cantar para ninguém. Ou, então, é vender a alma ao diabo e entrar pra gangue.

Sou um artista. Confesso que tive dificuldades em lidar com isso, duvidei disso por muito tempo e cheguei a achar que a razão estava no refrão que alguém que não me lembro fez e que dizia “artista é o caralho”. Mas hoje sei que sou um artista e, ao reconhecer isso, tive condições de admitir que sou um dos bons.

Mas artistas não são pessoas desse tempo de agora. Vivemos o tempo dos profissionais. Tudo se resume a um negócio, acabei de ver o Lenine elogiando a dupla Chitãozinho & Xororó num documentário, dizendo justamente que a busca dos dois pela excelência era benéfica pro show business.

Tentei ser artista e profissional ao mesmo tempo. Juro que tentei. Assinei contratos com editoras, aceitei encomendas, fiz canções como quem faz jingles, a partir de briefings. Tive sorte de, nessa estrada desolada, conhecer outros artistas que também tentavam ser profissionais e dividiam minha angústia comigo. Só quem já passou por isso sabe o quanto é difícil fazer canções profissionais. Elas precisam ser originais e não ter nada de novo ao mesmo tempo. Têm que falar de amor sem falar de amor. Precisam ser únicas e iguaizinhas às que estão tocando nas rádios. E, como tudo sempre pode ser pior, sempre chega o tempo em que pedem que você faça uma canção “meio Marisa Monte”. O que é “meio Marisa Monte?? Se é isso que querem, por que não pedem diretamente à Marisa Monte?? Claro que citei o nome da Marisa como exemplo apenas, eles pedem canções “meio outros autores” também. Chega-se ao ponto, aliás, em que não há mais pudor algum em copiar e nem briefing mais te mandam: você só recebe links do youtube com canções que você tem que usar como referência pra atender à encomenda que fizeram.

É desgastante, faz mal ao espírito e banaliza a música a tal ponto que dá vontade de largar o violão e abrir uma franquia de pão de queijo. 

É preciso lembrar que o mercado não é cruel apenas com os autores. Um amigo meu, radialista de uma FM nordestina, foi demitido porque botou pra tocar em seu programa uma canção que não constava da lista oficial da rádio. Ele ouviu a tal música num CD independente, gostou e resolveu mostrar ao seu público. A direção da rádio não gostou. Na reunião, lembraram a ele que cobrar jabá era monopólio da diretoria. Ele argumentou que não tinha cobrado nada pra executar a canção. Não acreditaram, botaram ele na rua.

Uma outra amiga minha, cantora, aceitou emprestar sua voz para uma trama televisiva. O convite, afinal de contas, tinha vindo do próprio diretor do programa. Ela se reuniu com a produção pra saber detalhes e se assustou com a baixíssima remuneração. Ingênua, deixou escapar que tentaria que o tal diretor conseguisse um aumentozinho na grana. Em resposta, recebeu a ameaça do produtor: se fizer isso, você pode até conseguir ganhar mais dessa vez, mas nunca mais vai trabalhar pra nossa emissora. Sabendo que esse é o tal mundo profissional, ela se rendeu e trabalhou em troca de trocados.

Em determinado momento, pareceu que os artistas ditos independentes seriam a salvação da lavoura. Eles tinham, pelo menos, a virtude de não fazer encomendas, gravavam as canções que os autores faziam apenas por inspiração. Mas por uma estranha forma de ver o mundo, o artista independente, em sua maioria, acha que só ele merece ganhar alguma coisa com seu trabalho. Não paga direitos autorais pela venda de seus CDs e, via de regra, não encaminha pro Ecad a lista do que vão cantar nos shows. Como o Ecad não é bom de adivinhação, o autor fica a ver navios.

O que se quer quando se compõe uma canção? A gente quer que os outros ouçam, ué, nada mais que isso. E pela lista que mencionei acima, de intérpretes e gravações, muita gente ouviu as canções que fiz. Já tive canções em trilhas sonoras de séries, novelas e especiais de TV. Já tive canções entre as mais executadas nas rádios. Mas, sem querer ser chato, preciso dizer que nem isso dá pra comemorar.

