segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Crônicas Desclassificadas: 103) Música, esse contrapeso...

Acompanho há tempos as crônicas de Ruy Castro, um dos mais talentosos jornalistas/biógrafos brasileiros. Va bene, trata-se também de um ranzinza radical em relação a bebida, cigarro, drogas etc. Claro, porque ele, que chutava o balde e pagou pelos excessos, acabou virando um abstêmio beato que não perde a oportunidade pra espinafrar os pobres humanos fracos que detêm tais vícios. Contudo, isso é lá com ele, afinal sua abstenção não é a pauta do dia (só lá em seu foro íntimo, onde é pauta diária). O que me abestalhou foi ler sexta passada em seu cantinho diário na nobre página 2 da Folha de S.Paulo uma crônica intitulada Oito a menos (leia aqui).

A parada é a seguinte: Ruy Castro é famoso por suas biografias, sobretudo algumas cujos biografados são (ou foram) ícones de nossa música. Sem falar em seus livros sobre bossa nova e tal. Daí que se supõe que ele deva gostar pra caramba de música. Em sua própria coluna diária na Folha, sempre quando a ocasião se apresenta, trata de algum assunto ligado a ela. E Castro... tratemo-lo por Ruy, porque aqui não é jornal, e pra que os leitores não confundam os Castros. Voltando, Ruy demonstra ser um profundo conhecedor do assunto, conhece mesmo artistas não tão populares, como é o caso de uma das maiores cantoras de nosso país, minha querida (e ausente) Clarisse Grova, a respeito da qual ele já teceu palavras das mais elogiosas.

Pois bem, daí meu estranhamento ao ir, com a sede de sempre, beber de sua sabedoria, e deparar-me com o tal do Oito a menos. Resumindo, Ruy se mostra bastante entusiasmado com um novo formato de disco que há na praça, o extended play, também conhecido como EP. Até aí tudo bem, é um sinal de que a indústria fonográfica ainda continua investindo em discos físicos. Só que esse EP vem com 4 faixas, em vez das 12 convencionais, daí o "oito a menos" do título. Ruy festeja o barateamento do custo e, sobretudo, a vantagem que o consumidor passa a ter de não precisar levar pra casa, segundo suas próprias palavras, "contrapesos"!

Quer dizer, segundo ele, um camarada que compra um CD o faz geralmente por causa de uma única música, daí que acaba levando os tais "contrapesos". Com o surgimento do EP, os "contrapesos" deixam de ser 11 e passam a ser apenas 3. Foi isso, apenas isso, esse descaso, diria mesmo desleixo, com algo que, mais que produto de trabalho de alguém, é resultado dum processo criativo. Que os meros "ouvidores" de mp3, os escutadores de orelha, chamem uma canção de contrapeso, vá lá, até dá, se não pra aceitar, ao menos entender, mas que alguém que, ainda que indiretamente, extrai boa parte de seu ganha-pão da música chame-a de contrapeso... pra mim é descabido, algo de deixar um compositor embasbacado!


Deixando de lado minha estupefação, tentemos analisar a coisa mais friamente. Ok, vivemos numa época em que a maioria das pessoas não compra mais CDs, baixa-os (e gratuitamente em grande parte das vezes). Claro, há os CDs piratas, que continuam sendo vendidos, a preço de troco de bala. Eis aí, pois, dois pontos interessantes: 1) não é de hoje que sabemos que o preço dos CDs anda pela hora da morte, superfaturadaço-aço-aço. E não por causa do cara que tem a foto na capa; Caetano já chegou a dizer numa entrevista que ganha centavos por cada CD seu vendido. Ou seja, alguém está ganhando por ele. Lembro que já faz alguns anos, quando Marisa Monte lançou no mercado dois CDs concomitantemente, comprei ambos pra dar de presente pela bagatela de R$ 80!

Convenhamos: caro bagarai! Daí se numa banquinha de quebrada você encontra a mesma duplinha de CDs por, digamos, dez pilas, quê que cê me diz? E 2) a molecada de hoje não faz ideia do que seja comprar um CD, baixa tudo o que quer, discografias inteiras de suas bandas preferidas... "de grátis". Um ou outro, talvez porque o pai seja quem paga, pode até comprar alguma faixa, mas só. Ninguém quer saber quem é o autor, quem arranjou, quem tá tocando, quais instrumentos foram executados na faixa, de quem é a arte gráfica etc. etc. Claro, pra eles ISSO é o contrapeso, então, com a possibilidade de excluir da compra o encarte (além do próprio disquinho), eles se veem livres dessa informação "desnecessária".

