Naquele dia, em vez de vermelho-alaranjado, o sol amanheceu verde, por razões que, como diria o poeta, a própria razão desconhece. Como cada um sabe de si, o sol sabia de ser sol; enverdeceu e pronto, acabou-se. Instantes depois, o homem acordou, homem, como todos os dias. Porém, ao abrir a janela e admirar o sol verde, humano que era, como todos os humanos foi tomado pela inveja e teve ímpetos de abandonar sua condição humana e, por sua vez, realizar seu sonho de criança: ser árvore. Imbuído de tal decisão, foi lá fora e caminhou quilômetros e mais quilômetros cimentados em busca de terra fresca. Finalmente, encontrou um metro quadrado em que o concreto rachara e a terra aparecera. Pensou, é aqui que vou me arborizar. Como não levara pá, tirou os sapatos e as meias e cavou com os pés e com as mãos. Ah, e com as unhas.
De seu trabalho, cresceram dois montinhos de terra pra cima e dois montinhos de vão pra baixo. Os montinhos de terra, ignorou-os (pelo menos por ora), já nos montinhos de vão meteu dentro deles os pés... um de cada vez, como quem entra em piscina em dia frio. Sentiu um imenso conforto. Fazia parte da natureza. Abriu então os braços e ficou ali, parado, por instantes, repetindo de si pra si, sou uma árvore, sou uma árvore, sou uma árvore. Alguns minutos depois, ao perceber que não arvorecia, notou que, como não enchera os vãos de terra, não podia criar raízes. Sem tirar os pés de onde os enfiara, com ambas mãos começou a devolver os dois montinhos de terra a seu habitat. Não era uma tarefa simples, visto que não contava com a mobilidade das pernas, mas obteve êxito. Ao acabar, afofou a terra na altura das canelas e abriu novamente os braços.
As pessoas que passavam por ele o olhavam, encafifadas, algumas; já outras desviavam o olhar, pensando, coitado, é louco! O homem, não sei se pra disfarçar o constrangimento de se saber observado ou de pura felicidade, fixou o sol verde pra ganhar coragem, encheu o peito de ar e pôs-se a assoviar inventada melodia. Não demorou muito, um passarinho veio pousar em seu antebraço. Logo, outro chegou e pousou no antebraço vago. De repente, o solitário assovio era já um coro, pois os afinados passarinhos, que (não me perguntem por quê) conheciam a melodia que o homem inventara, começaram a acompanhá-lo em sestrosa cantoria. Um menino, que vinha puxado pela mãe, parou e ficou admirando o trio. Esta lhe deu um sopapo, pra que ele continuasse a marcha, mas, como o guri não se movia, resolveu ela também dar um descanso às pernas e apreciar a apresentação.
A mulher, quando notou que a primeira música havia acabado, olhou pro chão à procura de um chapéu, mas, não o encontrando, jogou na terra mesmo algumas moedas e, dando novo sopapo no braço do menino, levou-o embora. Logo, outros passantes repetiram o gesto: paravam ali, ouviam o recital por alguns instantes, depois se iam, não sem antes jogar ao chão algumas moedas. Até um falsário parou por ali pra desanuviar os ouvidos e, comovido, jogou no chão uma nota de R$ 100. Era falsa, mas tudo bem, o solo aceita tanto o joio quanto o trigo. O fato é que o dinheiro foi sendo tragado pela terra, como se se tratasse de alguma espécie de fertilizante, e, sem que o homem percebesse, seu sangue foi secando, as unhas de seus pés foram se alongando e penetrando cada vez mais terra adentro, sua carne começou a endurecer (pero sin perder la ternura) e, antes que a melodia acabasse, já tinha dois troncos no lugar das pernas... até os joelhos.
