segunda-feira, 11 de julho de 2016

Crônicas Desclassificadas: 175) Pra quem o escritor escreve?

Há alguns dias, deparei-me, sem querer querendo, com réplica de Bernardo Carvalho (colunista da Folha de S.Paulo) a João Pereira Coutinho (outro colunista da mesma Folha). Pra resumir, a história era a seguinte: Carvalho, durante um debate na Flip do qual participou, a certa altura se saiu com este polêmico comentário: "Não me interessa se o leitor lê ou não lê; eu quero que se foda. O que eu quero é fazer minha literatura." E então o português Coutinho dedicou sua coluna seguinte a espinafrar o colega. Antes de continuar, um aparte: quando Coutinho chegou à Folha, há alguns anos, deslumbrei-me com ele, cheguei até a lhe dedicar uma crônica (esta); depois, cansei-me um pouco dele, e não por seu explícito posicionamento político à direita, mas porque percebi que seu fôlego era curto.

Voltando: Coutinho, cidadão de primeiro mundo bastante intelectualizado, poliglota e tal (apesar de português – brincadeirinha!), chamou em sua defesa ninguém menos que Cervantes e Shakespeare pra provar que, se Carvalho – escrevendo apenas pra seu umbigo – queria que seu leitor se fodesse, melhor seria que ele não se preocupasse em editar seus livros e optasse por fazer como uma prima adolescente de Coutinho, que escrevia seus poemas, mas não permitia que ninguém os lesse (Coutinho não explicou se a adolescência de sua prima era antiga ou atual). Não vou entrar nesse embate, aqui abandono Carvalho (cujos livros, aliás, ainda não li) e Coutinho e parto pra um ponto de vista meu. Antes de despedi-los, entretanto, deixo os links tanto do texto de Coutinho (aqui) quanto da réplica de Carvalho (aqui).


Tá, quando disse que os abandonava, falei uma meia-verdade, porque, apesar de não ter procuração pra defender Carvalho nem achar que ele dela precise (lembrem-se de que nem li seus livros), minha opinião vai um pouco ao encontro da dele. Explico: acredito que um escritor de verdade, não um pau-mandado de editoras (e vou ficar no campo da ficção, que é o meu), deve ter liberdade incondicional pra escrever o que lhe der na telha, o que sinta realmente necessidade de pôr pra fora, porque só assim, sendo sincero consigo mesmo, conseguirá ser sincero com seus leitores. Até porque, em se tratando da verdadeira arte, quanto menos pensamos em nosso público-alvo mais o poderemos surpreender.


Talvez Carvalho tenha sido infeliz apenas com o inapropriado uso do verbo "foder". Tenho certeza de que ele e 99% dos escritores (eu incluso) querem ser lidos (fora Godard, que, aliás, não é escritor); a grande questão é que... Lembrei-me de uma frase de João Gilberto que cabe bem nesse assunto, apesar de ele ter falado sobre música. Disse ele que, com tanta música no mundo, os artistas deviam menos compor e mais se dedicar a executar as pérolas do passado. Pois bem, trazendo tal pensamento pra literatura, não chego a tanto, mas acredito que, se um camarada não tiver algo relevante pra escrever (seja na forma, seja no conteúdo), melhor se dedicar ao prazer da leitura em vez de queimar neurônios gastando páginas vãs que, por sua vez, também queimarão neurônios de desavisados leitores.


Enfim, quando Carvalho manda seu leitor se foder, ele tão-somente está querendo dizer (em minha interpretação) que, ao não fazer concessões, aumenta o respeito que tem por sua arte e assim pode devolver ao "fodido" leitor um material mais merecedor de atenção. Pode parecer paradoxal, mas não é. O leitor preguiçoso procura sempre mais do mesmo, ou seja, prefere transitar por terreno conhecido, pois assim poderá contar sempre com os prazeres comezinhos que lhe são tão familiares, sem maiores surpresas; contudo, quando esse preguiçoso leitor se aventura por terrenos inexplorados, não raro perde o chão e cai no abismo do deslumbramento. Usando um linguajar chulo, a masturbação é bacana, mas só até a página 2, ao passo que há prazeres plurais que, quanto mais páginas lemos, mais nos fulminam.


E não se trata de arrogância, como frisou Coutinho, mas de independência. E aqui quero deixar claro que tenho o maior respeito pelas decisões que um escritor possa vir a tomar. Li, por exemplo, que Dostoievski, por motivos de (falta de) grana, já escreveu um ou outro belo livro a toque de caixa. A motivação, seja ela de que natureza for, é bem-vinda, eu só prefiro acreditar que a mais importante de todas seja a motivação interior. Uma coisa é um sujeito almoçar porque deu meio-dia, outra coisa completamente diferente é um camarada que não come há dias se atirar num prato de comida. Se é que me entendem. Claro que nem sempre o excesso de fome pode resultar numa digestão agradável, mas o que seria da vida sem os riscos?


Na dúvida, é sempre bom apelar pros gênios, visto que esses iluminados são aqueles corajosos que têm a capacidade de alterar os caminhos da arte justamente por mudarem os paradigmas. Em sua réplica, Carvalho diz que "ir 'contra o leitor' pode significar escrever que a Terra é redonda para gente acostumada a ouvir que a Terra é chata". Não se trata apenas de dar ao leitor aquilo que ele quer, mas de lhe mostrar que ele pode vir a querer mais. O grande Gilberto Gil, em outra janela da arte (a canção popular), expande também a visão de seu público (e do público em geral) ao escrever pra uma canção sua um maravilhoso verso que diz que "o povo sabe o que quer, mas o povo também quer o que não sabe".


Pra finalizar, trago pro debate minha outra metade. Digamos que o escritor seja o Hyde e o compositor o Jekyll (ou vice-versa...) e que agora este pede pra se manifestar. E aqui coincido (em parte) com Coutinho. Na canção, talvez por ser mais curta que um livro, um compositor (no caso, eu) costuma dar mais atenção a seu público. Não que ele faça maiores concessões, mas é só que dói menos explorar o universo do conhecido, visto que o tempo gasto numa composição é, proporcionalmente, menor (há exceções). Muitas vezes, uma canção genial é até singela. Claro que (falo por mim) não significa que seja mais fácil pra um compositor vender a alma ao diabo, só que num disco, por exemplo, há espaço pra canções mais comerciais em meio a experimentalismos, já num livro essa mescla é menos praticável. Resumindo: um grande artista mais dá a seu público quanto mais rouba dele. Guimarães Rosa que o diga – e quem não entendeu não precisa entender. Fui!


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2 comentários:

  1. Muito bom, Léozíssimo!
    Entendo o Carvalho.
    E concordo com vc, se não é comercial, pois então que seja muito verdadeiro.

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