Pois é. Nesse mundo profissional, nada é fruto de talento, tudo deriva de investimentos. E nem todos os investimentos são, sequer, minimamente decentes. Quer colocar uma música na novela? Creia, ela não precisa ser uma boa canção, mas você tem que ser muito “bem relacionado”. Ou precisa ter uma major interferindo por você. Quer que sua música toque no rádio? É simples: pague o jabá. E assim por diante, há jabá pra aparecer na TV, pra dar entrevista, há jabá pra alguém apenas comentar em algum lugar que você existe.

Resultado? Eles conseguiram estragar até isso, estragaram a alegria que um autor sente naturalmente ao ouvir sua música no rádio ou na TV. Sim, porque você até se anima quando a música começa a tocar, mas, de repente, você lembra que tudo é profissional e que sua canção só está tocando porque você, ou alguém, está pagando jabá. Aí tudo perde a graça e, pior, sua música estar tocando na rádio significa apenas que você finalmente conseguiu que o diabo se interessasse por sua alma.

Engraçado é que nesse cenário atual há uma porção de compositores em plena guerra pela regulamentação dos direitos autorais. Para isso, inventaram até uma lei que permite ao governo se meter nisso, como se não houvesse já incompetentes suficientes cuidando do assunto. Mas me espanta mesmo é que essa luta pelos direitos autorais parece ignorar a existência do jabá. O jabá determina que música toca e que música não toca nas rádios e nas tevês!!!!! E só as que tocam nas rádios e nas tevês serão também muito executadas nos shows!!!! Há também a turma que recebe direitos autorais pelas trilhas incidentais da programação das tevês, pelas vinhetas e pelos pequenos temas musicais. Mas essa é uma área também cercada de mistérios, marcada por privilégios e tráficos de influência, sendo que até há pouco tempo o disparate era tanto que um autor de vinhetas ganhava mais grana que um autor de canções, por exemplo. Ou seja: só recebe uma boa grana de direito autoral aquele autor cuja obra se beneficia do dinheiro ilegalmente pago para que esta ou aquela música vire “sucesso” ou aquele outro que é chamado de autor por um tcham tcham tcham qualquer. Na prática, portanto, lutar hoje por direitos autorais é apenas clamar por uma parte do roubo ou do desvio.

Mais do que direitos autorais, faltam mesmo são os direitos de ser autor. Os direitos de ser artista sem que isso signifique ser marginal ou marginalizado. Os direitos de uma pessoa ser ouvida ou vista ou assistida ou lida. Os direitos da sociedade de ouvir o que ela mesmo faz e cria, sem passar pelos filtros dos executivos das majors e das rádios e das tevês, uma gente que não entende nada de arte, não tem bom gosto e nem escrúpulos.

Tô cansado, sem nenhuma vontade de seguir nesse trem de doido. Pensei em me aposentar, mas me disseram que artistas não se aposentam, pela própria natureza do que fazem. Que esse texto, então, me sirva de obituário simbólico e que, pra ficar ainda mais musical, receberá o título de Aqui, jazz. O que não passa de um típico trocadilho de músico.

***

4 comentários:

  1. Eu já tinha lido e, como muitos, identifiquei-me.
    Faz algum tempo que tomei uma decisão que norteia o meu trabalho de composição. Não espero mais nenhum retorno, além de meu próprio prazer de realizar. Sendo assim, tudo o que vier de positivo, absorvo, e se a colheita for negativa, excluo sem nenhum prejuízo.

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  2. Também já participei deste filme e me afino com o autor do texto. Realmente é por ai! Mal comparando, se música fosse Copa do Mundo, para ser executado teriamos que vender a alma à FIFA!!
    Vocês já repararam que os CDs e antes ods discos de VINIL são produzidos para não tocar publicamente. Todos trazem a tarja que diz, entre outras coisas que A REPRODUÇÃO, A LOCAÇÃO, EXECUÇÃO PÚBLICA E RADIOTELEDIFUSÃO DESTE DISCO ESTÃO PROIBIDAS????

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    1. Valeu pela visita e pelo comentário, AC! É, nos bastidores desse filme rolam muitas laudas que ficaram de fora do roteiro que todo mundo vê...

      Abração,
      Léo.

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