Continuemos o raciocínio: hoje essa galera economiza espaço físico. Gavetas, estantes, pastas, enfim, o que quer que usassem antes pra guardar CDs... Eles se veem livres de ter de precisar de tais incômodos espaços, já que conseguem enfiar tudo num aparelhinho menor que um sabonete (aparte: sem falar nos iBooks e o paralelo com os livros, que ficarão pra outro texto). Ora, pois, então me diga você: pra que raios que alguém vai comprar um EP, que deve ocupar quase o mesmo espaço de um CD em tais gavetas e tra-la-lás, e pra levar 4 por 12? Hem? Hem? Sei que tem louco pra tudo, mas, meu caro Ruy, não creio que seja o EP a salvação da lavoura. Pelo menos no que depender de mim. Afinal, pra mim música nunca foi contrapeso. Imagine você (não o Ruy, você, leitor), eu, que tenho em casa mais de mil LPs, uns 2 mil CDs, por acaso comprarei um móvel novo pra guardar... EPs? Nem se eu fosse um ET! 

Pelo contrário: quando surgiu o CD, fiquei pê ao saber que nele havia capacidade maior de tempo, mas, mesmo assim, havia quem lançasse um com oito, nove canções. Imagine quatro! Ruy, após consultar sua bola de cristal, vaticina que "a maior vantagem é a de que suas oito músicas a menos farão um enorme bem à música brasileira"! Vou ter que discordar. Na condição de compositor e, mais, apreciador, só tenho a lamentar essa "redução". Sou da época em que, quando a gente se cansava de ouvir a "música de trabalho" de um LP, ia investigar o território desconhecido que eram os lados B. Mas peraí... Acho que entendi o Ruy. Eu tô falando de música, ele tá falando de outra coisa... Quer saber? Eu acho que os sucessos de hoje é que são o contrapeso. Nesse sentido, oito a menos é um bom negócio! Afinal, pelo que se ouve por aí, tá sobrando contrapeso e tá faltando música!

***

8 comentários:

  1. Acho o Ruy Castro um "bobagento"... EP é mais velho que bonde...

    Sobre os "contrapesos", mesmo o Skank admite que a "pior" faixa do "Samba Poconé" era a "Pacato cidadão", que foi empurrada para o final do CD, pois ninguém acreditava, mas foi a que puxou o disco...

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    1. Salve, Moreira!

      Rapaz, é por aí. Dentro de um disco a gente nunca sabe qual música vai se sobressair. Meu maior medo com essa história é que os compositores, não tendo espaço pra experimentos, periguem tomar gosto por compor apenas canções de apelo popular, descartáveis... e descartem as que realmente importam.

      Abraço,
      Léo.

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  2. Léo, meu depoimento vai totalmente na contramão do Ruy, já que sou, sim, uma ET nesse mundo do consumo rápido, dos downloads, da falta de espaço pra guardar um CD.
    Assim como vc, não me apetecem o EPs, adoro encarte e ficha técnica, preciso do contato físico com os discos, com as obras e tenho o maior prazer em guarda-los.

    Na condição de cantora, que não compõe mas faz da pesquisa um traço forte do seu trabalho, jamais poderia me conformar com 4 músicas apenas.
    O CD está para mim assim como uma peça de teatro para um ator, uma mostra de arte, um espetáculo de dança.
    São extratos do momento daquele artista, são elaborados com contexto, conteúdo, conceito.

    Um CD pra mim é o conceito de um determinado trabalho que que quero apresentar, é a tradução do meu pensamento artístico, daquilo que quero contar naquele momento. É uma obra com começo, meio e fim. Todos os meus trabalhos são pensados assim, não sei se herdei isso dos meus anos de teatro, mas tudo que faço tem uma ideia por trás, uma proposta que alinhava, que cria uma unidade naquele grupo de canções. O conceito tanto pode se dar pela escolha de um único autor (como Baden, Chico e Edu, Alexandre Lemos) ou por uma ideia, como foi o caso do meu último CD "Interior". Mas a unidade está lá, o conceito, a trama.

    Jamais então poderia pensar em um EP como um resultado de um trabalho, a não ser que pensasse em gravações isoladas, sem muito compromisso, mas mesmo assim...quatro apenas não me satisfariam :-)

    Pensando bem, acho que o Ruy se refere muito ao mercado formal da música, ao senso comum, ao que está ai estabelecido comercialmente. Vai saber...