O processo continuou, lenta e gradativamente, e o homem foi sentindo... como direi ? ... uma dor às avessas, ou, melhor dizendo, uma desdor, a cada milímetro que a madeira avançava, devastando e desmatando sua carne, vegetalizando-o. O engraçado foi que, à medida que sua respiração ia ficando mais difícil, tudo ficava mais fácil. A parte mais triste foi quando a madeira lhe chegou aos pulmões, pois aí já não podia mais assoviar. No entanto, os passarinhos, percebendo-o, multiplicaram suas vozes... Opa! Já não eram mais dois, mas duas famílias; pois, à medida que o homem se foi ramificando, nesse ínterim os danados dos cantadores, sem que nem homem nem narrador se dessem conta (e sem pagar IPTU), engenhosos que eram construíram ali seus ninhos e constituíram família. Claro, estamos falando de meses. Afinal, o tempo da árvore não é o tempo do homem.
O inverno chegou, e ele, robusto, todo caule, galhos, folhas e frutos, nem mesmo nas noites mais frias e úmidas se lembrou de sentir frio. Veio a primavera, e seu sorriso era todo cores, em parte pelo colorido das crianças que a seus pés vinham brincar de brincadeiras tantas. No verão, nem sequer suou, ao contrário, sua imensa sombra servia de refúgio a jovens casais de namorados, que, cruéis, cortavam-lhe a carne pra escrever seus nomes dentro de um coração. Ele nem ligava; era uma árvore, e que jovens apaixonados escrevessem seus respectivos nomes em sua lenhosa pele fazia parte de seu arborizado ofício. No outono, quando fragmentos de si foram ao chão (como versos que o poeta atirasse ao cesto), nem mesmo chorou. Quer dizer, quem sou eu pra adivinhar os pensamentos que vão dentro de uma árvore? Talvez chorasse, mas calado, com a dignidade que só as árvores sabem ter.
Aliás, dignidade é uma palavra que se podia aplicar a ele sem medo de incorrer em erro. Um exemplo: quando a chuva vinha, ele era o único em quilômetros que não corria pra casa. Não senhor! De braços abertos, bebia-a. Digo mais: tomava um porre dela. E nem cambaleava, como costumamos fazer eu e vocês. Mantinha-se de pé, e pronto pra mais. Por fim, vencia-a. Do mesmo modo como sobrevivia às intempéries em geral, à inclemência do sol a sol de cada dia, às fases da lua e... Por falar em lua, esta, havia tempos, perdera sua tonalidade antiga, e brilhava um tanto, digamos, cor-de-rosa. Mas ele nem tchuns, em vez de definhar, crescia cada vez mais. E se expandia. Aquele pobre metro quadrado de terra já não lhe bastava. Seu corpo exigia mais espaço (era sua única ambição), de modo que, sem pedir licença, foi tratando de rachar o concreto a seu redor.
Um belo dia (que, pensando bem, de belo não tinha nada), ouviu um estrondo. Aliás, não ouviu, porque, árvore, havia muito abandonara o sentido da audição. Mas nem por isso o estrondo deixou de estrondar. No que foi seguido por outros. Eram bombas. Alguns de seus galhos chegaram a se partir e cair, mas ele continuou ali ainda por muitos e muitos anos. A diferença foi que, depois daquele dia, nem crianças foram mais brincar a seus pés, nem namorados escrever seus nomes em corações desenhados em sua pele. Mas ele se mantinha ali, visto que escolhera ser árvore, e, convenhamos, homens podem até se tornar árvores (tal já se deu mais de uma vez), mas nunca ninguém ouviu dizer que uma árvore tenha virado homem. E eis que o sol, que ainda era verde, foi desbotando, desbotando, e, como uma vela, se apagou. Não sei dizer ao certo se a árvore morreu nesse dia ou se havia morrido antes. Mas não se preocupem, isso aconteceu num tempo muito posterior ao nosso. Ou seja, nessa época, nenhum de nós existia mais.
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Oh meu deus
ResponderExcluirQue bonitin...
Valeu, Lili!
ExcluirBeijos,
Léo.
Show!!
ResponderExcluirGrato, anônimo!
ExcluirAbraço,
Léo.
Hola Léo .... !!!
ResponderExcluirme gustó mucho el cuento !!!
Gracias, Javi! Hacía mucho que no te leía por acá.
ExcluirSaludos,
Léo.
Mutcho D+++!
ResponderExcluirAbrações
é.
Pois é, É! Valeu!
ExcluirAbração,
レオ。