    Enfim...eu lamento muito que os jovens de hoje não consumam música com esse interesse no "todo", na ficha técnica, em quem está por trás de cada gravação. Sinto mesmo. Acho que eles perdem muito com isso, mas eu ainda não consigo abrir mão. E acho também que nós, artistas independentes, temos que continuar apostando no formato CD, com no mínimo 12 canções, pq esse ainda é o nosso maior cartão de visitas, é a forma que temos de nos expressar nesse mundo doido que habitamos.

    beijos
    Mari

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    1. Mari, pô, se eu concordar com você em TUDO, não tem debate! rs

      Mas concordo. Inclusive em relação ao Ruy. Veja que no final do texto eu digo que acho que ele tá falando de outra coisa que não música, o que você chamou de senso comum.

      Pena é que o FB tem roubado pra ele os comentários que deviam estar aqui. Mas entendo, todo mundo quer visibilidade, até pra fazer comentário, e o X tá longe de ser um FB... rs

      Valeu pelo depoimento.

      Beijos,
      Léo.

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  3. Acho que há razão pra todos ... O LP, sucessor dos discos de dez polegadas (aquele formato que a Abril isou nos fascículos da História da MPB), inventou uma canção menos obrigada ao sucesso imediato, visto que incluía 10 ou 12 faixas e precisava ser "digerido" com mais calma e por mais tempo. Nesse tempo, ali pelos anos 1950, começaram a surgir os discos conceituais que consagraram artistas como Miles Davis, Chet Baker e João Gilberto. Isso fez muito bem à canção, qualificando ainda mais a atividade da composição popular e trazendo pro cenário das paradas de sucesso outros assuntos além do amor, temas existencialistas, políticos, comportamentais. Mas também é fato que, com o advento do CD, uma fatia enorme do público comprador de discos ficou órfã do saudoso compacto, simples ou duplo. Era um público que realmente só queria aquela canção, aquele hit, ou só tinha grana pra isso. Muitos artistas da era do LP conceitual recorreram aos compactos para determinados lançamentos. Os sucessos dos Festivais saíam em compactos, Gil lançou "Eu só quero um xodó" em compacto na busca do sucesso rápido (na verdade ele achou que o sucesso viria com a outra faixa, a "Prezado Afonsinho"), Chico e Milton lançaram "Cio da Terra" em compacto pra vender no 1º de maio, e assim por diante, os exemplos são muitos. Há canções que se realizam ao lado de outras onze, há canções plenas, que se bastam. Acho bacana mais de um formato e mais de um preço.

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    1. Grande ALemos!

      Grato pela visita e pelo esclarecedor comentário. Cara, acho saudável que existam vários formatos, só penso que, nos tempos atuais, em que as pessoas baixam discografias inteiras gratuitamente, o EP tem pouco poder de fogo. Ocupa fisicamente o mesmo espaço do CD e traz menos conteúdo. Tanto como público quanto como compositor (com um estoque imenso de canções engavetadas), acho quatro faixas frustrante. Mas entendo o pensamento mercadológico

      Abraço,
      Léo.

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  4. Tudo muito bem, tudo muito bom. Mas tem mais aí. Parece-me que o X da Castração musical apregoada pelo Ruy foi denominar "contrapeso" a todo um trabalho que é parte vital do trabalho de muita gente, que sonhou, "insoniou", fez e desfez, lutou, perdeu e por fim, venceu e conseguiu dar corpo a uma obra que muito custou em sangue e pudins, suor e trêmulos, e notas musicais... Ou pensou em, finalmente, divulgar o que nasceu pra isso, visibilidade e audição, certamente nem pensou tanto em lucro, porque hoje isso virou megalomania, já que todo mundo que quer, baixa rapidinho sem perda de tempo em pagar pelo que adquiriu e, muito menos, em inteirar-se sobre quem dedicou tempo e muito amor para viabilizar aquele momento de assalto à obra alheia sem mais aquela. E para quem sonhou e acordou de chofre diante do mundo real, é como ver a sua prole usada e descartada como coisa se valor. E isso deve doer fundo, é capaz até mesmo de matar a fonte da criatividade, que nos converte a vida em mais do que mera passagem por um vale de lágrimas... Vivemos das canções e da poesia que são o sal da vida, e quanto mais, melhor! não sentimos como contrapeso, e sim como o instrumento imponderável que torna tudo mais leve e faz a gente voar... Contrapeso? Ora, mas que insensibilidade, quanto chumbo na alma... Péssima utilização das palavras!
    Abração!
    Regina Makarem

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    1. Regina, falou tudo e um pouco mais! Nota-se que o gajo não compõe, caso contrário não teria esse "chumbo na alma" em relação a obras alheias. É como se disséssemos que os livros dele ficariam bons se ele excluísse umas cem páginas, não é mesmo? ... o que não é verdade, só me veio a imagem como contraponto ao contrapeso.

      Gostei muitíssimo da visita e do depoimento.

      Abração,
      Léo.

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